#661 As genealogias de Gênesis 1—11
February 02, 2020Fico fascinada e perplexa com seu estudo recente sobre os primeiros capítulos de Gênesis. Perplexa porque é tão diferente de tudo que me foi ensinado nos meus 35 anos de vida! Sinto quase como se tivessem puxado o tapete debaixo de mim. Tenho ouvido suas aulas do curso Defenders sobre o assunto e confesso que não estou plenamente satisfeita com algumas de suas respostas e soluções a alguns dos “problemas” desses capítulos iniciais.
Uma área que me incomoda é as genealogias de Gênesis. Ouvi no passado que “gerar” não implica que a pessoa é filho direto, por assim dizer. Usava-se isto para argumentar que os seres humanos poderiam ter existido por muito mais tempo do que alguns milhares de anos. No entanto, mesmo que isto seja verdade, fico perplexa que a genealogia em Gênesis 5 pareça dar idades exatas nas quais outra pessoa nasceu (por exemplo, “Sete viveu cento e cinco anos e gerou Enos”). É a idade de Sete quando Enos nasceu que me incomoda, e não se Enos é o filho, neto ou bisneto de Sete.
Pelo que me lembro de sua aula, o senhor pareceu desconsiderar as genealogias, dizendo que não devem ser tomadas literalmente. Mas por quê? Acho que não estou convencida de que os leitores originais teriam lido as genealogias como exagero. Parece-me que tinham a intenção de ser entendidas literalmente, dada a sua especificidade. Ao menos é o que me parece, quando as leio.
Tenho outra pergunta, que eu sei não ter resposta; porém, tenho curiosidade de ver como o senhor lidou com ela, já que ela me é, sem dúvida, motivo de confusão. Se os seres humanos existem por, digamos, 100 mil anos (em números modestos, não?), por que Deus esperaria até os últimos poucos milhares de anos para dar à humanidade a revelação especial? Por que ele permitiria que os seres humanos vivessem e morressem por mais de 90 mil anos antes de chamar para si uma nação e enviar um salvador? Entendo que, obviamente, Deus pode salvar qualquer um, em qualquer tempo... porém, não me faz sentido algum que ele esperasse por tanto tempo para dar a revelação especial às pessoas. Obviamente, não posso saber todos os motivos de por que Deus faz o que faz; então, talvez, não seja uma pergunta que devesse me incomodar. Mas, ainda assim, fico incomodada! Até demais! Agradeço por sua atenção e esclarecimentos.
Rebecca
Estados Unidos
United States
Dr. Craig responde
A
Tenho esse mesmo fascínio e perplexidade sobre minha pesquisa recente sobre o Adão histórico que você, Rebecca! É inquietante.
Fico surpreso, no entanto, com sua afirmação de que eu pareça “descartar as genealogias”, quando, pelo contrário, as genealogias de Gênesis 1—11 foram cruciais para meu argumento de que as histórias de Gênesis 1—11 não são puro mito, mas têm importância histórica.
Defendi que as narrativas de Gênesis 1—11 partilham o suficiente das semelhanças familiares de mitos para qualificar-se como mitos hebraicos. Não se trata, porém, da história toda. Isto porque o interesse de Gênesis 1—11 na história se expressa com mais clareza nas genealogias que ordenam as narrativas cronologicamente.
As narrativas de Gênesis são intercaladas com notas genealógicas que incluem as principais personagens das narrativas. São introduzidas com a fórmula convencional: “estão são as gerações [tôledôt] de...”, que pontua as narrativas por todo o livro (2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10, 27; 25.12, 19; 36.1, 9; 37.2). Ao ordenar as principais personagens em linhas de descendência, as fórmulas de tôledôt transformam as narrativas primevas em história primeva. Não temos em Gênesis 1—11 um aglomerado de histórias pré-históricas desordenadas, mas um relato cronológico que começa no momento da criação e se arrasta até o chamado de Abraão. As genealogias se imbuem harmoniosamente no período histórico dos patriarcas, onde a importância histórica é óbvia e não está em discussão. Como Abraão é apresentado como pessoa histórica, assim também o são seus ancestrais.
Conforme indica John Walton, estudioso de Antigo Testamento, não há provas de que genealogias antigas incluíssem indivíduos que, segundo se cria, não existiram.[1] De fato, com relação a muitos dos reis nas listas reais da antiga Mesopotâmia, temos certeza de que existiram.[2] “Consequentemente, não haveria nenhum precedente para pensar nas genealogias bíblicas de outra forma. Ao colocar Adão em listas de ancestrais, os autores das Escrituras o estão tratando como pessoa histórica.”[3]
Não obstante, genealogias antigas não eram a obra de historiadores isentos, mas podiam servir a fins não-históricos. Por exemplo, a genealogia que constitui a Tabela das Nações, em Gênesis 10, apesar das notas “filhos de” e “gerou”, não trata de relações de sangue, mas elenca as pessoas com base em fatores políticos, linguísticos, geográficos e outros fatores semelhantes — e o autor de Gênesis bem sabia disso. É exemplo clássico da maneira como genealogias podem servir a objetivos domésticos, políticos e religiosos.
Em genealogias lineares, compressão e fluidez são traços comuns. Lacunas nas listas de reis sumérias, assírias e babilônicas são comuns. Assim, será que as genealogias de Gênesis 1—11 permitem longas lacunas? Quando o tôledôt de Adão em 5.1-32 é colocado ao lado do tôledôt de Sem em 11.10-26, há uma sucessão de descendentes de Adão até Abraão que parece não permitir nenhuma geração perdida, por causa da forma empregada repetidamente: “X viveu n anos e gerou Y; e Y viveu m anos e gerou Z”. Ao estipular a idade do pai no momento do nascimento da prole, parece que se excluem lacunas.
A completude das genealogias de Gênesis foi, porém, contestada por W. H. Green, em artigo influente.[4] Em apoio à sua asserção de que as genealogias de Gênesis 5 e 11 não precisam ser entendidas como completas, Green acrescenta cinco linhas de argumentação:
(i) Em inúmeras outras genealogias bíblicas, há provas incontroversas de condensação.
(ii) Em lugar algum, o autor resume as idades das pessoas elencadas nem deduz nenhuma afirmação cronológica em relação ao tempo que se passou desde a criação ou desde o dilúvio, como se faz da descida ao Egito até o êxodo (Êxodo 12.40) ou do êxodo até a construção do templo (1 Reis 6.1).
(iii) O paralelo mais próximo ao intervalo de tempo da história primeva é o tempo da escravidão de Israel no Egito, que está conectada apenas por meio de uma genealogia que se estende de Levi até Moisés e Arão (Êxodo 6.16-26), não podendo ter registrado todos os elos naquela linha de descendência e não podendo, portanto, pretender ser usada como base para a computação cronológica.
(iv) Na medida em que os registros e monumentos do Egito antigo mostram que o intervalo entre o dilúvio e o chamado de Abraão deve ter sido maior do que o que se depreende da genealogia de Gênesis 11, eles se voltam contra a suposição de que esta genealogia tivesse a intenção de prover os elementos para uma computação cronológica.
(v) A estrutura simétrica das genealogias em Gênesis 5 e 11 favorece a crença de que elas não registram todos os nomes em suas respectivas linhas de descendência.
Todos estes pontos são bem aceitos. Comentaristas contemporâneos impressionam-se em especial com a simetria artificial de dez ancestrais antediluvianos de Adão até Noé, seguidos por dez ancestrais pós-diluvianos de Sem até Abraão. Uma genealogia semelhante aparece em Rute 4.18-22, além de diversas listas de reis sumérias, assírias e babilônicas. Nahum Sarna comenta: “A conclusão é inequívoca: temos uma esquematização simétrica deliberada da histórica, figurando significativos segmentos de tempo, engenhosamente equilibrados, como forma de expressar o ensino bíblico fundamental de que a história é importante”.[5] Também notável é que o autor não tenha resumido as idades das pessoas elencadas, o que sugere certa indiferença quanto ao intervalo geral de tempo. Pode-se comparar, neste aspecto, a lista real suméria, que fornece os totais e subtotais de reinados antediluvianos e pós-diluvianos.[6]
Além disso, parece improvável que o tempo de vida dos patriarcas antediluvianos tenha a pretensão de ser literal. Na lista real suméria, os reis antediluvianos também têm reinados fantasticamente longos, chegando a 43.200 anos para um só reinado, com as durações diminuindo após o dilúvio. Em Gênesis, o dilúvio igualmente interrompe as genealogias em 5.32 e 9.28, e atribuem-se tempos de vida fantasticamente longos aos antediluvianos, mesmo que sejam menos extravagantes que os reinados dos reis mesopotâmicos, além de tempos de vida reduzidos após o dilúvio. O autor de Gênesis saberia por si só como tais tempos de vida ancestrais eram fantásticos, o que nos dá razão para pensar que as genealogias não se pretendem história pura e simples. Não há consenso entre os estudiosos de Antigo Testamento quanto ao motivo ou significado dos fantásticos tempos de vida atribuídos aos antediluvianos.
É possível inserir pequenas lacunas nas genealogias de Gênesis 5 e 11 ao interpretar “pai” como se significasse “avô” (cf. Gênesis 46.12, 25; 46.16-18): “quando X viveu n anos, tornou-se avô de Y; e, quando Y viveu m anos, tornou-se avô de Z”. Tais lacunas, contudo, são limitadas, já que o progenitor deve ainda ter certa idade quando nasce seu descendente. Além disso, poucas notas nas genealogias conectam de perto os sucessores — por exemplo, os comentários de Lameque sobre o significado do nome de Noé. A sugestão de que “X foi pai de Y” possa significar “X foi pai da linhagem que culmina em Y” é implausível, uma vez que as genealogias subentendem que X ainda está vivo quando a linhagem culmina em Y.
Portanto, como devemos entender as genealogias de Gênesis 1—11? Com base nos estudos comparados da literatura suméria, o destacado assiriólogo Thorkild Jacobsen propôs que reconheçamos um gênero literário singular que ele denominou de “mito-história”. Um bom exemplo do gênero mito-histórico mais próximo de leitores ocidentais seria o relato de Homero da guerra de Troia na Ilíada. De acordo com o classicista G. S. Kirk, “Boa parte da Ilíada tem, evidentemente, conteúdo historicizante... mesmo os menos seguros da existência de uma ‘Guerra de Troia’ concedem que algum ataque ocorreu e que alguns Aqueus estavam por trás do ataque... a história se baseia em algum tipo de memória do passado e... seu progresso é descrito em termos deveras realísticos”.[7] A maior exceção é o papel dos deuses na história. Porém, Kirk crê que, longe de serem “uma selva mitopoética”, muitas das personificações de fenômenos físicos e impulsos psicológicos que se encontram na Ilíada e na Odisseia “têm mais chances de fazerem parte de uma convenção literária antiga e arcaísta do que de representarem o estado das suposições homéricas sobre causação”.[8] Mitos gregos, portanto, oferecem um exemplo de “história mítica”.[9]
Embora as genealogias de Gênesis 1—11 evidenciem interesse em história por parte do autor e seu público, é importante ter em mente que é uma mito-história que está sendo narrada. Cálculos cronológicos se tornam inapropriados para tal gênero. Kenneth Kitchen observa que, no Antigo Oriente Próximo, as pessoas já tinham conhecimento de que o mundo era extremamente antigo.[10] As listas reais mesopotâmicas indicam que reis tinham reinado na Babilônia por 241.200 anos antes do dilúvio, o que se seguiu por outros 26.997 anos de reinados. Segundo o sacerdote babilônico Berosso, reis tinham reinado na Babilônica por 432 mil anos antes do dilúvio[11]
Em contraste, as genealogias bíblicas sabidamente totalizam meros 1656 anos de Adão até o dilúvio, com mais 367 anos do dilúvio até o chamado de Abraão. Estas genealogias levam a dificuldades, caso entendidas literalmente; por exemplo, Noé ainda está vivo quando nasce Abraão, e Sem vive 35 anos após a morte de Abraão. Gênesis apresenta uma história mitológica do mundo que é extremamente curta pelos padrões antigos, rigorosamente limitada pelas notas genealógicas de pai-filho que parecem não contemplar nenhuma lacuna de dezenas de milhares de anos entre si. Não devemos imaginar que as genealogias contemplem os enormes saltos necessários para harmonizá-las com o que sabemos da história humana; tampouco devemos pensar que elas contêm pura e simplesmente personagens fictícias. Podemos evitar esses extremos ao entender que a breve história por elas relatada se trata de mito-história, sem a pretensão de ser compreendida literalmente.
Quanto à sua última preocupação, conforme expliquei em meu debate com Christopher Hitchens, por causa da explosão da população mundial, o número de pessoas vivendo antes do tempo de Cristo, mesmo centenas de milhares de anos antes, torna-se cada vez mais trivial em comparação com o número de pessoas vivas hoje. Por isso, não há nenhum problema no fato de que Deus tenha aguardado “a plenitude dos tempos” (Gálatas 4.4) na qual enviaria seu Filho para redimir a humanidade. Cristo morreu não apenas por aqueles que viriam após si, mas por aqueles que viveram antes — incluindo homens de Neandertal e de Denisova, caso eles tenham, de fato, pertencido à família humana.
[1] John H. Walton, “Response from the Archetypal View”, in Matthew Barrett e Ardel B. Caneday, eds., Four Views on the Historical Adam, Counterpoints (Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 2013), p. 69.
[2] Jacobsen escreveu: “Nossa conclusão sobre o valor história da lista de reis deve ser, portanto, que, embora o arranjo, a sucessão de várias dinastias, possa ser considerado construção posterior sem nenhuma relevância, possuímos no próprio material daquele documento uma fonte histórica de alto valor, da qual deveriam ser separados apenas alguns reinados que ocorreram com os primeiros reis” (Thorkild Jacobsen, The Sumerian King List, Assyriological Studies 11 [Chicago: University of Chicago Press, 1939], p. 167).
[3] John H. Walton, The Lost World of Adam and Eve: Genesis 2-3 and the Human Origins Debate (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 2015), p. 102.
[4] William Henry Green, “Primeval Chronology”, Bibliotheca Sacra 47 (1890): 285-303.
[5] Nahum M. Sarna, Genesis, The JPS Torah Commentary (Philadelphia: Jewish Publication Society, 1989), p. 40.
[6] Jacobsen, The Sumerian King List, col. i.35; col. ii, 43.
[7] G. S. Kirk, Myth: Its Meaning and Functions in Ancient and Other Cultures, Sather Classical Lectures 40 (Cambridge: Cambridge University Press, 1970), p. 32. Mesmo a Odisseia, observa Kirk, encaixa-se, em linhas gerais, no mundo pretensamente histórico. Cf. G. S. Kirk, “On Defining Myths”, p. 55.
https://www.reasonablefaith.org/writings/question-answer/the-genealogies-of-genesis-1-11/
[8] Kirk, Myth, p. 240.
[9] Ibid., p. 254.
[10] Kenneth Kitchen, On the Historical Reliability of the Old Testament (Grand Rapids, Mich.: Wm. B. Eerdmans, 2003), p. 439.
[11] Stanley Mayer Burstein, ed., The Babyloniaca of Berossus, Sources from the Ancient Near East 1/5 (Malibu, Calif.: Undena Publications, 1978), p. 48. Para colocar tudo isto em perspectiva, este número situaria os primeiros reis babilônicos no meio do período pleistocênico da era paleolítica, pouco antes do surgimento do Homo sapiens moderno!
- William Lane Craig