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Deus e a "eficácia desproporcional da matemática“

Summary

Nem o realismo nem o antirrealismo sobre objetos matemáticos têm muito a oferecer à questão da aplicabilidade da matemática ao mundo físico. O teísmo fornece a melhor resposta a esta questão.

“God and the ‘Unreasonable Effectiveness of Mathematics’”, Christian Research Journal 36 (2013): 31-35.

O problema da aplicabilidade da matemática ao mundo físico

Filósofos da matemática divergem radicalmente quanto à possibilidade de realmente existir ou não entidades matemáticas como números, conjuntos, funções e assim por diante. Os realistas sustentam que esses objetos existem, sim, como entidades abstratas, causalmente estéreis, não-espaço-temporais e independentes da mente. Os anti-realistas negam em uníssono que esses objetos de fato existam.

Pois bem, uma das questões centrais com que tanto realistas quanto antirrealistas têm de lidar é o que o físico Eugene Wigner celebremente cunhou de “a eficácia desproporcional da matemática”. [1] Como é que, por exemplo, um teórico matemático como Peter Higgs pode sentar-se à sua escrivaninha e, ao encher seus rascunhos com equações matemáticas, prever a existência de uma partícula fundamental que, trinta anos mais tarde, depois de investimento de milhões de dólares e de milhares de horas de trabalho, experimentadores enfim consigam detectar? Matemática é a linguagem da natureza. Como, porém, deve ser explicada?

Os teístas se acharão em posição muito mais confortável para responder à questão do que os naturalistas. Os teístas sustentam que existe um ser pessoal e transcendente (conhecido como Deus) que é o Criador e Arquiteto do universo. Os naturalistas sustentam que tudo que existe concretamente é o espaço-tempo e seus conteúdos físicos. Ora, seja alguém realista ou antirrealista quanto a objetos matemáticos, parece que o teísta goza de vantagem considerável sobre o naturalista ao explicar o fantástico êxito da matemática.

Realismo: não-teísta e teísta

Considere, primeiramente, a abordagem do realista à aplicabilidade da matemática ao mundo. Para o realista não-teísta, o fato de que a realidade física se comporta em conformidade aos ditames de entidades matemáticas sem causa que existem além do espaço e tempo é, nas palavras da filósofa da matemática Mary Leng, “uma feliz coincidência”. [2] Pense nisto: se, per impossibile, todos os objetos abstratos no domínio da matemática desaparecessem da noite para o dia, não haveria nenhum efeito no mundo físico. Isto serve para reiterar que objetos abstratos são causalmente inertes. A ideia de que o realista de algum modo explique a aplicabilidade da matemática “é, na verdade, muito contraintuitivo”, reflete Mark Balaguer, filósofo da matemática. “A ideia no caso é que, a fim de crer que o mundo físico tem a natureza que a ciência empírica lhe designa, tenho de crer que haja objetos matemáticos causalmente inertes, em existência fora do espaço-tempo”, uma ideia intrinsecamente implausível. [3]

Em contrapartida, o realista teísta consegue argumentar que Deus formou o mundo segundo a estrutura de objetos matemáticos. Esta é essencialmente a visão que Platão defendeu em seu dialogo Timeu. Platão faz uma distinção fundamental entre o domínio do ser estático (aquilo que sempre é) e o domínio do devir temporal (aquilo que sempre devém). Aquele domínio deve ser compreendido pelo intelecto, ao passo que este, pelas sensações. O domínio do devir compõe-se principalmente de objetos físicos, enquanto o domínio estático do ser compõe-se de objetos lógicos e matemáticos. Deus atenta para o domínio de objetos matemáticos e em conformidade com ele modela o mundo. Consequentemente, o mundo tem sua estrutura matemática. Platão escreve:

É preciso, a meu ver, começar por distinguir o que sempre é e nunca devém daquilo que sempre devém, mas nunca é. Um é apreendido pela inteligência com auxílio da razão, sendo eternamente o mesmo; o outro é o objeto da opinião e da sensação irracional, vindo a ser e deixando de ser, mas nunca plenamente real [...] Quando, pois, o criador de algo atenta para o eternamente imutável e o usa como seu padrão para a forma e função de seu produto, o resultado deve ser bom; quando atenta para algo que veio a ser e usa um modelo que precisa vir a ser, o resultado não é bom.

[...] Se o mundo é belo e seu criador, bom, evidentemente este atentou para o eterno; se a alternativa (que é blasfemo até mencionar) é verdadeira, atentou para o que está sujeito à mudança. Evidentemente, atentou para o eterno, pois o mundo é a mais bela das coisas que vieram à existência e ele é a melhor das causas. Sendo assim, o mundo deve ter sido construído segundo o padrão daquilo que é apreendido pela razão e entendimento e é eternamente imutável; daí, segue que o mundo é semelhança de outra coisa [...]

[...] Pois o propósito de Deus foi usar como modelo o que há de mais elevado e completamente perfeito dentre as coisas inteligíveis e, por isso, criou um único ser vivente visível, contendo dentro de si todos os seres viventes da mesma ordem natural. [4]

Assim, o realista que é teísta tem vantagem considerável sobre o realista naturalista ao explicar por que a matemática é tão eficaz ao descrever o mundo físico. A principal objeção contrária a esta perspectiva é teológica: considera-se que o domínio dos objetos matemáticos exista independentemente de Deus, de modo que Deus não é a única realidade última. Ainda assim, existem no cenário contemporâneo realistas cristãos que limitam a criação divina ao domínio do devir temporal de Platão e isentam da criação o domínio inteligível. [5]

Antirrealismo: não-teísta e teísta

Agora, consideremos o antirrealismo de tipo não-teísta. Leng diz que, pelo antirrealismo, relações que supostamente se obtêm entre objetos matemáticos apenas refletem as relações obtidas entre as coisas no mundo, a ponto de não haver nenhuma feliz coincidência. O filósofo da física Tim Maudlin reflete assim: “A profunda questão do porquê dado objeto matemático deva ser ferramenta eficaz para representar a estrutura física, aceita ao menos uma resposta clara: porque o mundo físico literalmente possui a estrutura matemática; o mundo físico é, em certo sentido, um objeto matemático”. [6] Muito bem, mas o que ainda falta no antirrealismo naturalista é uma explicação para o porquê do mundo exibir uma estrutura matemática tão complexa e espantosa, para começo de conversa. Talvez o universo tivesse de ter alguma estrutura matemática — mas o mundo não poderia ter sido um caos desestruturado? —, mas, mesmo assim, essa estrutura talvez pudesse ser descrita com aritmética simples. Por exemplo, uma coisa e outra coisa dão duas coisas. A física moderna, porém, mostra que o mundo físico é matematicamente complexo, algo de tirar o fôlego. Quando Albert Einstein lutava para elaborar sua Teoria Geral da Relatividade, por exemplo, ele primeiro teve de ir atrás de um matemático que lhe ensinasse cálculo tensorial, antes de avançar na formulação de uma teoria adequada da gravitação. Balaguer reconhece que não tem nenhuma explicação para o porquê, pelo antirrealismo, da matemática ser aplicável ao mundo físico ou para o porquê dela ser indispensável na ciência empírica. Ele só observa que tampouco o realista consegue responder a essas perguntas sobre o porquê.

Em contrapartida, o antirrealista teísta tem uma explicação pronta acerca da aplicabilidade da matemática ao mundo físico: Deus o criou de acordo com determinado projeto que Ele tinha em mente. Existem inúmeros projetos que ele poderia ter escolhido. A filósofa da matemática Penelope Maddy observa o seguinte:

A matemática pura contemporânea opera com a aplicação ao fornecer ao cientista empírico uma ampla gama de ferramentas abstratas; o cientista as emprega como modelos — da trajetória de uma bala de canhão ou do campo magnético ou do espaço-tempo curvo —, que ele considera parecidos com os fenômenos físicos grosso modo em algumas ocasiões e distante deles em outras [...] O matemático aplicado trabalha para entender as idealizações, simplificações e aproximações envolvidas nesses empregos de suas estruturas abstratas; esforça-se ao máximo para mostrar como e por que determinado modelo parece perto o suficiente do mundo para os objetivos particulares em questão. Nisso tudo, o cientista nunca afirma a existência do modelo abstrato; ele simplesmente sustenta que o mundo é como o modelo em alguns aspectos, e não em outros. Por isso, o modelo precisa somente ser bem descrito, assim como é possível ilustrar determinada situação social ao compará-la com uma situação imaginária ou mitológica, notando as semelhanças e dessemelhanças. [7]

Pelo antirrealismo teísta, o mundo exibe sua estrutura matemática desse modo, porque Deus escolheu criá-lo de acordo com o modelo abstrato que tinha em mente. Era essa a visão do filósofo judeu do século I, Fílon de Alexandria, que defendeu em seu tratado Da criação do mundo que Deus criou o mundo físico segundo o modelo mental em Sua mente. Para um judeu monoteísta como Fílon, o mundo das ideias não existe, segundo pensava Platão, independentemente de Deus, mas, sim, como o conteúdo de Sua mente. Fílon referiu-se à mente de Deus como o Logos (Palavra) de Deus. O mundo sensível (kosmos) se faz segundo o modelo do mundo conceitual ou inteligível que preexiste no Logos. Assim explica Fílon:

Deus, por ser Deus, entendeu de antemão que uma boa cópia não viria à existência sem um bom modelo e que nenhum dos objetos sensíveis seria sem defeito, a menos que fossem modelados segundo a ideia arquetípica e inteligível. Quando decidiu construir o cosmo visível, ele primeiro delimitou o cosmo inteligível, de modo que pudesse empregá-lo como paradigma incorpóreo e muitíssimo parecido com deus e, assim, que pudesse produzir o cosmo corpóreo, uma semelhança mais jovem de um modelo mais antigo, que conteria tantos tipos sensíveis quanto havia tipos inteligíveis naquele outro.

Declarar ou supor que o cosmo composto das ideias existe em algum lugar não é permissível. Como foi constituído entenderemos se prestarmos muita atenção a uma imagem tirada de nosso próprio mundo. Quando uma cidade é fundada, conforme a grande ambição de um rei ou governante que reivindicou poder supremo e, por ser ele ao mesmo tempo magnífico em sua concepção, acrescenta mais adorno a sua boa fortuna, pode acontecer que um arquiteto bem treinado se apresente. Ao observar tanto o clima favorável quanto a localização do terreno, ele primeiro projeta em sua mente um plano de praticamente todas as partes da cidade que está para ser completada — templos, ginásios, edifícios públicos, praças, portos, estaleiros, ruas, construção de paredes, a fundação de outros prédios privados e públicos. Então, incorporando a impressão de cada objeto em sua própria mente como em cera, ele carrega a cidade inteligível como imagem em sua cabeça. Ao convocar as imagens por meio de poderes inatos da memória e ao inscrever suas caraterísticas de forma ainda mais distinta em sua mente, ele passa, como bom construtor, a edificar a cidade com pedra e madeira, atentando para o modelo e se certificando de que os objetos corpóreos correspondem a cada uma das ideias incorpóreas.

A concepção que temos em relação a Deus deve ser similar a esta, a saber: quando ele decidira fundar a grande cidade cósmica, primeiro concebeu seus contornos. A partir destes, compôs o cosmo inteligível, que lhe serviu de modelo quando também completou o cosmo sensível. Assim como a cidade que foi delimitada de antemão no arquiteto não tinha nenhuma localização externa, mas fora inscrita na alma do artífice, da mesma forma também o cosmo composto das ideias não teria nenhum outro lugar além do Logos divino que dá a elas sua disposição ordeira. Afinal, que outro lugar haveria para seus poderes, suficiente para receber e conter? Não falo de todos eles, mas apenas de um único deles em seu estado puro. Caso se quisesse empregar uma formulação reduzida ao essencial, talvez se dissesse que o cosmo inteligível não é nada além do Logos de Deus realmente envolvido na criação do cosmo. Pois a cidade inteligível também não é nada além do raciocínio que o arquiteto tem de que ele está realmente envolvido no planejamento da fundação da cidade. [8]

É digna de nota, em particular, a insistência de Fílon de que o mundo das ideias não pode existir em nenhum outro lugar, senão no Logos divino. Como o plano arquitetônico ideal de uma cidade existe apenas na mente do arquiteto, assim também o mundo das ideias existe apenas na mente de Deus. Uma vez que Fílon cria que o tempo começou na criação, a formação do mundo inteligível na mente divina deve provavelmente ser concebido como atemporal e explanatoriamente anterior à criação que Deus fez do mundo sensível. Esta visão continua popular entre teístas cristãos. [9]

Conclusão

Portanto, o teísta — seja ele realista ou antirrealista quanto a objetos matemáticos — tem os meios explanatórios para justificar a estrutura matemática do mundo físico e, consequentemente, para aquilo que, do contrário, seria a eficácia desproporcional da matemática — meios que faltam ao naturalista.

  • [1]

    http://www.reasonablefaith.org/god-and-the-unreasonable-effectiveness-of-mathematics

  • [2]

    http://www.reasonablefaith.org/god-and-the-unreasonable-effectiveness-of-mathematics

  • [3]

    Platonism and Anti-Platonism in Mathematics (Nova Iorque: Oxford University Press, 1998), p. 136.

  • [4]

    Timeu 3—4.

  • [5]

    Para uma discussão de pontos de vista antagônicos sobre essa questão, ver Beyond the Control of God? Six Views on the Problem of God and Abstract Objects, ed. Paul Gould, com artigos, replicas e tréplicas de K. Yandell, S. Shalkowski, R. Davis, P. Gould, G. Oppy e G. Welty (Bloomsbury: 2014).

  • [6]

    “On the Foundations of Physics”, 15 de julho de 2013, .

  • [7]

    Defending the Axioms: On the Philosophical Foundations of Set Theory (Oxford: Oxford University Press, 2011), pp. 89-90.

  • [8]

    Defending the Axioms: On the Philosophical Foundations of Set Theory (Oxford: Oxford University Press, 2011), pp. 89-90.

  • [9]

    Ver novamente Beyond the Control of God? Six Views on the Problem of God and Abstract Objects, ed. Paul Gould.