#42 Deus e a neurociência
July 12, 2012Os avanços na neurologia e nos estudos do cérebro humano continuam a descobrir os fundamentos biológicos essenciais para a nossa crença em Deus e nas alegadas experiências espirituais (ou místicas). De fato, a cada avanço, a crença em um espírito à parte do cérebro (ou corpo) decresce cada vez mais, já que matérias antes consideradas como emanações do espírito têm causas e dinâmicas físicas (i.e., biológicas) reproduzíveis. A Bíblia fala muitas vezes em “espírito” e, para a fé cristã, é fundamental a crença em um espírito à parte do corpo. A nova ciência não invalidaria esse dogma cristão central? Além disso, tais avanços não levam à conclusão de que o conceito de “Deus” é resultado de processos biológicos naturais em nossa mente?
Obrigado.
Godfrey
United States
Dr. Craig responde
A
Para responder à pergunta desta semana, pedi ajuda ao Prof. Michael Murray, do Franklin and Marshall College, que tem estudado essa área com certa profundidade, e ele como convidado nos deu sua contribuição para essa pergunta semanal. Eis a resposta do Prof. Murray:
Godfrey levanta aqui duas questões distintas, e devemos considerá-las em separado. A primeira questão, na verdade, tem duas partes:
(1a) A psicologia e a neurociência contemporâneas mostram-nos que a mente humana é idêntica ao cérebro humano;
e
(1b) se assim for, isso não conflitaria diretamente com a Escritura?
A segunda questão é esta:
(2) A psicologia contemporânea mostra-nos que a crença em Deus é o resultado de um processo psicológico puramente natural?
Vamos considerá-las na sequência.
Até o século 20, a grande maioria dos eruditos (mas não todos), cristãos e não cristãos, cientistas e leigos, aceitava o dualismo, a ideia de que os seres humanos eram compostos de mente e corpo, dois tipos de substâncias fundamentalmente distintas. Os corpos eram entendidos como objetos vivos, compostos de partes materiais, desdobrados no espaço, sujeitos às leis da natureza e incapazes de deliberação, razão e pensamento. As mentes, ou almas, por outro lado, eram consideradas como entidades imateriais, desprovidas de partes, sendo capazes de reflexão, deliberação e livre escolha racionais. Com o progresso da psicologia experimental e da neurociência ao longo dos últimos cem anos, a maioria dos cientistas nessas áreas chegou à conclusão de que não é necessário admitir a hipótese da existência desses dois tipos de substâncias; em vez disso, acham que todos os aspectos físicos e mentais da vida humana podem ser explicados em termos de operações da substância corporal. Na verdade, na psicologia e na neurociência, a descrição de uma posição teórica como “dualista” é quase sempre um termo de escárnio. O que levou a essa mudança radical?
Em grande parte, a mudança pode ser explicada porque a pesquisa tem mostrado a notável correlação íntima que parece existir entre a atividade do cérebro e a atividade da mente. Muitos de nós estamos familiarizados com as representações pictóricas do cérebro humano, que mapeiam diferentes atividades mentais em diferentes partes do córtex cerebral. Os neurocientistas imediatamente registraram que agora sabemos onde “acontecem” (no cérebro) a memória, a percepção visual, o raciocínio moral, a emoção, o processamento linguístico e outros aspectos da vida mental humana. Em razão dessas correlações, podemos causar com confiança certos tipos de estados mentais na mente humana, mediante o estímulo elétrico, químico ou magnético de certas partes do cérebro (de fato, o neurocientista Michael Persinger alega ter desenvolvido um “capacete” magnético capaz de induzir “experiências religiosas” — na verdade está à venda na Internet — embora estivesse com o estoque esgotado da última vez que verifiquei!). E ainda mais, podemos predizer com precisão que habilidades serão comprometidas ou eliminadas em casos de lesões no cérebro, simplesmente sabendo que partes dele foram destruídas. Essas correlações óbvias e impressionantes entre a atividade cerebral e a “atividade mental” têm levado a maioria a concluir que não há nada mais a fazer para a alma imaterial. A atividade mental parece se constituir inteiramente de atividade cerebral.
Estariam certos esses neurocientistas? Talvez. Mas a evidência a favor da visão deles não é tão unilateral quanto o consenso científico disponível poderia nos fazer pensar. Na verdade, há dois tipos principais de problemas com o raciocínio que tem levado os cientistas a esse consenso. Em primeiro lugar, não é de todo evidente que a correlação entre a atividade mental e a atividade cerebral sinalize a identidade dos dois. Talvez possamos ilustrar o problema da seguinte maneira. Imagine que a vida na Terra foi destruída. Logo depois disso (bem logo), alienígenas descem no planeta. Uma dupla deles topa por acaso com uma velha casa e encontra nela um antigo aparelho de televisão com antenas (no qual estão repassando antigos episódios do programa I Love Lucy). Em razão de nunca terem visto um dispositivo como esse, a dupla decide descobrir “como ele funciona”. Removem a parte traseira do aparelho, e um alienígena fica atrás dele mexendo nos fios e nos componentes eletrônicos, e o outro fica diante da televisão para ver os efeitos. Depois de algum tempo (e talvez de sacudidelas e alguns choques elétricos), eles percebem que a desconexão do fio vermelho faz a cor azul desaparecer da tela. O desligamento do fio verde faz emudecer a transmissão dos sons graves para os alto-falantes, etc. Depois de um tempo, eles observam a correlação perfeita entre a atividade (e sua interrupção) de certos circuitos no aparelho e as imagens e sons produzidos por ele. A conclusão deles: o funcionamento do aparelho de televisão deve ser explicado inteiramente com base na atividade dos componentes elétricos que existem no seu interior.
CONCLUSÃO ERRADA! O que os alienígenas não compreendem (e talvez não poderiam entender, em razão de seus experimentos) é que a televisão exigia também a atividade de uma estação de televisão que estivesse transmitindo o sinal do programa. Sem isso, não haveria nenhum I Love Lucy para que eles pudessem interromper com suas travessuras elétricas.
Talvez mente e cérebro interajam de forma semelhante ao modo como se relacionam estações e aparelhos de televisão. Mas, apesar de instrutiva, essa analogia está longe de ser perfeita. Antes de mais nada, se a mente é diferente do cérebro, as linhas de comunicação ocorrem nos dois sentidos (diferentemente da estação e do aparelho de televisão). Esse exemplo, porém, mostra que o mero fato de descobrir fortes correlações entre a atividade neural e “imagens e sons” que constituem nossa vida mental não basta para provar a identidade deles.
Em segundo lugar, há alguns problemas filosóficos (em oposição ao estritamente científico) com o “fisicalismo” (o entendimento de que a mente não é senão a matéria do cérebro) que podem nos dar uma forte razão para rejeitá-lo (embora não seja uma razão científica). Primeiro, todos nós estamos de maneira geral comprometidos com a ideia de que seres humanos são dotados de livre escolha. Quanto ao conceito de livre escolha, temos em mente a ideia típica da capacidade de escolher entre cursos de ação alternativos não determinados por meras ações das leis da natureza. É característico acharmos que essas ações determinadas pelas leis da natureza não são livres, estão “além do nosso controle”, e, portanto, não são dignas de louvor nem de culpa (“Não se pode culpá-la por quebrar o vaso, ela sofre de sonambulismo”). Assim, ações livres e responsáveis são aquelas que praticamos em virtude das escolhas que fazemos — não são, portanto, determinadas pelas leis da natureza. E isso parece ser um problema para o defensor do fisicalismo. Por quê? Porque, se as mentes não forem mais do que cérebros, e cérebros não forem mais do que objetos físicos, simplesmente não pode existir algo como livre escolha. A realidade da livre escolha parece incompatível com o fisicalismo.
Eis aqui o segundo problema. Todos nós achamos confiadamente que perduramos com o passar do tempo. Houve uma época em que cada um de vocês que lê isto pesava menos de nove quilogramas, não conseguia falar e precisava ser alimentado. Já não é mais assim. Como conseguimos levar a cabo o artifício de resistir à passagem do tempo e de tantas mudanças (em tamanho, peso, agilidade e automanutenção)? Para responder a essa pergunta, precisamos primeiro responder a esta: Para mim, o que significa ser “a mesma coisa ou pessoa” que eu era antes? Bem, certamente não significa que sou algo com as mesmas propriedades. Então, o que seria “mesma”? Talvez seja a duração das partes que me compõem. Talvez. Mas, infelizmente, na realidade, não é. O corpo humano está sempre passando por reparos e renovações de tal forma que passamos por uma renovação (molecular) corporal completa a cada sete anos (em média). Portanto, parece que o fato de eu perdurar à passagem do tempo não se explica pela duração de todas nem de algumas partes do meu corpo.
Quais são as outras opções? Segundo parece, há somente duas. Perduro porque alguma propriedade ou característica distintiva em mim é resistente, ou, então, porque minha duração é explicada por algo bastante diferente de qualquer coisa material. Que tal a primeira opção? O problema com a primeira opção é que, em princípio, parece possível duplicar a propriedade que é “unicamente você” em outro corpo humano. Vamos dizer que você acha que essa propriedade distintiva seja a sua memória ou a sua personalidade. Estou escrevendo essa resposta dentro de um avião. Portanto, vamos imaginar que minha personalidade ou memória seja duplicada perfeitamente, agora mesmo, no cara que está sentado ao meu lado. Pergunta: onde eu estou sentado? Infelizmente, qualquer resposta a essa pergunta é insatisfatória (deixo ao leitor quebrar a cabeça para buscar as respostas e ver o porquê). Resultado: essa não pode ser a maneira correta de pensar a respeito de duração.
O resultado de tudo isso é que muitos filósofos chegam à conclusão de que a duração da existência só faz sentido se cada um de nós for uma entidade sem partes, que exista através do tempo e que esteja associada com o nosso corpo, i.e., se formos uma alma.
Chega de dificuldades com o fisicalismo. Voltemos agora à segunda parte da primeira pergunta (1b acima). Caso se constate que o consenso científico está certo, e que, apesar desses problemas, nossa mente não é outra coisa senão nosso cérebro, esse fato conflita de forma clara e direta com o que a Escritura ensina sobre a natureza dos seres humanos? A resposta é: não obviamente. Embora seja verdade que os teólogos cristãos tenham, ao longo das eras, favorecido grandemente o dualismo, não são poucas as evidências que favorecem o fisicalismo. Considere, por exemplo, as seguintes passagens que dizem respeito à nossa origem e ao nosso destino final:
E o senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida; e o homem tornou-se alma vivente. [...] Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste tirado; porque és pó, e ao pó tornarás (Gn 2.7; 3.19).
Naquele tempo, Miguel, o grande príncipe, se levantará a favor dos filhos do teu povo; e haverá um tempo de tribulação como nunca houve desde que existiu nação até então; mas naquele tempo, o teu povo, todo aquele cujo nome estiver escrito no livro, será liberto. Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno (Dn 12.1,2).
Quando deres um jantar, ou uma ceia, não convides teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem os vizinhos ricos, para que não aconteça que eles também te convidem, e recebas isso como retribuição. Mas, quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os mancos e os cegos; e serás bem-aventurado, pois eles não têm com que te retribuir. A tua retribuição será na ressurreição dos justos (Lc 14.12-14).
Em verdade, em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vai a julgamento, mas já passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo que virá a hora, e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão. Pois assim como o Pai tem vida em si mesmo, assim também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo; e deu-lhe autoridade para julgar, pois ele é o Filho do homem. Não vos admireis disso, porque virá a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a sua voz e sairão; os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida, e os que tiverem feito o mal, para a ressurreição da condenação (Jo 5.24-29).
E creio em tudo o que está escrito na Lei e nos Profetas, tendo esperança em Deus, como estes mesmos também têm, de que haverá ressurreição tanto dos justos como dos injustos (Paulo respondendo aos seus acusadores em seu julgamento diante de Félix em At 24.14b-15).
Todavia, irmãos, não queremos que sejais ignorantes em relação aos que já faleceram, para que não vos entristeçais como os outros que não têm esperança. Porque, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, também devemos crer que Deus, por meio de Jesus, vai trazer juntamente com ele os que já faleceram. Afirmamos pela palavra do Senhor que nós, os que ficarmos vivos para a vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que já faleceram. Porque, ouvida a voz do arcanjo e ressoada a trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá do céu com grande brado, e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que estivermos vivos, seremos arrebatados com eles nas nuvens, ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns aos outros com essas palavras (1Ts 4.13-18).
Porque, se os mortos não ressuscitam, Cristo também não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é inútil e ainda estais nos vossos pecados. Logo, os que morreram em Cristo também estão perdidos. Se a nossa esperança em Cristo é apenas para esta vida, somos os mais dignos de compaixão entre todos os homens (1Co 15.16-19).
Se, como um simples homem, lutei com feras em Éfeso, de que me adianta isso? Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos (1Co 15.32).
Nem todos iremos falecer, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta. Porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão imperecíveis, e nós seremos transformados. Pois é necessário que aquilo que perece se revista do que é imperecível, e o que é mortal se revista do que é imortal. Mas, quando o que perece se revestir do que é imperecível, e o que é mortal se revestir do que é imortal, então se cumprirá a palavra escrita: A morte foi engolida pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? (1Co 15.51-55).
Consideradas ao pé da letra, essas passagens parecem indicar que somos feitos de constituintes materiais (“pó”) que Deus dotou de vida, e que, ao passarmos pela morte física, seremos extintos e não teremos esperança, a menos que nosso corpo seja trazido de volta à vida na ressurreição do corpo. Todas essas coisas fazem perfeito e bom sentido no fisicalismo. Entretanto, essas passagens precisam ser lidas pelo filtro do dualismo.
Não quero dizer que a defesa bíblica do fisicalismo seja líquida e certa. Longe disso. Há, por exemplo, passagens em que parece que o espírito de mortos pode “aparecer” (Samuel, Moisés e Elias, todos esses parecem ter feito aparições, por exemplo). Mas os cristãos precisam ser cautelosos quando tiram, das páginas da Escritura, conclusões filosóficas sobre a natureza da mentalidade humana. O fato é que essa evidência é ambígua.
Voltemos agora à pergunta (2). Será que a psicologia e a neurociência recentes nos mostram que crer em Deus é resultado de um processo psicológico puramente natural? A resposta a essa pergunta é: “depende”. Recentemente, psicólogos evolutivos e cognitivos desenvolveram certo número de diferentes explicações naturalistas a respeito da religião. Tais explicações visam a mostrar que os seres humanos têm a disposição natural para a crença religiosa e para rituais, por causa de certas “ferramentas mentais” inatas ou nativas. Alguns teóricos argumentam que temos essas ferramentas mentais porque elas, ou a religião que elas geram, são e/ou eram adaptáveis para nossos ancestrais, e por isso foram passadas para nós.
Que tipo de evidência existe para tal alegação? A resposta a essa pergunta depende de qual dos seis principais modelos de explicação é adotado. O modelo mais difundido (que podemos chamar de “modelo cognitivo”) sustenta que os seres humanos têm ferramentas mentais específicas e identificáveis que tornam a crença religiosa fácil e natural. Por exemplo, temos um instrumento mental que nos faz pensar que há agentes ao redor quando detectamos certos sons, movimentos ou configurações na natureza. Esse “detetor de agentes” leva-nos a supor a existência de agentes que, por exemplo, controlam as forças da natureza. Além disso, a nossa mente é naturalmente disposta a relembrar e transmitir ideias que violam certas expectativas inatas que temos a respeito do funcionamento do mundo. Por exemplo, nascemos (segundo eles) achando que os agentes são coisas físicas. Quando nós (usando a ferramenta de detecção de agência) somos levados a supor a existência de agentes causadores de relâmpagos ou de vento, somos induzidos a pensar que existem agentes invisíveis. Mas agentes invisíveis vão contra a intuição e são estranhos. O resultado é que, com facilidade, nos lembramos e falamos deles, fazendo, dessa maneira, que tais conceitos se propaguem rapidamente (e assim é provável que a religião se espalhe com rapidez). Além disso, há a forte evidência de que somos naturalmente dispostos, desde pouca idade, a ver objetividade em tudo, inclusive no mundo natural. Essa tendência passou a ser denominada de “teísmo intuitivo” pelos psicólogos do desenvolvimento, uma vez que é a tendência de enxergar propósito em todo o mundo. Isso, naturalmente, nos dispõe a acreditar numa força doadora de sentido no universo: os deuses ou um Deus.
Há uma grande quantidade de evidência adicional desse tipo, e todas parecem fazer parecer que a religião é um produto natural das ferramentas mentais de um cérebro humano que funcione apropriadamente. Mas será que isso não nos mostra que a religião é apenas uma peça que a nossa mente nos prega? Não exatamente. É como se alguém que chegasse a essa conclusão precisasse argumentar da seguinte maneira:
(1) O desenvolvimento da mente humana ao longo da história natural supriu essas mentes com certo número de propriedades especiais.
(2) Quando se leva em consideração o mundo natural e social, essas propriedades encorajam os homens a pensarem em deuses.
(3) Logo, o desenvolvimento da mente humana produziu a crença em deuses (ou seja, Deus é um “acidente” da evolução).
(4) Logo, a crença em deuses é falsa.
Apesar disso, esse argumento comete uma bem conhecida falácia lógica denominada de “falácia genética”. O raciocínio geneticamente falacioso tem como objetivo defender a verdade ou a falsidade de uma crença simplesmente a partir das considerações da origem da crença. Mas é evidente que crenças perfeitamente verdadeiras podem surgir até mesmo de fontes tresloucadas. Eu poderia achar que há 449 pessoas na biblioteca simplesmente porque meu relógio marca 4h49. Podemos chegar à conclusão de que essa crença é falsa porque resulta de um raciocínio esquisito? É claro que não. Ela pode ser verdadeira, apesar de sua origem estranha.
Além disso, podemos modificar o argumento acima de tal maneira que ele não incorra na falácia, mas mesmo assim ele ainda apresenta problema em relação à crença religiosa, como se segue:
(1) O desenvolvimento da mente humana ao longo da história natural supriu essas mentes com certo número de propriedades especiais.
(2) Quando se leva em consideração o mundo natural e social, essas propriedades encorajam os humanos a crerem em deuses.
(3) Logo, o desenvolvimento da mente humana produziu a crença em deuses (ou seja, Deus é um “acidente” da evolução).
(4) Logo, a crença em deuses não tem garantia.
Exatamente como a minha crença de que há 449 pessoas na biblioteca, baseada na leitura de horas em meu relógio, não tem garantia, talvez acreditar na existência de Deus com base no funcionamento das ferramentas mentais identificadas não teria garantia.
Mas, teria? Olhemos o argumento mais uma vez, retirando a palavra sublinhada “deuses” e substituindo-a por qualquer uma das seguintes: mentes humanas, rochas, arcos-íris, o passado, a possibilidade de a ciência descobrir a verdade, etc. Com certeza, a conclusão do argumento em cada caso parece errada. Naturalmente, as mentes humanas formam as crenças nisso; ao fazê-lo, pensamos que elas fazem a coisa dar certo. Portanto, por que não concluir que elas fazem a coisa dar certo quando se trata da crença em Deus? O que torna esse caso diferente? Alguém poderia responder: “Bem, porque a crença religiosa é falsa.” Mas isso não chega a ser um argumento, é apenas incidir em petição de princípio.
Talvez o problema levantado por essas explicações seja algo completamente diferente. Poderíamos expressar o problema desta maneira. No caso da nossa disposição natural para acreditar em rochas ou mentes humanas, as crenças que formamos são causadas por rochas e mentes humanas agindo diretamente na nossa mente (através de nossos sentidos, por exemplo). Mas no caso da crença religiosa, a crença em Deus surge do nosso “detector de agentes” disparando na presença do vento e das ondas. Isso torna essas crenças religiosas muito diferentes. As crenças na rocha são causadas pelas rochas, ao passo que as crenças em Deus são causadas pelo… vento. Assim, seria possível dizer que acreditaríamos em Deus mesmo se ali não houvesse nenhum Deus. E esse é o problema.
A crítica está certa — esse seria o problema. Mas não está claro se o que a crítica afirma é verdadeiro. É verdadeiro que:
(6) A mente humana existiria e acreditaria em Deus, mesmo que Deus não existisse?
Acho que não. Não acho que haveria um universo se Deus não existisse. Não acho que o universo teria o ajuste fino para permitir a existência da vida se Deus não existisse. E não acho que haveria vida real, crentes, seres humanos ou religião se Deus não existisse. Estou errado? Se estiver, não há nada na psicologia evolucionária ou cognitiva indicando que eu esteja. Assim, ao contrário de nossa conclusão inicial, as explicações evolutivas não nos ensinam que teríamos crenças religiosas a despeito de elas serem verdadeiras ou falsas. O resultado disso é que tal argumento não serve.
Talvez haja outras razões para imaginar que essas explicações psicológicas criam problemas para a crença religiosa, mas não está totalmente claro que razões seriam essas. Por ora, parece perfeitamente aceitável que o cristão sustente que Deus criou o mundo, os seres humanos e a mente humana de tal maneira que, quando eles funcionam apropriadamente, formam crenças na existência de rochas, arcos-íris, mente humana e… Deus.
- William Lane Craig