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A ressurreição corpórea de Jesus

Summary

Costuma-se argumentar com base no testemunho de Paulo que o corpo de ressurreição de Jesus era espiritual no sentido de ser inestendido, imaterial, intangível e assim por diante. Entretanto, nem o argumento que apela para a natureza da experiência de Paulo no caminho de Damasco nem o argumento a partir da doutrina de Paulo sobre o corpo de ressurreição apoia uma conclusão como essa. Pelo contrário, as informações de Paulo servem para confirmar as narrativas dos evangelhos sobre a ressurreição corpórea de Jesus. O fisicalismo dos evangelhos não é apenas bem fundamentado, mas também, como na doutrina de Paulo, um fisicalismo diferenciado.

Fonte: "The Bodily Resurrection of Jesus", em R.T. France and D. Wenham(eds.), Gospel Perspectives I. Sheffield: JSOT Press, 1980, pp. 47-74. [1]

Existem provavelmente poucos eventos nos evangelhos para os quais os indícios históricos sejam mais convincentes do que a ressurreição de Jesus. Estudos histórico-críticos durante a segunda metade deste século, cada vez mais livres dos persistentes pressupostos deístas que em grande medida determinaram de antemão as conclusões da pesquisa sobre a ressurreição ao longo dos 150 anos anteriores, reverteram a corrente de ceticismo em relação à ressurreição histórica, a tal ponto que a tendência entre os estudiosos em anos recentes é de aceitação da credibilidade histórica da ressurreição de Jesus.

Não obstante, existe ainda um aspecto da ressurreição que uma grande quantidade de estudiosos simplesmente não consegue aceitar: que Jesus foi ressuscitado dentre os mortos fisicamente. O fisicalismo retratado nos evangelhos acerca do corpo de ressurreição de Jesus explica, segundo penso, mais do que qualquer outro fator, o ceticismo em relação à historicidade das narrativas dos evangelhos sobre a ressurreição corpórea de Jesus. Sem dúvida, o exemplo perfeito disso é o clássico de Hans Grass, Ostergeschehen und Osterberichte [Acontecimentos pascais e relatos pascais]. [2] Em ataque direto ao “massiver Realismus” das narrativas evangélicas, Grass desconsidera as histórias de aparição como se fossem completamente lendárias e oferece todo argumento crítico que consegue reunir contra o sepulcro vazio. Não que Grass entendesse a ressurreição, pelo menos abertamente, meramente do ponto de vista da sobrevivência da alma de Jesus; ele afirma a ressurreição corpórea, mas o corpo é de natureza “espiritual”, conforme o apóstolo Paulo, e não físico. Como a relação entre o antigo corpo físico e o novo corpo espiritual é totaliter aliter, a ressurreição implica não o esvaziamento do sepulcro, mas a criação de um novo corpo. Como o corpo é espiritual, as aparições de Cristo se deram na forma de visões celestiais causadas por Deus nas mentes dos que foram escolhidos para recebê-las.

É difícil exagerar a extensão da influência de Grass. Conquanto poucos estejam dispostos a unir-se a ele na negação do sepulcro vazio, visto que os indícios apontam na direção oposta, não é infrequente encontrar declarações segundo as quais, como o corpo de ressurreição não depende do antigo corpo, não temos obrigação de crer no sepulcro vazio. E afirma-se em todo canto, mesmo entre aqueles que defendem ardorosamente o sepulcro vazio, que a natureza espiritual do corpo de ressurreição exclui aparições físicas, conforme narradas nos evangelhos. John Alsup observa que “... nenhuma outra obra é tão comumente empregada ou de tamanha importância e singularidade para a interpretação dos relatos do evangelho... como Grass”. [3] No entanto, protesta Alsup, a insistência de Grass que aparições na forma de visão celestial subjazem as aparições dos evangelhos “está baseada na impossibilidade do realismo material desta última forma enquanto resposta aceitável à pergunta sobre ‘o que aconteceu’... Grass sobrepõe este critério acima dos relatos de aparição do evangelho e os julga por sua conformidade ou divergência dele”. [4] Consequentemente, “... o espectro contemporâneo da pesquisa sobre as aparições evangélicas da ressurreição exibe uma propensão ao último século (e a Celso do século II), em grande medida pela influência da abordagem de Grass. Em certo sentido, as histórias evangélicas parecem ser um tanto quanto embaraçosas: seu ‘realismo’ é ofensivo”. [5]

Que base legítima se pode propor a tal ponto de vista? Quem nega a ressurreição física do corpo de ressurreição de Jesus desenvolveu uma linha de raciocínio que se tornou recurso convencional:

A igreja neotestamentária não concorda sobre a natureza do corpo ressurreto de Cristo. Material em Lucas e João talvez sugira que esse corpo seja de natureza corpórea.43 Paulo, por sua vez, argumenta claramente que o corpo é corpo espiritual. Se alguma memória histórica há nos relatos da conversão de Paulo em Atos, ele não deve ter entendido que a aparição de Cristo tenha sido uma aparição corpórea. A maioria dos críticos identifica essa conversão com o evento mencionado em 1Coríntios 15.8: “E, depois de todos, apareceu também a mim, como a um nascido fora do tempo certo”.44 Os argumentos nos versículos 47-50 do mesmo capítulo a favor da identidade entre o corpo de Cristo e o corpo espiritual de ressurreição indicam que, para o Apóstolo, seu Senhor ressuscitou dentre os mortos num corpo espiritual. Ainda mais importante é que Paulo tenha equiparado a aparição de Cristo a ele com as aparições aos outros apóstolos. O Cristo ressurreto, conforme manifesto à igreja, é, portanto, um corpo espiritual...

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43 Lucas 24.39-43; João 20.26-38. Existem, obviamente, elementos contraditórios nas histórias que implicam que o corpo é mais do que físico.

44 ... [6]

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Podemos formular esse raciocínio da seguinte maneira:

  1. As informações de Paulo são, ao menos à primeira vista, mais confiáveis do que as dos evangelhos.
  1. Pois ele se posiciona em maior proximidade pessoal e temporal aos eventos originais.
  1. As informações de Paulo, em contraste àquelas dos evangelhos, indicam que Jesus possuía um corpo de ressurreição puramente espiritual.

a. Primeiro argumento:

(1) Paulo equiparou a aparição de Jesus a ele com as aparições de Jesus aos discípulos.

(2) A aparição de Jesus a Paulo foi uma aparição não-física.

(3) Logo, as aparições de Jesus aos discípulos foram aparições não-físicas.

b. Segundo argumento:

(1) Paulo equiparou o corpo de ressurreição de Jesus com nossos futuros corpos de ressurreição.

(2) Nossos futuros corpos de ressurreição serão corpos espirituais.

(3) Logo, o corpo de ressurreição de Jesus era corpo espiritual.

3. Logo, Jesus possuía um corpo de ressurreição puramente espiritual.

Desse modo, os relatos evangélicos sobre a ressurreição física podem ser descartados como lendários.

Pois bem, é minha convicção que esse raciocínio não possa suportar o peso que lhe é imposto por aqueles que rejeitariam a ressurreição física. Neste artigo não contestarei a primeira premissa, mas gostaria de questionar vigorosamente a segunda. Nenhum dos dois argumentos favoráveis, ao que me parece, é correto; pelo contrário, representam sérios equívocos.

Quando ao primeiro argumento favorável, em relação à aparição de Jesus a Paulo, parece-me que tanto a premissa (1) quanto a (2) são muitíssimo questionáveis. Ao tomar as premissas em ordem inversa, quais são os indícios para (2) A aparição de Jesus a Paulo foi uma aparição não-física? Com frequência se apela aos relatos do incidente em Atos, onde, conforme se diz, entende-se que a aparição seria uma experiência visionária (Atos 9.1-19: 22.3-16 26.9-23). Na realidade, porém, a aparição em Atos, conquanto envolvesse elementos visionários, não pode sem mais nem menos ser caracterizada como se fosse puramente visionária, uma vez que, em todos os três relatos, é acompanhada por fenômenos extramentais, a saber: a luz e a voz, que os companheiros de Paulo experimentaram. [7] Isso é, contudo, muito duvidoso, visto que Lucas não deseja objetificar as visões de Jesus pós-ascensão; é a realidade extramental das aparições pré-ascensão que Lucas deseja enfatizar. Caso Lucas não tivesse nenhuma tradição que incluísse os companheiros de Paulo, então deveríamos ter outra visão como a de Estêvão, carecendo de fenômenos extramentais. E, em segundo lugar, se Lucas tivesse inventado os aspectos extramentais da aparição a Paulo, deveríamos esperar que ele fosse mais coerente e não elaborasse as discrepâncias nas quais os companheiros de Paulo ouviram e não ouviram a voz. Tais incoerências sugerem que os fenômenos extramentais fossem parte das diversas tradições de Lucas.

Grass mantém ainda que Lucas tinha diante de si uma tradição da experiência de Paulo que não poderia ser assimilada às aparições mais físicas de Cristo aos discípulos e que, portanto, a tradição é confiável; os aspectos extramentais são o resultado de influências míticas ou lendárias. [8] Seria possível argumentar, porém, que precisamente o oposto é verdadeiro: como a aparição a Paulo é uma experiência pós-ascensão, Lucas se vê forçado a interpretá-la como uma visão celestial, uma vez que Jesus ascendera fisicamente. Os paralelos antropomórficos da mitologia grega (Homero, Ilíada 1.158; Odisseia p. v. 161; Apolônio, Argonautas 4.852) oferecidos por Grass têm pouca semelhança com a experiência de Paulo; uma ligação genealógica entre eles é muitíssimo improvável. Assim, nenhum apelo aos relatos de Atos sobre a aparição a Paulo se pode fazer legitimamente como prova de que essa aparição tenha sido de natureza puramente visionária.

O próprio Paulo não nos dá nenhuma indicação clara sobre a natureza da aparição de Cristo a ele. É interessante notar, porém, que, quando Paulo fala de suas “visões e revelações do Senhor” (2Coríntios 12.1-7), não inclui a aparição de Jesus a ele. Paulo e a comunidade cristã primitiva como um todo estavam familiarizados com visões religiosas e diferenciavam nitidamente entre elas e uma aparição do Senhor ressurreto. [9] Mas qual era a diferença? Grass afirma que a única diferença era de conteúdo: numa aparição o Cristo exaltado é visto. [10] Certamente, porém, deve ter havido visões religiosas do Cristo exaltado, também. Tanto a visão de Estêvão quanto o livro de Apocalipse mostram que visões do Cristo exaltado que não se tratavam de aparições da ressurreição ocorriam na igreja. Tampouco se pode dizer que o elemento distintivo numa aparição era o comissionamento, pois se sabia de aparições que careciam desse elemento (os discípulos de Emaús, os quinhentos irmãos). Parece-me que a resposta mais natural é que uma aparição envolvia fenômenos extramentais, a real aparição de algo, ao passo que uma visão, mesmo que causada por Deus, passava-se puramente na mente. Se isto estiver correto, Paulo, ao alegar para si uma aparição, em vez de uma visão de Cristo, afirma ter visto algo não simplesmente na mente, mas realmente “lá fora”, no mundo real. Por tudo que sabemos de Paulo, essa aparição poderia de forma concebível ter sido tão física quanto aquelas retratadas nos evangelhos; e não é impossível que Lucas, então, tenha “espiritualizado” a aparição pela necessidade de seu esquema de pré- e pós-ascensão! De todo modo, seria fútil tentar provar que ou Atos ou Paulo apoia uma aparição puramente visionária ao apóstolo no caminho de Damasco.

Suponha, então, que isso esteja totalmente errado. Suponha que a aparição a Paulo tenha sido puramente visionária. Quais seriam os fundamentos para acreditar na premissa (1) Paulo equiparou a aparição de Jesus a ele com as aparições de Jesus aos discípulos? Normalmente se recorre ao fato de que Paulo se coloca na lista de testemunhas das aparições; consequentemente, as outras aparições devem também ter sido aparições visionárias como a dele próprio. Uma coisa, porém, não parece decorrer da outra. Em primeiro lugar, ao se colocar na lista de testemunhas, Paulo não implica que as aparições anteriores tenham sido do mesmo tipo daquela que ele experimentou. No caso, ele não está interessado no modo das aparições, mas em quem apareceu. Ele deseja elencar testemunhas do Cristo ressurreto, e o modo das aparições é totalmente casual. E, em segundo lugar, ao se colocar na lista, Paulo não busca posicionar as aparições aos outros em nível igual ao seu; antes, ele busca elevar sua própria experiência à objetividade e realidade dos outros. Os detratores de Paulo questionavam ou negavam seu apostolado (1Coríntios 9.1-2; 2Coríntios 11.5; 12.11), e o fato dele ter visto Cristo seria argumento importante a seu favor (Gálatas 1.1,11-12,15-16; 1Coríntios 9.1-2; 15.8-9). Seus oponentes talvez estivessem inclinados a descartar a experiência de Paulo como se fosse uma mera visão subjetiva, e não uma aparição verdadeira; por isso, Paulo se importa em incluir-se com os outros apóstolos como receptor de uma aparição objetiva e genuína do Senhor ressurreto. Ao se colocar na lista, Paulo diz que o que ele vira se tratou em todos os aspectos de uma visão tão real de Jesus quanto aquilo que eles viram. De fato, pode-se até dizer que a inclusão de Paulo feita por si mesmo se trata, na verdade, de um argumento especial e forçado! Em todo caso, é non sequitur inferir que, porque Paulo se inclui na lista de testemunhas, todas as outras aparições devem ser do mesmo modo da aparição a Paulo.

Sendo assim, o primeiro argumento contra a ressurreição física de Jesus parece duplamente incorreto. Não somente os indícios vão de encontro a uma aparição puramente visionária a Paulo, como também não há nenhuma indicação de que Paulo tenha equiparado o modo da aparição de Jesus a si mesmo com o modo das aparições aos outros discípulos.

Atentemos agora para o segundo argumento favorável a um corpo de ressurreição de Jesus puramente espiritual: o argumento a partir do termo paulino σῶμα πνευματικόν. A premissa (1) Paulo equiparou a aparição de Jesus a ele com as aparições de Jesus aos discípulos certamente está correta (Filipenses 3.21; 1Coríntios 15.20; Colossenses 1.18), mas a verdade da premissa (2) nossos futuros corpos de ressurreição serão corpos espirituais depende da maneira como se definem seus termos. Por isso, antes de observar com mais cuidado a discussão de Paulo sobre o corpo de ressurreição em 1Coríntios 15.35-57, é preciso dizer algo acerca dos termos antropológicos paulinos σῶμα, σάρξ e ψυχή.

O termo mais importante na segunda metade de 1Coríntios 15 é σῶμα. [11] Durante o século XIX, sob influência do idealismo, os teólogos interpretavam σῶμα como a forma de uma coisa e σάρξ como sua substância. [12] Fazendo isso, poderiam evitar a noção questionável de uma ressurreição física, pois seria a forma que ressuscitaria dentre os mortos dotada de uma nova substância espiritual. Assim, nos comentários antigos, constata-se que σῶμα πνευματικόν era entendido como um corpo constituído de himmlischer Lichtsubstanz. Esta interpretação já foi hoje completamente abandonada. [13] A ideia de que σῶμα se trate meramente de forma e σάρξ seria sua substância não pode ser sustentada exegeticamente; σῶμα é o corpo, tanto forma quanto substância. Não significa, entretanto, que os teólogos do século XX considerem que o significado de σῶμα seja o corpo físico. Pelo contrário, por influência do existencialismo, particularmente conforme adotado por Bultmann, consideram que σῶμα, quando usado teologicamente, é a pessoa inteira concebida abstratamente em categorias existencialistas de autocompreensão. Assim, σῶμα não se iguala ao corpo físico, mas à pessoa, e, portanto, ressurreição corpórea significa não ressurreição do corpo físico, mas da pessoa. Desta forma, evita-se a doutrina da ressurreição física tão astutamente quanto nos dias do idealismo filosófico. Ficou a cargo do estudo de Gundry mostrar que essa interpretação está drasticamente errada. Mesmo que sua exegese às vezes se exagere um pouco, [14] Gundry tem êxito admirável ao transmitir seu ponto principal: que σῶμα nunca é usado no Novo Testamento para denotar a pessoa inteira isolada de seu corpo físico, mas é muito mais usado para denotar o próprio corpo físico ou o homem com ênfase especial no corpo físico. Vale a pena citar a conclusão de Gundry:

Soma denota o corpo físico, grosso modo sinônimo de “carne” no sentido neutro. Forma aquela parte do homem na qual e por meio da qual ele vive e atua no mundo. Torna-se a base de operações para o pecado no incrédulo, pois o Espírito Santo está no crente. A não ser no caso de ocorrência prévia da parusia, soma morrerá. É o efeito vagaroso do pecado, mesmo no crente. Soma também será, contudo, ressuscitado. Trata-se de seu fim último, prova importante de seu valor e necessidade de inteireza do ser humano, bem como a razão para sua santificação agora. [15]

Não é demais enfatizar a importância desta conclusão. Por muito tempo nos foi dito que, para Paulo, σῶμα é o ego, o “eu” do homem. Como um balde de água fria, o estudo de Gundry nos traz de volta à genuína consciência antropológica do homem do século I. A noção de corpo como o “eu” é perversão do sentido bíblico de σῶμα: Robert Jewett afirma que “Bultmann transformou σῶμα praticamente em seu oposto: um símbolo para aquela estrutura da existência individual que é essencialmente não-física”. [16] Portanto, abordagens existencialistas de σῶμα, assim como abordagens idealistas, impediram consideravelmente a exegese histórico-crítica precisa de 1Coríntios 15 e sacrificaram a teologia a uma moda filosófica que já está ultrapassada. [17] Dizer que σῶμα se refere essencialmente ao corpo físico não significa dizer que a palavra não pode ser usada como sinédoque para se referir ao homem inteiro por meio de referência a uma parte. “Soma pode representar a pessoa inteira simplesmente porque soma vive em união com a alma/espírito. Mas soma não significa ‘pessoa inteira’, pois seu uso é designado para chamar atenção ao objeto físico que é o corpo da pessoa, em vez de sua personalidade inteira”. [18] Tampouco se descarta com isso o uso metafórico da palavra, como em “corpo de Cristo” para a igreja, pois se trata de uma metáfora física: a igreja não é o “eu” de Cristo. Quando atentarmos para 1Coríntios 15 e investigarmos a natureza do corpo de ressurreição, portanto, investigaremos um corpo, e não um ego, um “eu” ou uma “pessoa” concebidos abstratamente sem o corpo.

Já fiz alusão ao uso paulino de σάρξ, de modo que não será necessário dizer muito a seu respeito aqui. Os teólogos estão familiarizados com a ideia de σάρξ como a inclinação maligna dentro do homem. Isso toca em pontos nevrálgicos da teologia alemã, porque o Credo em alemão declara que “eu creio na ressurreição da Fleisch [isto é, carne]”, e não do corpo, como na tradução inglesa. Por isso, muitos teólogos justificadamente se importam em dissociar-se de qualquer doutrina segunda a qual a carne, enquanto princípio moralmente maligno, será ressuscitada. Eles parecem inclinados, no entanto, a fazer vista grossa ao fato de que Paulo com frequência usa σάρξ em sentido não-moral, simplesmente com a intenção de dizer a carne ou corpo físico. Neste sentido moralmente neutro, a ressurreição da carne = ressurreição do corpo. Pois bem, em 1Coríntios 15, Paulo fala claramente de σάρξ em sentido físico e moralmente neutro, pois fala da carne de pássaros, animais e peixes, o que seria absurdo em qualquer sentido moral. Consequentemente, entendida em sentido físico, a doutrina da ressurreição da carne é moralmente irrepreensível.

Por último, um breve comentário sobre o terceiro termo, ψυχή. Paulo não ensina um dualismo coerente de σῶμα-ψυχή, mas frequentemente usa πνεῦμα e outros termos para designar o elemento imaterial do homem. De fato, na forma adjetival, ψυχικός tem significado que não conota de forma alguma imaterialidade, mas, sim, o caráter natural de uma coisa contrariamente ao caráter sobrenatural do Espírito de Deus. Assim, em 1Coríntios 2.14—3.3, Paulo diferencia três tipos de homens: o ἄνθρωπος ψυχικός ou homem natural sem o Espírito de Deus; o ἄνθρωπος πνευματικός ou homem espiritual que é movido e capacitado pelo Espírito de Deus; e o ἄνθρωπος σαρκινός ou homem carnal que, embora possua o Espírito de Deus (1Coríntios 12.13), ainda está sob a influência da σάρξ ou princípio maligno na natureza humana. Isto evidencia que, para Paulo, ψυχικός não tinha as conotações que hoje nós associamos com “alma”.

Com esses termos em mente, atentemos agora para a discussão de Paulo em 1Coríntios 15.35-37. Ele começa perguntando duas questões polêmicas: como ressuscitam os mortos? Com que espécie de corpo virão? (v. 35; cf. 2Baruque 49.2-3). Os oponentes de Paulo pareciam não conseguir aceitar a ressurreição, pois a ressurreição de um corpo material era ora inconcebível ora ofensiva às suas mentes gregas (cf. a “ressuscitação de um cadaver”, de Bultmann). A resposta de Paulo traça um curso muito cuidadoso entre formas mais grosseiras da doutrina farisaica de ressurreição, em que os ressuscitados, por exemplo, gerarão cada qual mil filhos e comerão a carne do Leviatã, e a doutrina platônica da imortalidade da alma sem o corpo. Paulo argumentará que o corpo de ressurreição será radicalmente diferente deste corpo natural, mas será não obstante um corpo — Paulo não contempla nenhuma libertação da alma desta prisão doméstica do corpo. A resposta de Paulo é que o corpo de ressurreição será uma transformação maravilhosa de nosso corpo presente, adequando-o para a existência na era vindoura — doutrina não incomum no judaísmo dos dias de Paulo e marcadamente parecida com aquela do contemporâneo 2Baruque 50—51, que deve ser lido ao lado do argumento de Paulo. [19] É muitíssimo instrutivo, particularmente se aceitamos que o autor de Lucas-Atos tenha sido parceiro de Paulo, que Lucas especificamente identifica a doutrina paulina da ressurreição com a dos fariseus (Atos 23.6; cf. 24.14; 16.6,21-23).

No primeiro parágrafo, vv. 36-41, Paulo procura analogias para a ressurreição dos mortos (v. 42). A primeira analogia é a analogia da semente. O ponto dela é simplesmente chamar atenção para a grande diferença entre a planta e a semente que é plantada no chão (cf. Mateus 13.31-32, onde Jesus emprega analogia parecida em outro contexto). É boa analogia dentro do propósito de Paulo, pois o semear da semente e sua morte lembram o sepultamento de um morto (vv. 42-44). Criticar a analogia de Paulo do ponto de vista da botânica moderna — dizendo, por exemplo, que a semente na realidade não morre — força demais a analogia. Da mesma forma, alguns comentaristas criticam a analogia de Paulo porque lhe faltava a noção da botânica moderna segundo a qual um tipo específico de semente produz um tipo específico de planta; Paulo teria pensado que somente Deus determinaria qual planta deveria brotar de qualquer semente que tivesse sido semeada (v. 38). Mas esta sugestão é muito descabida, como se Paulo pensasse ser possível que uma tamareira brotasse de um grão de milho! Ele diz especificamente que Deus dá a cada semente seu corpo (v. 38), o que remonta ao relato de Gênesis da criação segundo as espécies (Gênesis 1.11). Seja como for, isso se desvia totalmente do foco da analogia: a partir de uma simples semente, Deus produz uma planta maravilhosamente diferente.

Em seguida, Paulo apela para a analogia de diferentes tipos de carne novamente, a fim de provar que, se reconhecemos diferenças até mesmo no mundo físico, o corpo de ressurreição poderia também ser diferente do nosso presente corpo. A analogia de Paulo talvez tenha em mente o relato da criação, mas acho que a distinção judaica entre alimentos puros e impuros tem mais a ver (cf. Levítico 11; animais: 1-9; peixes: 9-12; pássaros: 13-19; insetos: 20-23; animais que rastejam: 29-30). [20] Não acho, então, que aqui σάρξ seja precisamente idêntico a σῶμα. Isto não somente reduziria o argumento de Paulo à afirmação banal de que os homens têm corpos diferentes de peixes, mas também implicaria a falsa declaração de que todos os animais têm o mesmo tipo de corpo. Antes, na relação presente, σάρξ significa “carne” ou “matéria orgânica”. Os antigos comentários estão, pois, errados ao definir σάρξ pura e simplesmente como “substância”, pois matéria inorgânica não seria σάρξ; Paulo nunca falaria da carne de uma pedra. Dizer que o corpo de ressurreição tem, portanto, um diferente tipo de carne do corpo presente provavelmente força demais a analogia; tudo que Paulo deseja mostrar é que, assim como existem diferenças entre as coisas banais, analogamente o corpo natural de ressurreição também poderia diferir do presente corpo.

A terceira analogia trata de corpos terrestres e celestes (vv. 40-41). Não pode haver dúvidas a partir do v. 41 que Paulo se refira a corpos astronômicos, e não a anjos. Novamente, o foco da analogia é o mesmo: existem diferenças radicais entre corpos no mundo físico; por que, então, o corpo no mundo vindouro não diferiria do presente corpo? A analogia de Paulo é muito certeira neste caso, pois, como os corpos celestes excedem em glória os corpos terrestres, assim também o corpo de ressurreição em relação ao corpo natural (v. 43; cf. Filipenses 3.21). [21] A δόξα dos corpos celestes é seu esplendor, que varia; aqui não aparece nenhum traço de Lichtsubstanz. Quando aplicada ao corpo de ressurreição, contudo, δόξα parece ser honra (v. 43). Paulo, então, preparou o caminho para sua doutrina do mundo vindouro por meio de três analogias do mundo presente. Todas elas mostram como as coisas podem ser radicalmente diferentes das outras coisas da mesma espécie; da mesma forma, σῶμα πνευματικόν será considerado radicalmente diferente de σῶμα ψυχικόν. Ademais, as analogias de Paulo formam uma gradação ascendente de plantas a animais, a corpos terrestres e a corpos celestes; o próximo tipo de corpo a ser mencionado será o mais maravilhoso e exaltado de todos.

Nos versículos 42-50, Paulo enuncia sua doutrina de σῶμα πνευματικόν. O corpo vindouro difere do presente corpo, na medida em que aquele será imperecível, glorioso, poderoso e espiritual, enquanto o presente corpo é perecível, desonroso, fraco e físico (vv. 42-44). Existem quatro diferenças essenciais entre o presente corpo e o corpo de ressurreição. O que elas têm a nos dizer sobre a natureza do corpo de ressurreição?

Primeiro, é semeado ἐν φθορᾷ, mas ressuscitado ἐν ἀφθαρσίᾳ. Estes termos nos mostram claramente que Paulo não está falando de egos ou “eus”, mas de corpos, pois (1) σπείρεται- ἐγείρεται tem referência primária ao sepultamento e ressurreição do corpo de um defunto, e não à “pessoa” sem vínculo com o corpo e (2) somente o corpo pode ser descrito como perecível (2Coríntios 4.16), pois o espírito do homem sobrevive à morte (2Coríntios 5.1-5; cf. Romanos 8.10; Filipenses 1.23). Antes, a disjunção em discussão diz respeito à mudança radical que ocorrerá em nossos corpos: Paulo ensina imortalidade pessoal corpórea, e não imortalidade da alma somente (cf. vv. 53-54). Por mais estranho que pareça, o ensinamento cristão (ou ao menos de Paulo) não é que nossas almas viverão para sempre, mas que teremos corpos no além.

Segundo, é semeado ἐν ἀτιμίᾳ, mas ressuscitado ἐν δόξη. Nossos presentes corpos são arruinados pelo pecado, são corpos de morte, gemendo com toda a criação para ser libertados do pecado e corrupção; ansiamos, diz Paulo, pela redenção de nossos corpos (2Coríntios 5.4; Romanos 8.19-24). Este corpo, desonrado pelo pecado e morte, será transformado por Cristo para ser como seu corpo glorioso (Filipenses 3.21). Em sentido espiritual, já temos uma antecipação dessa glória, enquanto somos conformados interiormente à imagem de Cristo e santificados por seu Espírito (2Coríntios 3.18), mas Paulo ensina que o corpo não simplesmente desvanecerá como uma casca inútil, mas será transformado para partilhar dessa glória também.

Terceiro, é semeado ἐν ἀσθενείᾳ, mas será ressuscitado ἐν δυνάμει. E como Paulo conhecia a fraqueza! Afligido por um mal corpóreo ofensivo aos demais e um fardo aos que estavam ao seu redor, Paulo encontrou em sua fraqueza o poder de Cristo (Gálatas 4.13-14; 2Coríntios 12.7-10). Em seu pobre corpo, que fora apedrejado, espancado e flagelado por causa do evangelho, Paulo carregava as marcas de Cristo, de tal maneira que ele ousou escrever: “completo no meu corpo o que resta do sofrimento de Cristo” (Colossenses 1.24). Assim como Cristo, que, “embora tenha sido crucificado em fraqueza, vive, mas pelo poder de Deus” (2Coríntios 13.4), também Paulo ansiava conhecer o poder da ressurreição e aguardava o dia quando ele também receberia o corpo de ressurreição (2Coríntios 5.1-4; Filipenses 3.10-11).

Quarto, é semeado σῶμα ψυχικόν, mas ressuscitado σῶμα πνευματικόν. Com σῶμα ψυχικόν, Paulo evidentemente não quer dizer um corpo feito de ψυχή. Antes, assim como Paulo frequentemente usa σαρκικός para indicar não a composição física de algo, mas sua orientação, seu princípio dominante, ψυχικός também indica não uma composição, mas uma orientação. No Novo Testamento, ψυχικός tem conotação negativa (1Coríntios 2.14; Tiago 3.15; Judas 19); aquilo que é ψυχικός partilha do caráter e direção da natureza humana natural. Consequentemente, a ênfase em σῶμα ψυχικόν não é que o corpo seja físico, mas, sim, natural. Da mesma forma, σῶμα ψυχικόν deveria ser traduzido corretamente como “corpo natural”; significa nosso presente corpo humano. É este corpo que será semeado, mas ressuscitado como σῶμα πνευματικόν. E, assim como σῶμα ψυχικόν não significa um corpo feito de ψυχή, tampouco σῶμα πνευματικόν significa um corpo feito de πνεῦμα. Se σῶμα πνευματικόν indicasse um corpo feito de espírito, o oposto não seria σῶμα ψυχικόν, mas, sim, σῶμα σαρκινόν. Para Paulo, ψυχή e πνεῦμα não são substâncias a partir das quais corpos são feitos, mas princípios dominantes pelos quais corpos são dirigidos. Praticamente todos os comentaristas modernos concordam neste ponto: Paulo não está falando de um corpo exclusivo feito de espírito ou éter; ele quer dizer um corpo sob o senhorio e direção do Espírito de Deus. O presente corpo é ψυχικόν, na medida em que ψυχή é seu princípio dominante (cf. ἄνθρωπος ψυχικός, 1Coríntios 2.14). O corpo vindouro será πνευματικόν não no sentido de uma substância espiritual, mas na medida em que πνεῦμα será seu princípio dominante (cf. ἄνθρωπος πνευματικός, 1 Coríntios 2.15). Não diferem enquanto σῶμα; diferem, sim, enquanto orientação. Assim, a análise filológica leva, nas palavras de Clavier, à conclusão de que “... le ‘corps pneumatique’ est, en substance, le même corps, ce corps de chair, mais controlé par l'esprit, comme le fut le corps de Jésus-Christ”. [22] O contraste não é entre corpo físico e corpo não-físico, mas entre corpo orientado naturalmente e corpo orientado espiritualmente. Por isso, penso que é muito infeliz que o termo σῶμα πνευματικόν seja comumente traduzido como “corpo espiritual”, pois isto costuma levar a equívocos, conforme Héring explica:

En français toutefois la traduction littérale corps spirituel risque de créer les pires malentendus. Car la plupart des lecteurs de langue française, étant plus ou moins consciemment cartésiens, céderont à la tendence d'identifier le spirituel avec l'inétendu et naturellement aussi avec l'im-matériel, ce qui va à l'encontre des idées pauliniennes et crée de plus une contradictio in adjecto; car que serait un corps sans étendue ni matière? [23]

Héring, portanto, sugere que é melhor traduzir σῶμα πνευματικόν como o oposto de corpo natural (σῶμα ψυχικόν), ou seja, corpo sobrenatural. Embora isto tenha a desvantagem de ignorar a conotação de πνευματικός como “dominado pelo Espírito”, evita os mal-entendidos inevitáveis gerados por “corpo espiritual”. Como Héring corretamente comentou, este último termo, entendido substantivamente, é praticamente uma contradição. Do mesmo modo, “corpo físico” é realmente uma tautologia. Assim, corpo natural/corpo sobrenatural é uma melhor representação do sentido de Paulo aqui.

Após descrever as quatro diferenças entre o presente corpo e o corpo de ressurreição, Paulo elabora a doutrina dos dois Adões. Sua afirmação de que o primeiro Adão era εἰς ψυχὴν ζῶσαν e o segundo, εἰς πνεῦμα ζῳοποιοῦν (v. 45), deve ser entendida à luz da discussão anterior. Assim como Paulo não menciona que Adão tenha sido uma alma desencarnada, tampouco quer dizer que Cristo tenha se tornado um espírito desencarnado. Seria uma contradição à doutrina da ressurreição do σῶμα. Antes, os termos se referem mais uma vez ao corpo natural feito na criação e o corpo sobrenatural produzido pela ressurreição (cf. v. 43b). Primeiro temos nossos corpos naturais aqui na terra, como o que Adão possuiu, e então teremos nossos corpos sobrenaturais na era vindoura, como o que Jesus possuiu (vv. 46,49; cf. vv. 20-23). O fato de que materialidade não está em questão aqui fica claro no v. 47:

ὁ πρῶτος ἄνθρωπος ἐκ γῆς χοϊκός,

ὁ δεύτερος ἄνθρωπος ἐξ οὐρανοῦ.

Visivelmente falta algo neste paralelo entre τὸ ψυχικόν e τὸ πνευματικόν (v. 46): o primeiro Adão é da terra, feito do pó; o segundo Adão é do céu, mas feito de[24] Claramente, Paulo se afasta da declaração de que o segundo Adão é feito de substância celeste. O contraste entre os dois Adões é em sua origem, e não em sua substância. A doutrina dos dois Adões, portanto, confirma a análise filológica. Em seguida, aparece uma frase que causou a muitos grandes dificuldades: “Mas digo isto, irmãos: Carne e sangue não podem herdar o reino de Deus; nem o que é perecível pode herdar o imperecível” (v. 50). Isto não indicaria claramente que o corpo de ressurreição será imaterial? Joachim Jeremias procurou escapar desta conclusão argumentando que “carne e sangue” se refere àqueles que estiverem vivos quando da parusia, ao passo que “perecível” se refere aos mortos em Cristo: Paulo quer dizer que nem os vivos nem os mortos, da forma como estão, podem herdar o reino de Deus, mas devem ser transformados. [25] Isto, porém, é improvável, pois requer que o v. 50 vá com o v. 51. O v. 50 não apenas parece ser uma declaração sintética do parágrafo anterior, mas também o v. 51 introduz um novo parágrafo e um novo pensamento, como indicado pelas palavras introdutórias: “Eu vos digo um mistério” e pelo fato de que algo novo e previamente desconhecido está para ser comunicado. Tampouco é preciso adotar o expediente de Bornhäuser segundo o qual Paulo quer dizer que carne e sangue se decomporão no sepulcro, mas os ossos serão ressuscitados. [26] Isso carrega consigo a falsa pressuposição de que Paulo aqui esteja falando de anatomia. Pelo contrário, os comentaristas concordam que “carne e sangue” é expressão semítica típica para denotar a frágil natureza humana. [27] Enfatiza nossa débil mortalidade em relação a Deus; portanto, a segunda metade do v. 50 se trata da elaboração de Paulo do mesmíssimo pensamento em outras palavras. O fato de que o verbo esteja no singular talvez também sugira que Paulo não esteja falando de aspectos físicos do corpo, mas de uma unidade conceitual: “carne e sangue não pode herdar...”. Em outros lugares, Paulo também emprega a expressão “carne e sangue” para significar simplesmente “pessoas” ou “criaturas mortais” (Gálatas 1.16; Efésios 6.12). Portanto, Paulo não está falando aqui de anatomia; antes, ele quer dizer que seres humanos mortais não podem entrar no reino eterno de Deus: por isso, devem se tornar imperecíveis (cf. v. 53). Esta imperecibilidade não conota imaterialidade ou inestendibilidade; pelo contrário, a doutrina paulina do mundo vindouro é que nossos corpos de ressurreição serão parte de, por assim dizer, uma criação ressurreta (Romanos 8.18-23). O universo será libertado do pecado e corrupção, e não da materialidade, e nossos corpos serão parte de tal universo.

No parágrafo seguinte, Paulo nos mostra como isso acontecerá. Quando diz: “Nem todos iremos falecer, mas todos seremos transformados” (v. 51), não fica claro com “todos” que ele queira dizer os cristãos em geral ou os cristãos vivos em sua época (cf. 1Tessalonicenses 4.15,17). Seja como for, duas coisas são claras: (1) Paulo entendia que a transformação ocorreria instantaneamente no momento da ressurreição (v. 52). Nisto ele difere drasticamente de 2Baruque 50—51, que entende que a ressurreição produz os antigos corpos novamente, que são transformados apenas após o juízo. [28] A doutrina de Paulo é que somos ressuscitados imperecíveis e glorificados. (2) Para Paulo, a ressurreição é uma transformação, e não uma troca. Klappert traça muito bem as distinções:

Es geht also in der Auferstehung nach Paulus weder 1. um eine Wiederbelebung, d. h. um eine Neuschöpfung aus ( ! ) dem Alten, noch 2. um eine Schöpfung aus dem Nichts, d. h. um eine Neuschöpfung anstelle ( ! ) des Alten, sondern 3. um eine radikale Verwandlung des sterblichen Leibes, d. h. um eine Neuschöpfung an ( ! ) dem Alten. [29]

Na ressurreição, o "ego“ de um homem não faz uma troca de corpos. Antes, o corpo natural é milagrosamente transformado em um corpo sobrenatural. A metáfora do semear e ressuscitar do corpo aponta para isso. De fato, o próprio conceito de ressurreição o implica, pois, numa troca de corpos, não haveria nada a ser ressuscitado. Quando Paulo diz: “todos seremos transformados”, quer dizer os corpos tanto dos mortos quanto dos vivos, sem distinção. A doutrina de Paulo é que, na parusia, os mortos ressuscitarão transformados de seus sepulcros e aqueles que estiverem ainda vivos também serão transformados (vv. 51-52; 1Tessalonicenses 4.16-17). O conceito de troca de corpos é uma noção peculiarmente moderna. Para os judeus, a ressurreição dos mortos dizia respeito aos restos no sepulcro, que eles entendiam ser os ossos. [30] De acordo com sua interpretação, enquanto a carne se decompunha, os ossos perduravam. Eram os ossos, portanto, o conteúdo primeiro da ressurreição. Nessa esperança, os judeus cuidadosamente reuniam os ossos dos mortos em ossuários, depois que a carne já se decompusera. Somente no caso em que os corpos tivessem sido destruídos, como aconteceu com os mártires judeus, é que se cogitava a criação divina de um corpo de ressurreição ex nihilo. É instrutivo que, na questão da ressurreição, Jesus tenha ficado ao lado dos fariseus. Ele entendia que o sepulcro é o lugar onde repousam os ossos e que os mortos nos sepulcros seriam ressuscitados (Mateus 23.27; João 5.28). É importante lembrar também que Paulo era fariseu e que Lucas identifica sua doutrina da ressurreição com a dos fariseus. A linguagem de Paulo é totalmente farisaica e é improvável que ele empregasse a mesma terminologia com sentido completamente diferente. Significa, então, que, quando Paulo diz que os mortos ressuscitarão imperecíveis, ele quer dizer os mortos nos sepulcros. Enquanto judeus e fariseu do século I, ele não poderia ter entendido a expressão de nenhuma outra maneira.

Grass, portanto, está simplesmente errado ao caracterizar a ressurreição como uma troca, uma recriação, e não uma transformação. [31] Ele apela equivocadamente ao v. 50; sua afirmação de que Paulo não tem nenhum interesse no esvaziamento dos sepulcros ignora as declarações óbvias de 1Tessalonicenses 4.16 (que, à luz do v. 14, provavelmente uma referência, segundo a ideia judaica corrente, às almas dos mortos, só pode se referir aos corpos nos sepulcros) e 1Coríntios 15.42-44, 52. Ele tenta corroborar seu argumento defendendo que a relação do mundo antigo com o novo é como de aniquilação para recriação, e isto seria análogo à relação do antigo corpo com o novo. Os textos de Grass, entretanto, são sobretudo não-paulinos (Hebreus 1.10-12; Lucas 13.31; Apocalipse 6.14; 20.11; 21.1; 2Pedro 3.10). Como vimos, a visão de Paulo é a transformação da criação (Romanos 8.18-23; cf. 1Coríntios 7.31). Segundo Paulo, é esta criação e este corpo que serão libertados do cativeiro do pecado e corrupção. Paulo, pois, cria que os corpos daqueles que estiverem vivos na parusia seriam transformados, e não descartados ou aniquilados, e que os restos (os ossos?) dos cadáveres seriam igualmente transformados.

Isso imediatamente suscita a desconcertante pergunta: o que acontece com aqueles cristãos que morrem antes da parusia? Será que simplesmente se extinguem até o dia da ressurreição? A pista para a resposta de Paulo pode ser encontrada em 2Coríntios 5.1-10. Aqui a tenda terrena = σῶμα ψυχικόν e o edifício da parte de Deus = σῶμα πνευματικόν. Quando recebemos a habitação celestial? A linguagem do v. 4 lembra incontornavelmente 1Coríntios 15.53-54, que, como vimos, faz referência à parusia. Isso evidencia que a habitação celestial não é recebida imediatamente com a morte, mas na parusia. É inacreditável que, caso Paulo tivesse mudado de ideia quanto à questão dos mortos receberem seus corpos de ressurreição na parusia, ele não teria contado aos coríntios, mas teria continuado a usar exatamente a mesma linguagem. Se o corpo fosse recebido imediatamente com a morte, não haveria razão para temer a nudez e o v. 8 ficaria ininteligível. Em suma, significaria que Paulo teria abandonado a doutrina da ressurreição dos mortos, mas suas cartas posteriores mostram que ele continuou a mantê-la.

Em 1Coríntios 15, Paulo não falou de um estado de nudez; o mortal simplesmente “se reveste” (ἐνδύσασθαι) do imortal. Já em 2Coríntios 5, ele fala do medo de ser despido e da preferência por ser revestido (ἐπενδύσασθαι), como que com uma por uma camada superior de roupa. É evidente que Paulo aqui descreve a perda do corpo terrestre como se fosse despir-se e, portanto, ficar nu. Ele preferiria não deixar o corpo, mas simplesmente ser transformado na parusia, sem experimentar a nudez da morte. Neste sentido, vestir-se com o novo corpo é como colocar uma camada superior de roupa, ou seja, não é preciso despir-se primeiro. Visto isoladamente, isso poderia ser entendido como se implicasse que a ressurreição é uma troca de corpos, e não uma transformação, mas estaria forçando demais a metáfora. Paulo não procura ser técnico, como fica evidente em seu uso comum de ἐνδυσάμενοι em v. 3; e a noção de “revestir-se” não é incoerente com o conceito de transformação, como 1Coríntios 15.53-54 deixa claro. De fato, “revestir-se” consiste precisamente em ser transformado. Nem ἔχομεν nem αἰώνιον no v. 1 indicam que o novo corpo já exista; antes, expressam a certeza da posse futura e a subsequente duração eterna do novo corpo. A ideia de que o novo corpo já exista no céu é noção impossível, pois a ideia de um σῶμα πνευματικόν inanimado, guardado no céu até a parusia, é contraditória, visto que πνεῦμα é a essência e fonte da própria vida. Antes, a partir de 1Coríntios 15, entendemos que a habitação celestial é criada na parusia por meio de uma transformação da tenda terrena, um ponto oculto pelo contraste intencional de Paulo entre as duas no v. 1, mas sugerida no v. 4 (cf. também Romanos 8.10-11, 18-23). O que Paulo quer expressar pela metáfora é que ele preferiria viver até a parusia e ser transformado a morrer e ficar despido antes de ser ressuscitado.

A nudez é, portanto, a nudez da alma ou espírito de alguém sem o corpo, uma descrição comum na literatura helenística, o que se confirma nos vv. 6-9, onde Paulo contrasta estar presente no corpo e presente com o Senhor como se fossem condições mutuamente excludentes. Paulo diz que, enquanto estamos neste corpo natural, gememos, não porque queremos deixar o corpo por meio da morte e existir como alma desencarnada, mas porque queremos ser transformados em corpo sobrenatural sem a necessidade de passar pelo estado intermediário. Apesar da inquietante perspectiva de tal estado intermediário, Paulo ainda acha melhor estar ausente do corpo e presente com o Senhor (v. 8). Cristo faz toda a diferença; para Paulo, as almas dos mortos não estão trancadas em covas e caixões até o fim do tempo, como na literatura apocalíptica judaica, nem estão “dormindo”: pelo contrário, partem para estar com Jesus e experimentam uma comunhão consciente e bem-aventurada com ele (cf. Filipenses 1.21,23) antes dele retornar à terra (1Tessalonicenses 4.14). Isto supera o pavor da nudez.

A doutrina paulina da natureza do corpo de ressurreição agora fica clara. Quando o cristão morre, seu espírito ou alma consciente parte para estar com Cristo até a parusia, enquanto seu corpo jaz no sepulcro. Quando Cristo retornar, em um só instante os restos do corpo natural serão transformados em corpo sobrenatural poderoso, glorioso e imperecível, sob o total senhorio e direção do Espírito; a alma do morto será simultaneamente reunida com o corpo, e o homem ressuscitará para a vida eterna. Então, quem estiver vivo será igualmente transformado, o antigo corpo será miraculosamente transformado no novo e todos os crentes partirão para estar com o Senhor.

Esta doutrina nos ensina muito sobre a concepção paulina do corpo de ressurreição de Cristo. Em sentido algum, Paulo entendeu que o corpo de ressurreição de Cristo fosse imaterial ou inestendido. A noção de um corpo imaterial e inestendido parece contraditória; o mais próximo disso seria uma sombra no Cheol, e com certeza esta não era a concepção de Paulo acerca do glorioso corpo de ressurreição! As únicas frases na discussão de Paulo que poderiam dar margem a uma “desmaterialização” do corpo de Cristo são σῶμα πνευματικόν e “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus”. Praticamente todos comentaristas modernos concordam que tais expressões não têm nada a ver com substancialidade ou anatomia, como vimos. Antes, a primeira fala da orientação do corpo de ressurreição, ao passo que a segunda se refere à mortalidade e fragilidade do corpo natural, em contraste com Deus.

É muito difícil, portanto, entender como teólogos conseguem persistir em descrever o corpo de ressurreição de Cristo como espírito intangível e invisível; parece haver aí uma grande lacuna entre exegese e teologia. Só posso concordar com O’Collins, quando afirma que, nesse contexto, “o platonismo pode ser mais resistente do que suspeitamos”. [32] Com toda a boa vontade do mundo, é muitíssimo difícil ver qual é a diferença entre um “corpo” espiritual, inestendido e imaterial e a imortalidade da alma. E, mais uma vez, isto não se trata mesmo da doutrina de Paulo! Assim, o segundo argumento favorável a Jesus ter um corpo de ressurreição puramente espiritual também é frustrado.

Vimos, pois, que as tradições da aparição de Jesus a Paulo não descrevem o evento como se fosse uma experiência puramente visionária; pelo contrário, complementos extramentais estavam envolvidos. Paulo não dá nenhuma forte indicação quanto à natureza da aparição; a partir de sua doutrina da natureza do corpo de ressurreição, poderia teoricamente ter sido tão física quanto qualquer aparição nos evangelhos. E Paulo insiste, sim, que se tratou de uma aparição, e não de uma visão. Lucas considerava o modo da aparição de Jesus a Paulo como algo singular, pois foi um encontro pós-ascensão. O próprio Paulo não dá nenhuma pista de que considerasse que a aparição a ele tivesse sido de alguma maneira normativa para as outras aparições ou determinante para a doutrina do corpo de ressurreição. Pelo contrário, Paulo também reconhecia que a aparição a ele foi uma anomalia, usada para ficar à altura da objetividade e realidade das demais aparições. Além disso, Paulo concebia que o corpo de ressurreição fosse um corpo poderoso, glorioso, imperecível e guiado pelo Espírito, criado mediante transformação do corpo terrestre ou seus restos e feito para habitar o novo universo no porvir. A consequência de tudo isso é a conclusão inusitada de que a doutrina de Paulo sobre o corpo de ressurreição é potencialmente mais física do que a doutrina dos evangelhos e, se o corpo de ressurreição de Cristo for entendido numa maneira não tão física, tal restrição deverá vir da parte dos evangelhos, e não de Paulo.

Assim, embora muitos teólogos tentem jogar o “massiver Realismus” dos evangelhos contra uma doutrina paulina do corpo espiritual de ressurreição, tal raciocínio se baseia em mal-entendido fundamental e drástico da doutrina de Paulo. Só se pode suspeitar que a verdadeira razão para o ceticismo acadêmico no que diz respeito à historicidade das aparições dos evangelhos seja que, como Bultmann afirmou abertamente, isso seria ofensivo ao “homem moderno”, e que Paulo tenha sido transformado num cúmplice forçado nas tentativas dos críticos de encontrar razões para apoiar uma conclusão já ditada por pressupostos filosóficos a priori. Paulo, contudo, não se permitirá ser assim utilizado; exegese cuidadosa da doutrina paulina apoia plenamente o corpo físico de ressurreição. E, deve-se dizer, foi assim que os cristãos do século I aparentemente o entenderam, pois as cartas de Clemente e Inácio provam logo no início ampla aceitação da doutrina da ressurreição física em igrejas do século I, incluindo as mesmas igrejas onde o próprio Paulo ensinara. Por isso, os estudiosos que contestam a historicidade das narrativas de ressurreição dos evangelhos, em vista de seu fisicalismo, perdem o chão.

Muito mais do que isso: dada a proximidade temporal e pessoal de Paulo às testemunhas originais das aparições da ressurreição, a historicidade da ressurreição corpórea de Jesus pode dificilmente ser negada. O fisicalismo dos evangelhos não pode, então, ser descartado como se fosse elaboração lendária ou teológica posterior; pelo contrário, o que vemos a partir de Paulo é que estava ali desde o princípio. E, se estava ali desde o princípio, deve ter sido historicamente bem fundamentado — do contrário, fica difícil explicar como as primeiras testemunhas creriam nisso. Embora se repita constantemente que o fisicalismo dos evangelhos se trate de apologética antidocética, não se produz nem sequer uma prova a favor de tal afirmação — e mera afirmação não é prova de nada. Vimos que tanto o contato pessoal quanto a proximidade temporal de Paulo aos discípulos originais excluem uma elaboração posterior da noção de ressurreição física, algo implicado pela hipótese antidocética. E a doutrina de Paulo dificilmente pode ser descartada como apologética antidocética, pois foi com o materialismo grosseiro da doutrina judaica da ressurreição que os oponentes coríntios de Paulo provavelmente engasgaram (1Coríntios 15.35), de modo que Paulo achou necessário enfatizar a transformação do corpo terrestre em corpo sobrenatural. Apologética antidocética teria sido contraproducente. Por isso, as informações de Paulo excluem que a ressurreição física fosse uma elaboração apologética dos evangelhos visando o docetismo.

Colocando de lado essa consideração, existem ainda outras razões para pensar que, nas narrativas dos evangelhos, não se tem em vista o docetismo: (1) para um judeu, o próprio termo “ressurreição” acarretava uma ressurreição física dos mortos no sepulcro. A noção de uma “ressurreição espiritual” não era apenas desconhecida, mas se tratava de uma contradição. Sendo assim, ao dizer que Jesus ressuscitou e apareceu, os primeiros crentes devem ter entendido isso do ponto de vista físico. Foi o docetismo que reagiu a esse fisicalismo, e não o contrário. A ressurreição física é, portanto, primitiva e anterior, enquanto o docetismo é a reação posterior de reflexão teológica e filosófica. (2) Além disso, se “aparições espirituais” tivessem sido originais, é difícil ver como aparições poderiam ter sido elaboradas. Pois (a) a afronta do docetismo seria, então, removida, uma vez que os cristãos também criam em aparições puramente espirituais e (b) a doutrina de aparições físicas seria apologética contraproducente, tanto para judeus quanto para pagãos; para judeus, porque não aceitavam uma ressurreição individual dentro da história e, para pagãos, porque sua crença na imortalidade da alma não poderia acomodar a vulgaridade da ressurreição física. A igreja teria, pois, retido suas aparições puramente espirituais. (3) Ademais, o docetismo visava sobretudo a negar a realidade da encarnação de Cristo (1João 4.2-3; 3João 7), e não a ressurreição física. Os docetas não estavam tão interessados em negar a ressurreição física quanto em negar que o Filho de Deus perecera na cruz; consequentemente, alguns criam que o Espírito abandonara o Jesus humano na crucificação, deixando-o morrer e fisicamente ressuscitar (Ireneu, Contra as heresias 1.26.1). Apologética antidocética visando a provar ressurreição física, portanto, foge completamente do ponto. (4) As demonstrações de corporeidade e continuidade nos evangelhos, bem como outras aparições físicas, não foram acréscimos redacionais de Lucas ou João, como fica evidente a partir da comparação entre Lucas 24.36-43 e João 20.19-43 (portanto, é incorreto falar, por exemplo, da “apologética de Lucas contra o gnosticismo”), mas parte das tradições recebidas pelos evangelistas. O docetismo, no entanto, foi elaboração teológica posterior, atestada nas cartas de João. Portanto, os relatos dos evangelhos sobre a ressurreição física tendem a antedatar o surgimento e ameaça do docetismo. Na realidade, nem mesmo todos os gnósticos posteriores negavam a ressurreição física (cf. Evangelho de Filipe, Carta de Tiago e Epístola a Regino). É interessante que, no fim acrescentado a Marcos, existe até uma mudança das provas materiais da ressurreição para repreensão por parte de Jesus à descrença dos discípulos. (5) As próprias demonstrações não manifestam o rigor da apologética contra o docetismo. Tanto em Lucas quanto em João, não se diz que os discípulos ou Tomé de fato tenham aceitado o convite de Jesus para tocá-lo e provar que ele não era um espírito. Contraste as declarações de Inácio segundo as quais os discípulos tocaram Jesus fisicamente, sim (Inácio, Aos esmirniotas 3.2; cf. Epistula apostolorum 11-12). Conforme disse Schnackenburg, se apologia antidocética estivesse envolvida nos relatos dos evangelhos, deveria ter sido feito muito mais do que Jesus simplesmente mostrar as feridas. [33] (6) O caráter incidental e ocasional da ressurreição física na maior parte dos relatos mostra que o fisicalismo era pressuposição natural dos relatos, e não a apresentação de um ponto apologético. Por exemplo, quando as mulheres abraçaram os pés de Jesus, não se tratou de ponto polêmico, mas apenas de sua reação de adoração. Da mesma maneira, Jesus disse: “Não me segures”, embora não se diga explicitamente que Maria o tenha feito; não se trata de esforço consciente para provar a ressurreição física. As aparições no monte e próximas ao mar de Tiberíades pressupõem bem naturalmente um Jesus físico; não se trata de uma tentativa de marcar pontos contra o docetismo. Em conjunto, estas considerações sugerem vigorosamente que as aparições físicas não se trataram de apologética ao docetismo, mas sempre parte da tradição da igreja; não existe nenhuma boa razão para duvidar que Jesus tenha, de fato, mostrado aos seus discípulos que ressuscitara fisicamente.

E deve-se dizer que, a despeito do desdém de alguns teólogos pela concepção evangélica da natureza do corpo de ressurreição, é verdade que, como Paulo, os evangelhos traçam um curso cuidadoso entre materialismo grosseiro e a imortalidade da alma. Por um lado, toda aparição evangélica de Jesus que é narrada se trata de aparição física. [34] A unanimidade dos evangelhos neste ponto é muito impressionante, especialmente em vista do fato de que as histórias de aparição representam em grande medida tradições independentes; confirmam a doutrina de Paulo segundo a qual é o corpo terrestre que ressuscita. Por outro lado, os evangelhos insistem que a ressurreição de Jesus não era simplesmente a ressuscitação de um cadáver. Lázaro viria a morrer novamente algum dia, mas Jesus ressuscitou para a vida eterna (Mateus 28.18-20; Lucas 24.26; João 20.17). Seu corpo de ressurreição possuía poderes que nenhum corpo humano normal possui. Assim, em Mateus, quando o anjo abre o sepulcro, Jesus não vem para fora; na realidade, ele já fora. Da mesma maneira, em Lucas, quando os discípulos de Emaús o reconhecem no partir do pão, ele desaparece. Na mesma tarde, Jesus aparece a Pedro, a quilômetros de distância em Jerusalém. Quando os discípulos de Emaús finalmente se unem aos discípulos em Jerusalém naquela noite, Jesus repentinamente aparece em seu meio. João diz que as portas estavam fechadas, mas Jesus estava ali em pé no meio deles. Uma semana depois, Jesus faz a mesma coisa. Com muita frequência, comentaristas comentem o erro de afirmar que Jesus entrou pelas portas fechadas, mas nem João nem Lucas dizem isso. Antes, Jesus simplesmente apareceu na sala; contraste com os mitos pagãos em que deuses entram em salas como névoa através do buraco da fechadura (Homero, Odisseia 6.19-20; Hinos homéricos 3.145)! De acordo com os evangelhos, Jesus, em seu corpo de ressurreição, tinha a capacidade de aparecer e sumir como bem entendesse, independentemente de limitações espaciais.

Muitos estudiosos gaguejam com “um espírito não tem carne nem ossos, como percebeis que eu tenho” de Lucas, alegando que se trata de contradição direta a Paulo. De fato, Paulo fala de “carne e sangue”, e não de “carne nem ossos”. A diferença seria importante? Com toda certeza! “Carne e sangue”, como vimos, é expressão semítica para a natureza humana mortal e não tem nada a ver com anatomia. Paulo concorda com Lucas quanto à fisicalidade da ressurreição. Além disso, tampouco “carne nem ossos” tinha a intenção de ser descrição anatômica. Antes, a partir da ideia judaica de que são os ossos que ficam preservados e ressuscitam (Gênesis R. 28.3; Levítico R. 18.1; Eclesiastes R. 12.5), a expressão conota a realidade física da ressurreição de Jesus. Michaelis escreve o seguinte:

Wenn nach Lukas ein Geist weder Fleisch noch Knochen hat, der Auferstandene aber kein Geist ist, so besagt das nicht, dass der Auferstandene, mit der paulinischen Terminologie zu reden, kein "pneumatisches (verklärtes, himmlisches) Soma", sondern ein "psychisches (natürliches, irdisches) Soma" habe. Mit Fleisch und Knochen in der lukanischen Aussage ist vielmehr (wie zugeben werden muss, in einem kräftigen Ausdruck, den Paulus aber nicht unbedingt als "lästerlich" empfunden haben müsste) das ausgedrückt, was Paulus mit dem Begriff "Soma" (Leib, Leiblichkeit) ausdrückt. Durch den Hinweis auf Fleisch und Knochen soll nicht der pneumatische Charakter dieses Soma bestritten, sondern die Realität des Somatischen bezeugt werden. Auch Lukas steht, wie sich zudem aus der Gesamtheit der bei ihm sich findenden Hinweise ergibt (vgl. 24.13ff; Apg. 1.3), unter der Voraussetzung, dass es sich bei den Erscheinungen nur um Begegnungen mit dem Auferstandenen in seiner verklärten Leiblichkeit handeln kann. [35]

O objetivo da declaração de Jesus é assegurar aos discípulos que se tratava de uma ressurreição real, no sentido próprio e judaico da palavra, e não da aparição de um πνεῦμα incorpóreo. Embora destaque corporeidade, sua ênfase primária não está nos componentes do corpo. Assim, nem Paulo nem Lucas estão falando de anatomia e ambos concordam quanto à fisicalidade bem como sobrenaturalidade do corpo de ressurreição de Jesus.

Para concluir, vimos que o argumento crítico desenvolvido para criar uma divisão entre Paulo e os evangelhos é falacioso. Nem o argumento a partir da aparição a Paulo nem o argumento a partir da doutrina de Paulo do corpo de ressurreição servem para opor Paulo aos evangelhos. Muito pelo contrário: vimos que as informações de Paulo servem para confirmar as narrativas dos evangelhos sobre a ressurreição corpórea de Jesus e que seu fisicalismo é provavelmente bem fundamentado historicamente, isto é, Jesus ressuscitou, sim, corporalmente dentre os mortos e apareceu fisicamente aos discípulos. Por último, vimos que os evangelhos apresentam, como Paulo, uma visão equilibrada da natureza do corpo de ressurreição de Jesus. Por um lado, Jesus tem um corpo — ele não é uma alma desencarnada. Tanto para os evangelhos quanto para Paulo, a encarnação é estado duradouro, e não limitado a uns trinta e poucos anos da vida terrena de Jesus. Por outro lado, o corpo de Jesus é corpo sobrenatural. Devemos ter bem claro em nossa mente que, para os evangelhos bem como Paulo, Jesus ressuscita glorificado do sepulcro. Os evangelhos e Paulo concordam que as aparições de Jesus cessaram e que fisicamente ele deixou este universo por tempo indeterminado. Durante sua ausência física, ele está presente por meio do Espírito Santo, que opera em seu lugar. Algum dia, porém, ele retornará pessoalmente para julgar a humanidade e para estabelecer seu reino sobre toda a criação.

  • [1]

    Esta pesquisa foi possível graças à generosa bolsa da Fundação Alexander von Humboldt, sendo conduzida nas universidades de Munique e Cambridge. As conclusões completas desta pesquisa aparecerão em dois volumes a ser lançados: The Historical Argument for the Resurrection of Jesus: Its Rise, Decline, and Contribution e The Historicity of the Resurrection of Jesus.

  • [2]

    Hans Grass, Ostergeschehen und Osterberichte (4. ed.; Gotinga: Vandenhoeck & Ruprecht, 1970).

  • [3]

    John E. Alsup, The Post-Resurrection Appearance Stories of the Gospel-Tradition (Stuttgart: Calwer Verlag, 1975), 32.

  • [4]

    Ibid., 34.

  • [5]

    Ibid., 54.

  • [6]

    Robin Scroggs, The Last Adam (Oxford: Basil Blackwell, 1966), 92-3.

  • [7]

    Grass, Ostergeschehen, 222.

  • [8]

    Ibid., 219-20.

  • [9]

    Ver ibid., 189-207.

  • [10]

    Ibid., 229-32.

  • [11]

    Sobre o conceito, o trabalho mais significativo, que aqui sigo, é Robert H. Gundry, Soma in Biblical Theology (Cambridge: Cambridge University Press, 1976).

  • [12]

    C. Rolsten, Zum Evangelium des Paulus und des Petrus (Rostock: Stiller, 1868); Hermann Lüdemann, Die Anthropologie des Apostels Paulus und ihre Stellung innerhalb seiner Heilslehre (Kiel: Universitätsverlag, 1872); é surpreendente que assim o tenha feito também Hans Conzelmann, Der erste Brief an die Korinther (KEKNT 5; Gotinga: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969), 335.

  • [13]

    Ver a refutação em seis pontos em Gundry, Soma, 161-2.

  • [14]

    Ver ibid., 122, 141. A maioria dos textos de Gundry não apoia o dualismo, mas simplesmente o aspectualismo; quando, porém, ele cita textos que claramente contemplam a separação entre alma ou espírito e corpo no momento da morte, sua defesa do dualismo é forte e convincente.

  • [15]

    Gundry, Soma, 50.

  • [16]

    Robert Jewett, Paul's Anthropological Terms (AGAJY 10; Leiden: E.J. Brill, 1971), 211.

  • [17]

    Gundry, Soma, 167.

  • [18]

    Ibid., 80.

  • [19]

    O ensino de Paulo é essencialmente a doutrina judaica de corpos glorificados, conforme Johannes Weiss, Der erste Korintherbrief (9. ed.; KEKNT 5; Gotinga: Vandenhoeck & Ruprecht, 1910), 345: W. D. Davies, Paul and Rabbinic Judaism (2. ed.; Londres: SPCK, 1965), 305-8; Ulrich Wilckens, Auferstehung (Stuttgart e Berlim: Kreuz Verlag, 1970), 128-31; Joseph L. Smith, 'Resurrection Faith Today', TS 30 (1969): 406.

  • [20]

    Sobre os diferentes tipos de carne, ver o tratado Chulin 9.1, onde o autor explica que não se pode cozinhar carne no leite, a menos que seja a carne de peixe ou gafanhotos; ave pode ser servida na mesa com queijo, mas não comida com ele. Ver também Davies, Paul, 306.

  • [21]

    Cf. 2Baruque 51.1-10, onde a glória do justo parece ser um esplendor literal como o das estrelas. Para Paulo, a glória da justiça parece significar majestade, honra, exaltação, etc., e não tanto resplendor físico, que é meramente análogo. Ver Joseph Coppens, “La glorification céleste du Christ dans la théologie néotestamentaire et l'attente de Jésus”, em Resurrexit (ed. Édouard Dhanis; Roma: Editrice Libreria Vaticana, 1974), 37-40.

  • [22]

    R. Clavier, “Breves remarques sur la notion de swma pneumatikon”, em The Background of the New Testament and Its Eschatology, ed. W. D. Davies e D. Daube (Cambridge: Cambridge University Press, 1956), 361. A despeito dos indícios filológicos, Clavier opta por um entendimento substancial de corpo espiritual, por dois motivos: (1) na analogia semente/planta, a planta não é numericamente idêntica à semente e (2) 1Coríntios 15.50. A primeira razão é espantosa, pois a planta com certeza é numericamente idêntica à semente! Forçar a analogia tanto assim apoia a continuidade do corpo de ressurreição com o corpo terrestre. Clavier infelizmente não entende direito o v. 50, como fica evidente em sua observação de que Paulo deveria ter mencionado ossos, além de carne e sangue.

  • [23]

    Jean Héring, La première épître de saint Paul aux Corinthiens (2. ed., CNT 7; Neuchâtel, Suíça: Delachaux et Niestlé, 1959), 147.

  • [24]

    A alternativa seria: “o primeiro Adão é feito do pó da terra; o segundo Adão é do céu”. O primeiro tem a ver com constituição e o segundo, com origem. Ver também TWNT, s. v. πνεῦμα, por Kleinknecht et al.

  • [25]

    Joachim Jeremias, "'Flesh and Blood Cannot Inherit the Kingdom of God’ (I Cor. XV. 50)”, NTS 2 (1955-6): 151-9.

  • [26]

    Karl Bornhäuser, Die Gebeine der Toten (BFCT 26; Gütersloh: C. Bertelsmann, 1921), 37.

  • [27]

    Encontra-se em Mateus 16.17; Gálatas 1.16; Efésios 6.12; Hebreus 2.14; ver também Eclesiástico 14.18 e as referências em Hermann L. Strack e Paul Billerbeck (eds.), Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch (5. ed., 6 vols.; Munique: C. H. Beck, 1969), 1: 730-1, 753. O par de palavras semíticas σὰρξ καὶ αἷμαé atestado pela primeira vez em Eclesiástico 14.18; 17.31 e aparece frequentemente em textos rabínicos, principalmente parábolas, como בשר ודם.

  • [28]

    De acordo com Baruque, os antigos corpos são ressuscitados com o fim de reconhecimento, para que o os vivos saibam que os mortos ressuscitaram. Para Paulo, porém, os crentes, assim como Cristo, levantam-se glorificados dos sepulcros.

  • [29]

    Berthold Klappert, "Einleitung“, em Diskussion um Kreuz und Auferstehung (Wuppertal: Aussaat Verlag, 1971), 15.

  • [30]

    Ver Bornhäuser, Gebeine; C. F. Evans, Resurrection in the New Testament (SBT 2/12; Londres: SCM, 1970), 108; Walther Grundmann, Das Evangelium nach Lukas (8. ed., THKNT 3; Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1978), 451.

  • [31]

    Grass, Ostergeschehen, 154.

  • [32]

    Gerald O'Collins, The Easter Jesus (Londres: Darton, Longman & Todd, 1973), 94.

  • [33]

    Rudolf Schnackenburg, Das Johannesevangelium (3 vols., 2. ed., HTKNT 4; Friburgo: Herder, 1976), 3: 383. Isso se aplica tanto à aparição aos Doze quanto a Tomé, conforme ele argumenta.

  • [34]

    Conquanto haja críticos que queiram interpretar a aparição no topo do monte em Mateus como se fosse visão celestial semelhante à de Paulo, tal tentativa parece fútil. Mateus considerou claramente que a aparição de Jesus fora física, como fica evidente em sua aparição às mulheres (Mateus 28.9,10) e sua comissão aos discípulos. Mesmo na própria aparição, existem sinais de fisicalidade: a adoração dos discípulos a Jesus recorda a ação das mulheres no v. 9 e não corresponde bem a uma aparição celestial; e, quando Jesus veio até os discípulos (προσελθών), parece que se mostra decisivamente uma aparição física.

  • [35]

    Wilhelm Michaelis, Die Erscheinungen des Auferstandenen (Basileia: Heinrich Majer, 1944), 96.