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#588 O Adão histórico

February 10, 2019
Q

Saudações, Dr. Craig.

Obrigado por seu trabalho em filosofia e teologia. Já o sigo há mais de 10 anos. Devo dizer que estou cadastrado para receber seus boletins mensais e, ao ler o último deles, não entendi bem aonde queria chegar. Parece-me que o senhor começa propondo uma classificação de Gênesis como etiologia, de modo que não haveria necessariamente um Adão histórico. Em segundo lugar, o senhor fornece uma explicação da menção de Paulo a Adão dentro da estrutura da referência de Paulo ao Adão literário. Em seguida, esclarece o desafio que a ciência introduz na discussão do Adão histórico. O senhor encerra o artigo afirmando que a historicidade de Adão tem implicações para a inspiração e a autoridade das Escrituras. Foi-me difícil entender sua afirmação de que a inspiração e autoridade das Escrituras estejam em jogo. Qual foi o objetivo de propor a classificação de Gênesis segundo estudiosos de Antigo Testamento como etiologia e de Paulo como se talvez não estivesse se referindo a Adão como pessoa histórica? O senhor estaria defendendo que Adão não é pessoa histórica, que Gênesis é mito-histórico?

Assim, a classificação dá espaço, por assim dizer, para interpretar Gênesis como se estivesse oferecendo algo histórico que o senhor não identifica. O senhor acha mais plausível que não tenha havido um Adão histórico? É esta minha pergunta. Sou o facilitador de um grupo de apologética na internet e isto tem causado muita confusão e discussão. Se não publicar esta pergunta, ficarei satisfeito com uma resposta por e-mail que eu possa levar para os membros do grupo.

Obrigado.

Sean
Estados Unidos

United States

Dr. Craig responde


A

Hoje à tarde mesmo estava lendo um artigo de Richard Averbeck, estudioso de Antigo Testamento, que começa com as seguintes palavras: “Não importa o que você diga (ou escreva) sobre os primeiros capítulos de Gênesis, terá muitos problemas com muitas pessoas”.

Este é o caso em especial com o Adão histórico. Trata-se de assunto eivado em controvérsias ultimamente, parte da qual descrevi em nossos dois últimos relatórios mensais (junho e julho de 2018). Como compartilhei naqueles relatórios, agora que meu trabalho sobre a expiação está completo, voltei o enfoque da minha pesquisa para a questão da historicidade de Adão e Eva. Em meio a todo o debate, algo de que estou relativamente certo é que a visão tradicional da igreja (sem contar do judaísmo) é que Adão e Eva são os únicos progenitores da raça humana inteira. A questão é se a visão está correta. Investigá-la envolve duas tarefas independentes que são, infelizmente, com muita frequência confundidas: primeiro, determinar o que a Bíblia ensina sobre o assunto e, segundo, formular uma doutrina empiricamente adequado do homem. A primeira tarefa pertence à teologia bíblica e a segunda, à teologia sistemática. O teólogo bíblico buscará determinar a interpretação adequada dos textos do Antigo e Novo Testamentos pertinentes a Adão, não apenas empregando estudos linguísticos, mas também se valendo de materiais extrabíblicos, do antigo oriente próximo ao judaísmo do segundo templo. O teólogo sistemático, então, tentará construir uma doutrina do homem que não é apenas consonante com a Bíblia, mas também adequada às descobertas estabelecidas da ciência contemporânea, como a arqueologia e a genética.

É crucial que estas duas tarefas sejam levadas adiante no mais puro isolamento uma da outra. Existe uma tendência quase irresistível de deixar a ciência guiar nossa interpretação bíblica. Este tipo de abordagem interpretativa às Escrituras costuma ser chamado de “concordismo”. Começando com o que a ciência moderna nos diz sobre a origem do mundo e da humanidade, abordamos o texto bíblico e forçamos a ciência no texto ou, no mínimo, lemos o texto de tal maneira que ele se coadune com a ciência moderna. As falhas em tal hermenêutica são óbvias: (1) ela não interpreta o texto conforme o autor e seu público-alvo o teriam compreendido, mas impõe sentidos que lhes são alheios; (2) à medida que a ciência progride, toda geração forçara a leitura de sua própria ciência no texto — por exemplo, física newtoniana pré-relativista.

Suspeito que muitas das aberrantes interpretações dos primeiros capítulos de Gênesis (por exemplo, a chamada “criação funcional” ou a teoria do dia-era) são motivadas pelo terrível temor de que a teologia bíblica praticada independentemente da ciência moderna venha a relevar que os criacionistas da terra jovem estejam certos e, portanto, a tarefa do teólogo sistemático se torne sem sentido. Se a teologia bíblica da terra jovem for a interpretação correta, estaremos diante de duas escolhas muito difíceis: ou (1) tentamos defender a validade científica de um universo de 10 a 20 mil anos de idade, o que parece, como disse, sem sentido, ou então (2) revisamos nossa doutrina pessoal de inspiração e interpretação bíblica de modo a permitir que as Escrituras ensinem o erro.

Creio que você já consiga ver, Sean, a relevância da questão diante de nós no que diz respeito à inspiração e autoridade bíblicas. Para ilustrar, andei lendo esta semana o comentário de Gênesis escrito pelo eminente estudioso de Antigo Testamento Gerhard von Rad. Repetidamente, von Rad parece se aliar com o criacionista da terra jovem segundo o qual Gênesis deve ser interpretado científica e factualmente, e não mítica ou figurativamente. Será que, assim sendo, ele concorda com o criacionismo da terra jovem? Claro que não! Antes, ele considera Gênesis como antiquado e errôneo em várias de suas afirmações científicas, históricas e geográficas, ao mesmo tempo que mantém as verdades espirituais expressas nas Escrituras.

Não podemos permitir que a ciência moderna guie nossa teologia bíblica, de modo a evitar a interpretação da terra jovem. Porém, podemos, sim, à luz da ciência moderna, ser motivados a considerar de modo renovado nossa interpretação dos textos bíblicos para ver se os entendemos adequadamente. Scot McKnight corretamente evita o concordismo quando explica: “Meus encontros com cientistas confiáveis me ensinaram a voltar para a Bíblia com outras questões e outras interpretações possíveis e a perguntar o que Gênesis significava em seu mundo”.[1]

Esse é o projeto desenvolvido por muitos na conferência “Creation Project” [Projeto Criação], da qual falei em nosso relatório mensal de julho. Eu não estava “defendendo” nenhuma posição, mas apenas partilhando com nossos leitores algumas das principais questões discutidas na conferência e, portanto, familiarizando-os com os tópicos que precisam ser tratados. Por exemplo, se Gênesis 1—11 é escrito mito-histórico, muito do que diz não precisa ser entendido factualmente, pois sua intenção não era ser lido de tal modo. Adão poderia ter sido pessoa histórica, mas não devemos entender as narrativas como factuais em todos os sentidos (por exemplo, uma serpente falante). Paulo parece ter considerado Adão uma pessoa histórica, mas, conforme compartilhei, mesmo neste caso, como você mesmo o expressou, existe um espaço aberto para o teólogo bíblico.

Comecei a trabalhar a sério em cima da questão do Adão histórico há apenas alguns meses; assim, não tenho nenhuma visão bem-definida sobre essas difíceis questões. Uma vez completada a tarefa da teologia bíblica, resta ainda a tarefa da teologia sistemática. Assim, não, não acho “mais plausível que não tenha havido um Adão histórico”. Uma conclusão dessas a esta altura seria totalmente prematura e, portanto, injustificada.

 

[1] Dennis R. Venema and Scot McKnight, Adam and the Genome: Reading Scripture after Genetic Science [Adão e o genoma: lendo a Bíblia após a ciência genética] (Grand Rapids, Mich.: Brazos Press, 2017), p. 95.

- William Lane Craig