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Criação e evolução (Parte 1)

August 05, 2022

Quando falamos da Doutrina da Criação, a maioria das pessoas automaticamente pensa apenas no debate entre criação e evolução. Espero que o nosso estudo da Doutrina da Criação neste curso o tenha ajudado a ver como a Doutrina da Criação é muito mais rica e completa do que somente a controvérsia entre criação e evolução. Tratamos de questões como creatio ex nihilo. Tratamos da conservação da existência do mundo por parte de Deus. Tratamos da providência de Deus — tanto sua providência comum ao reger o mundo quanto os seus atos extraordinários de providência e intervenção milagrosa no mundo. E tratamos de ordens superiores da criação, como anjos e demônios. Assim, a Doutrina da Criação é rica doutrina teológica que vai além de disputas entre criação e evolução.

 

Interpretação de Gênesis 1

Ainda assim, a questão do modo em que Deus criou a vida e a diversidade biológica neste planeta é aspecto importante e muito interessante da Doutrina da Criação. Por isso, o que quero fazer agora é um desvio do nosso panorama da Doutrina da Criação para tratar, especificamente, da criação da vida e da diversidade biológica. Para fazê-lo, queremos voltar ao texto principal na Bíblia que aborda a questão da criação da vida e da diversidade biológica por parte de Deus, que é o primeiro capítulo de Gênesis. Depois do versículo 1, em que Deus criou os céus e a terra (o universo), o autor de Gênesis passa a descrever como Deus cria este mundo maravilhoso como ambiente para nele viverem os seres humanos — como ele transforma a terra em lugar habitável para a humanidade. Assim, o que queremos abordar, primeiramente, no nosso estudo, é a interpretação de Gênesis 1.2 até ao fim do capítulo, em particular em diálogo com o que a ciência moderna e a teoria biológica da evolução têm a dizer sobre as origens da complexidade biológica. Comecemos nosso estudo com a leitura deste texto do primeiro capítulo de Gênesis:

A terra era sem forma e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. Disse Deus: “Haja luz”. E houve luz. Deus viu que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas. E Deus chamou à luz dia, e às trevas, noite. E foram-se a tarde e a manhã, o primeiro dia. E disse Deus: “Haja um firmamento no meio das águas, que faça separação entre águas e águas”. E Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima dele. E assim foi. E ao firmamento Deus chamou céu. E foram-se a tarde e a manhã, o segundo dia. E disse Deus: “Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça o continente”. E assim foi. E ao continente Deus chamou terra, e ao ajuntamento das águas, mares. E Deus viu que isso era bom. E disse Deus: “Produza a terra os vegetais: plantas que deem semente e árvores frutíferas que, segundo suas espécies, deem fruto que contenha a sua semente sobre a terra”. E assim foi. E a terra produziu os vegetais: plantas que davam semente segundo suas espécies e árvores que davam fruto que continha a sua semente, segundo as suas espécies. E Deus viu que isso era bom. E foram-se a tarde e a manhã, o terceiro dia. E disse Deus: “Haja luminares no firmamento celeste, para fazerem separação entre o dia e a noite; sirvam eles de sinais tanto das estações como dos dias e dos anos". Sirvam eles de luminares no firmamento celeste, para iluminar a terra. E assim foi.[[1]] E Deus fez os dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia e o menor para governar a noite; fez também as estrelas. E Deus os colocou no firmamento celeste para iluminar a terra, para governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e as trevas. E Deus viu que isso era bom. E foram-se a tarde e a manhã, o quarto dia. E disse Deus: “Produzam as águas cardumes de seres vivos; e voem as aves sobre a terra, abaixo do firmamento do céu”. E Deus criou os grandes animais aquáticos e todos os seres vivos que se movem, os quais as águas produziram segundo suas espécies; e toda ave com asas, segundo sua espécie. E Deus viu que isso era bom. Então Deus os abençoou, dizendo: “Frutificai e multiplicai-vos; enchei as águas dos mares, multipliquem-se as aves sobre a terra”. E foram-se a tarde e a manhã, o quinto dia. E disse Deus: “Produza a terra seres vivos segundo suas espécies: gado, animais que rastejam e animais selvagens, segundo suas espécies”. E assim foi. E Deus fez os animais selvagens, segundo suas espécies, e o gado, segundo suas espécies, e todos os animais da terra que rastejam, segundo suas espécies. E Deus viu que isso era bom. E disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre o gado, sobre os animais selvagens* e sobre todo animal rastejante que se arrasta sobre a terra”. E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Então Deus os abençoou e lhes disse: “Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que rastejam sobre a terra". Disse-lhes mais: “Eu vos dou todos os vegetais que dão semente, os quais se acham sobre a face de toda a terra, bem como todas as árvores em que há fruto que dê semente; eles vos servirão de alimento. E a todos os animais selvagens, a todas as aves do céu e a todo ser vivo que rasteja sobre a terra dou toda planta verde como alimento”. E assim foi. E Deus viu tudo quanto fizera, e era muito bom. E foram-se a tarde e a manhã, o sexto dia.

Princípios hermenêuticos

Para interpretar esta passagem corretamente, temos de seguir certos princípios hermenêuticos fundamentais. Hermenêutica é a ciência da interpretação. Ao interpretar um escrito, é preciso aplicar (ou seguir) certos princípios hermenêuticos a fim de entendê-lo corretamente. Em primeiro lugar e de maneira mais fundamental, devemos interpretar um escrito de acordo com o gênero ou tipo literário ao qual ele pertence. Gênero é o tipo literário ao qual um texto pertence. É absolutamente crítico interpretar textos de acordo com o seu gênero, porque seria erro catastrófico interpretar um texto literalmente, se o gênero desse texto não é do tipo pretendido para ser interpretado literalmente. Por exemplo, quando o salmista diz: “As árvores do campo batam palmas diante do Senhor”,[[2]] ele obviamente não está tentando ensinar botânica. Pense como seria inapropriado ler poesia, como os Salmos, de modo literal. Seria desastrosa interpretação errônea do texto. Ou, mais uma vez, penso como seria inapropriado interpretar literalmente um livro como Apocalipse, onde os monstros e outras figuras descritas devem ser interpretadas como símbolos de, digamos, estados-nações ou alianças políticas.[[3]] Logo que me tornei cristão, pensava que o livro de Apocalipse descrevia literalmente monstros marinhos que viriam a sair do oceano no fim dos tempos e tomariam o mundo! Animais de sete cabeças e assim por diante! Porém, quando se começa a entender o tipo de literatura que o livro de Apocalipse representa — a saber, literatura apocalíptica judaica —, percebe-se que a literatura apocalíptica é extremamente simbólica e figurativa, de modo que seria equivocado tomá-la literalmente. Assim, quando o assunto é Gênesis 1, considerações do gênero literário serão importantes para decidir como interpretá-lo corretamente.

Outro princípio hermenêutico que devemos observar aqui é buscar determinar como o autor original e seu público teriam entendido o texto. Não basta perguntar o que ele quer dizer para você hoje. É preciso perguntar como o autor e como o seu público o teriam entendido. Devemos examinar o texto por si só, respeitando sua integridade enquanto texto. Muitos cristãos, infelizmente, seguem uma hermenêutica denominada, às vezes, de concordismo. Significa tentar interpretar o texto à luz da ciência moderna — tentar projetar a ciência moderna no texto original, em vez de permitir que o texto se erga por conta própria e fale conosco. Por exemplo, ouvi cristãos dizerem que a Bíblia prevê a televisão! Que, se você ler a Bíblia, encontrará predições da televisão! O que querem dizer com isso? Pois bem, eles apontam para passagens na Bíblia em que se diz que, quando Jesus Cristo retornar à terra — a segunda vinda de Cristo —, todo olho o verá.[[4]] E dizem que isto é impossível para pessoas que vivem num globo como a terra — a esfera terrestre. Nem todo mundo conseguiria ver a Cristo quando ele voltasse. Por isso, eles só poderiam ver o evento na televisão — trata-se de predição, na Bíblia, da televisão moderna! Ou, no caso de Gênesis 1, há exemplos de cristãos atualmente que projetarão a cosmologia moderna do Big Bang no texto. Por exemplo, existe um texto, creio eu, em Isaías, em que o profeta diz que Deus estenderá os céus.[[5]] Isto seria antecipação da expansão do espaço no modelo cosmológico convencional do Big Bang. Com o passar do tempo, o tempo se estende e o espaço se expande, de modo que o universo está se expandindo, e isso é retrojetado na Bíblia, de modo que, quando ela diz que ele estendeu os céus, quer dizer que se trata de uma antecipação da extensão ou expansão do espaço postulada no modelo do Big Bang. Pois bem, penso ser bastante óbvio que estes são exemplos absurdos da leitura do texto, não por conta própria e não da maneira em que o autor ou seu público o teriam entendido, mas, sim, uma tentativa de forçar algo no texto para fazê-lo concordar com a ciência moderna — daí, o nome concordismo. Isto se trata de eisegese, e não exegese. É preciso extrair o sentido do texto, e não forçar um sentido para dentro do texto, impondo-o no texto.

Obviamente, não estou dizendo que não devamos nos envolver no projeto da busca por uma síntese da ciência e do ensinamento do texto bíblico. Pelo contrário, tenho compromisso profundo com tal projeto, como vocês sabem. Penso que ele seja vital para os cristãos modernos, se quisermos ter uma cosmovisão teológica bem-informada e relevante. A nossa cosmovisão teológica precisa ser bem-informada pelas descobertas da ciência moderna, estando em diálogo com ela. Mas isto é projeto para depois. É um projeto secundário. O primeiro projeto é a tarefa de interpretar o texto em si. Primeiro, é preciso determinar o que o texto está dizendo, antes de tentar relacioná-lo com as descobertas da ciência moderna.[[6]] Assim, em vez de tentar impor a ciência moderna no relato de Gênesis 1, ou ler Gênesis 1 à luz da ciência moderna, precisamos ler o relato como ele teria sido entendido pelas pessoas originais para as quais ele foi escrito e as quais o leram.

 

Interpretações concorrentes

Quando agimos assim, surgem inúmeras diferentes interpretações conflitantes do relato de Gênesis. O que precisaremos fazer da próxima vez é começar a percorrer todas essas diversas interpretações alternativas de Gênesis 1.

Um site muito útil que talvez vocês queiram consultar sobre esta questão foi preparado pela Igreja Presbiteriana na América (PCA), em https://web.archive.org/web/20131029190559/https://www.pcahistory.org/creation/report.html ou, se preferir um PDF: https://web.archive.org/web/20131029190559/https://www.pcahistory.org/creation/report.html. Trata-se de um relatório da Igreja Presbiteriana da América (PCA) sobre a questão da interpretação do relato da criação no primeiro capítulo de Gênesis. Oferece um panorama muito bacana da história da interpretação de Gênesis 1, bem como as diversas interpretações alternativas propostas ao longo de toda a história deste capítulo. Então, oferece uma avaliação dos pontos fortes e fracos de cada interpretação. Assim, se estiver interessado em investigar mais a fundo o assunto que vamos percorrer brevemente neste curso, penso que achará este site muito útil, se quiser ler mais.

 

Discussão

Pergunta: Quem era o público?

Resposta: Bem, seria o antigo povo hebreu.

Continuação: Nós também não somos o público? Gênesis não é revelação? Deus não sabia que o leríamos?

Resposta: Sim, obviamente, isto traz à tona a questão de... a autoria aqui não é apenas o autor original que o escreveu, seja ele Moisés ou qualquer outra pessoa. Deus é, em certo sentido, o autor último. Assim, é possível dizer: “Será que Deus não poderia inspirar no texto coisas que somente pessoas posteriormente entenderiam as quais tivessem, digamos, o benefício da ciência moderna?” Embora seja possível, penso que temos de começar, no mínimo, perguntando a nós mesmos o que o autor humano original pretendeu e o que ele quis que o seu público entendesse. Como eles o teriam entendido? Este é, sem dúvida, o lugar onde iniciar, antes de começar a forçar certas leituras no texto à luz da ciência moderna. Este tipo de hermenêutica é muito perigoso, porque é fácil demais forçar certas leituras no texto que, absolutamente, não foram pretendidas pelo autor original. Perdem-se realmente todos os limites, caso se perca o limite do significado original do texto. Penso que temos de começar aí, no mínimo, para entender esse texto.[[7]]

 

 

[1] 5:06

[2] cf. Isaías 55.12; Salmos 98.8

[3] 10:00

[4] Apocalipse 1.7

[5] cf. Salmos 104.1-2; Isaías 42.5, 44.24, 45.12, 51.13; Jeremias 10.12, 51.15; Zacarias 12.1

[6] 15:04

[7] Duração total: 19:14 (Copyright © 2013 William Lane Craig)