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Criação e Evolução (Parte 10)

October 07, 2022

Andamos vendo a interpretação funcional de Gênesis 1, segundo a qual Gênesis 1 é uma descrição, não da criação material da biosfera, mas simplesmente da atribuição divina de funções a diversas coisas no mundo, de modo que o mundo ou o cosmo se torne o seu templo, onde ele ocupa sua residência, enfim, no sétimo dia.[1]

Argumentei contra a plausibilidade de uma interpretação puramente funcional de Gênesis 1 e da ideia de que o descanso sabático de Deus pretende ser, meramente, o processo de residência de Deus no seu templo cósmico.

Preciso, porém, fazer uma correção a algo que disse da última vez. Creio que, da última vez, disse que os sete dias em Gênesis não deviam ser interpretados como reflexo dos sete dias de dedicação do templo de Salomão, pois se tratava de motivo comum nos mitos antigos da criação. De fato, a minha declaração estava incorreta. O motivo de sete dias não é comum nos mitos antigos de criação, mas é motivo muito comum por todo o mundo antigo, sendo usado de diversos diferentes modos, de modo que seria um erro apontar para os sete dias de dedicação do templo de Salomão, em particular, como a fonte deste motivo de sete dias. Este argumento foi feito a contento por Miller e Soden, cuja visão vamos considerar a seguir. É assim que escrevem: “Não há nenhum registro conhecido de nenhuma outra sociedade a estruturar a criação em sete dias”, embora sete dias possam estar envolvidos, por exemplo, na criação do homem ou outros aspectos da história da criação. Continuam eles:

Não há nenhum registro conhecido de nenhuma outra sociedade a estruturar a criação em sete dias, de modo que o seu uso em Gênesis 1 não parece ser diretamente dependente da mentalidade de Israel no antigo Oriente Próximo. O uso de um período de sete dias, contudo, aparece comumente na mitologia, lenda e prática cultual do antigo Oriente Próximo. Por exemplo, ocorre para descrever uma abordagem apropriada aos deuses; fornece uma estrutura para uma missão ordenada por Deus e bem-sucedida; para encontrar uma esposa da realeza para gerar um filho; descreve um período de espera de sete dias, em que o evento antecipado ocorre no sétimo dia. O número sete era também usado, com frequência, para muitas outras coisas em textos antigos e, até mesmo, no Antigo Testamento hebraico, e não era sempre a intenção de que fosse um número literal. Antes, trazia consigo importância simbólica, sendo geralmente entendido como expressão das ideias de completude, perfeição e cumprimento.[2]

Assim, dado o uso generalizado deste motivo de sete dias no antigo Oriente Próximo, penso que seria um erro simplesmente assumir que ele se refira a esse período de sete dias de dedicação do templo a preceder a inauguração do templo de Salomão. De fato, muito pelo contrário, esse período de sete dias de espera seria, em si, reflexo do uso tão difundido e simbólico do número sete por todo o antigo Oriente Próximo.

Em suma, acho bastante implausível a interpretação funcional de Gênesis 1. Parece-me que o relato de Gênesis 1 deve ser entendido, de modo mais natural, como se envolvesse o que Walton denomina tanto de criação material quanto de criação funcional: tanto a criação das entidades descritas quanto a atribuição das suas funções.

Queremos encerrar a nossa discussão da interpretação funcional ao observar a resposta de Walton a esta sugestão. Ele faz a seguinte pergunta: “Será que poderia ser tanto criação material quanto criação funcional?”. Ele oferece quatro razões para rejeitar tal visão,. Penso, porém, que estas quatro razões podem ser rebatidas muito rapidamente, à luz do que já vimos.

A primeira razão, diz ele, é que os dias 1, 3 e 7 não têm nenhuma declaração de criação de nenhum componente material. Em resposta, eu diria que, obviamente, isto não é nenhuma surpresa para o dia 7. É o dia divino de descanso, em que Deus cessa a criação. Porém, no dia 1, a luz é criada.[3] Por isso, sem dúvida, a criação material está envolvida. No dia 3, a vegetação e as árvores frutíferas são criadas. Assim, parece-me simplesmente falso dizer que a criação material não esteja envolvida nos dias 1 e 3.

Número 2: ele diz que o dia 2 tem um componente potencialmente material, a saber: o firmamento, mas acrescenta: “Se fosse relato material legítimo, seríamos obrigados a encontrar algo sólido lá em cima”.[4] Teria de haver esse domo sólido lá em cima, mas não há. Bem, em resposta, eu diria, mais uma vez, que se trata de concordismo, conforme vimos. Se os israelitas antigos pensavam que o firmamento era sólido, não teriam nenhum problema em fazer um relato da sua criação material. Parece-me que esta segunda razão não é muito boa para levar a uma interpretação puramente funcional. Ele está deixando o concordismo científico guiar a sua exegese, o que, segundo ele mesmo admite, é ilegítimo.

A sua terceira razão é que os dias 4 e 6 lidam, explicitamente, com componentes materiais apenas em nível funcional. Em resposta, eu diria que pode ser assim para o sol, a luz e as estrelas, em que as suas funções são especificadas para marcar os dias, meses, estações e anos. No entanto, isto é patentemente falso em relação aos animais. O texto diz: “Produza a terra seres vivos”. Também é, provavelmente, falso em relação ao homem. O texto diz: “Façamos o homem à nossa imagem”. Uma vez que o homem não foi incluído entre os animais — ele ainda não estava ali —, a criação do homem implicaria a criação material de algo novo. Assim, parece-me, mais uma vez, falso que os dias 4 e 6 lidem com esses componentes materiais, mas só de modo funcional. Os dias contemplam, na minha opinião, o surgimento dos componentes.

Por último, a sua quarta razão é que, no dia 5, mencionam-se funções e emprega-se a palavra bara (“criar”). Em resposta, vimos que bara envolve causação eficiente: produzir a existência do efeito. As origens materiais de aves e criaturas marinhas, no dia 5, estão claramente em vista. Assim, é simplesmente falso que seja algo só funcional. No dia 5, as aves e as criaturas marinhas são criadas por Deus.

Assim, não penso que absolutamente nenhuma destas razões sejam persuasivas para sugerir que o relato de Gênesis 1 não deva ser lido tanto como criação material quanto como criação funcional.

Há muito mais que gostaria de dizer sobre o livro de Walton, mas suspeito que já esgotei a paciência de vocês. Penso que isto basta para mostrar que a interpretação funcional não seja opção muito plausível para a interpretação do capítulo de abertura de Gênesis.

Pergunta: Tenho uma questão geral sobre o assunto. O senhor gastou bastante tempo nele, e penso que fez um bom trabalho de destrinchar a teoria, mas fico me perguntando por quê. Será porque ela é algo que está começando a tomar força no nível acadêmico ou popular?

Resposta: Há duas razões que compartilhei logo no começo. Uma é que acabei de ler o livro de Walton, que está bem fresco na minha mente, e eu fiquei empolgado com ele. Se, talvez em dois anos, eu cobrisse esta seção, é capaz de que não gastasse tanto tempo nele, mas o fato de estar bem fresco na minha mente é uma razão, para ser honesto. Além disso, porém, esta é uma interpretação à qual apela determinado segmento da teologia evangélica a fim de conciliar ciência e religião.[5] Talvez você tenha ouvido falar de Francis Collins, o chefe do Projeto do Genoma Humano, que é evolucionista teísta ou, como ele prefere, adepto da evolução criativa. A sua Fundação BioLogos[6] busca oferecer uma alternativa ao criacionismo da terra jovem. Obtêm muitos financiamentos da Fundação Templeton, que almeja promover o diálogo entre ciência e religião. O livro tem endosso de Francis Collins, na quarta capa. Penso que esta é uma interpretação cada vez mais influente na comunidade evangélica como forma de conciliar ciência e religião. Se o significado de Gênesis 1 é puramente fictício, não pode haver nenhum conflito com a ciência, porque não trata do modo em que essas coisas vieram à existência. Trata só de Deus a dizer: “Isto será para tal propósito e aquilo será para qual propósito”. Conforme diz Walton, os dinossauros e tudo mais poderiam ter prosperado e existido, bem antes de Gênesis 1.1 ter começado. Assim, penso que se trata de interpretação importantíssima nesse sentido, bem como no próximo sentido, que vamos discutir e que também está agora na miscelânea deste debate.

Pergunta: Li alguns dos escritos de Francis Collins, Karl Giberson e outros que não parecem ter absolutamente nenhum problema com o concordismo científico.

Resposta: Não acho que está certo. Vamos definir novamente o que queremos dizer com concordismo. Não gosto da palavra, mas se tornou terminologia convencional hoje nessas discussões; por isso, é utilizada simplesmente porque se quer ter certeza de que todos estão na mesma página. Concordismo não significa que a ciência e a Bíblia estão em concórdia uma com a outra, que há harmonia entre a ciência e a Bíblia. Penso que esperamos que seja verdade, que há concórdia entre ciência e religião! No entanto, quando esses estudiosos falam de concordismo, descreve-se certa abordagem hermenêutica ao texto que diz usar a ciência moderna como guia na leitura e na interpretação do texto, à luz da ciência moderna. Penso que o exemplo mais óbvio deste tipo de hermenêutica seria Hugh Ross. Ele lê o texto à luz da cosmologia do Big Bang e da teoria evolutiva. Por exemplo, quando a Bíblia diz que Deus espalhou os céus, Ross interpreta que significa a expansão do espaço predita no modelo convencional do Big Bang. A metáfora de espalhar os céus significa, literalmente, a expansão do espaço. Ele verá outros elementos do cenário científico no texto. O que pessoas como Walton e Blocher, dentre muitos outros, protestam é que não se trata de abordagem hermenêutica legítima ao texto. A maneira adequada de abordar um texto é buscar discernir o que o autor original quis dizer e como o público original para o qual foi escrito o teria entendido. É a maneira correta de chegar ao texto. Do contrário, corre-se o risco de importar todo tipo de coisa para dentro do texto. Deveras, cada geração sucessiva importaria a sua ciência para dentro do texto, e o texto estaria em constante mutação no seu significado, à medida que cada geração sucessiva busca fazer a leitura do texto a partir da ciência moderna. Antes, deve-se deixar o texto falar por si só e buscar entendê-lo nos seus horizontes originais, por assim dizer: como o seu autor e o seu público o teriam entendido. Penso que isto é correto. Penso que se trate da abordagem hermenêutica correta. Assim, nesse sentido, Francis Collins e Karl Giberson não são concordistas. Muito pelo contrário: eles diriam que não devemos tentar ler o texto à luz da ciência moderna.

Continuação: Obrigado. Esclareceu muitas coisas.

Pergunta: Sempre fico confuso quando falamos do que o autor original quis dizer e do que o público original teria interpretado, quando discutimos a revelação na Bíblia.[7] Gostaria de fazer distinção entre ciência forense (o que, provavelmente, aconteceu no passado que não podemos replicar repetidamente) e ciência que pode ser uma teoria provada e replicada. Penso que haja padrões diferentes entre as duas. Por isso, volto sempre a esta questão: será que a Bíblia não foi escrita para nós hoje? A intenção de Deus, quando ele dirigiu a escritura da Bíblia, era para ser uma comunicação para nós hoje.

Resposta: Sim, sem dúvida. Mas não apenas para nós hoje. É escrita para todas as pessoas de todos os tempos e culturas. A fim de interpretá-la de modo adequado, é preciso buscar entender, especialmente, o gênero literário original em que foi escrito. Por exemplo, caso se abordasse o livro de Apocalipse como livro de história, seria possível pensar que, no futuro, haverá monstros marinhos de sete cabeças subindo do oceano, como se Godzilla atacasse Nova Iorque. Vai ser assim no futuro. Porém, caso se entenda a literatura apocalíptica judaica, será possível ver que se trata de símbolos. Na literatura apocalíptica, há toda essa representação simbólica de entidades políticas etc. Não é para ser entendida como se fosse um tipo de filme de terror de segunda categoria, com todos esses monstros etc. Igualmente, quando se lê poesia no Antigo Testamento, como os Salmos, é preciso interpretá-los de acordo com o gênero literário apropriado. Por outro lado, caso se leia o livro de Atos, seria escrito histórico. No caso, ele deve ser entendido assim. Mais uma vez, é importante dizer que seria preciso ver como os historiadores antigos escrevem, pois há diferenças significativas entre a história antiga e a história moderna. Por exemplo, historiadores antigos nem sempre enfatizam a cronologia de eventos. Sentiam-se livres para agrupar os eventos tematicamente e, assim, deslocá-los, não necessariamente os narrando justamente em sucessão cronológica. Assim, penso ser importante lembrar que, embora a Bíblia seja escrita para todas as gerações e inspirada por Deus, ela é escrita pela instrumentalidade de seres humanos que refletem o seu tempo, cultura e formas de pensar. Assim, a fim de interpretá-los corretamente, precisamos nos colocar no lugar deles e perguntar como um judeu do século I teria lido, por exemplo, o livro de Apocalipse ou o livro de Gênesis. Assim, a Bíblia é para todas as gerações, é verdade. Precisamos, não obstante, tomar cuidado ao interpretá-la.

Pergunta: Fico pensando por que temos de enquadrar isto tudo no esquema de Aristóteles. Não podemos enquadrar tudo segundo criação material, criação funcional e o propósito por trás da criação? O sétimo dia é Deus a entrar no Descanso, e Hebreus, capítulo 4, diz bem claramente que Deus nos prometeu entrarmos no descanso. Assim, propositadamente, vamos entrar no descanso com Deus.

Resposta: Função é, na verdade, o que Walton quer dizer com propósito. A função de um martelo é acertar pregos. A função de uma faca é cortar. Assim, quando ele fala de criação funcional, quer dizer a especificação do propósito. Com respeito à criação material, a única razão por que apelo a Aristóteles, no caso, é para esclarecer a terminologia.[8] É só isso. Só achei a terminologia confusa, porque, quando se pensa nas palavras “criação material”, soam como fosse a criação de coisas materiais. Assim, quando Walton vê como a palavra bara é, por vezes, empregada no Antigo Testamento, ela trata da criação de coisas que não são objetos materiais, como: “ó Deus, cria em mim um coração puro”. Não é um pedido para ele criar algum órgão dentro do corpo. Ou, quando diz: “Deus cria o desastre” ou “Deus cria o norte e o sul”. Não são entidades materiais. Por isso, Walton pensa: “Aha! Não é criação material. É criação funcional”. Ora, isto porque ele não entendeu direito o que, de fato, é a criação material. Ela significa causação eficiente. Quando Deus cria uma cadeira, ele a traz à existência. Quando cria desastre, ele o traz à existência. Quando cria um coração puro, ele é a causa eficiente de que você tenha um coração puro. Assim, eu estava, simplesmente, desejoso de esclarecer a terminologia porque, na minha opinião, em razão da terminologia equivocada, ele é levado a entender e interpretar erroneamente a palavra bara, como se não envolvesse causação eficiente. É muito evidente para mim que se trate de causação eficiente: Deus traz à existência os céus e a terra, as criaturas marinhas no dia 5, o homem no dia 6. Então, essa foi a razão para que eu apelasse para a terminologia de Aristóteles, simplesmente porque pensei que poderia trazer certa clareza. Porém, gosto da sua observação sobre o descanso de Deus no sétimo dia. Sem dúvida, o restante do Antigo Testamento e o Novo Testamento interpretam o descanso de Deus no sétimo dia como a sua cessação da atividade criadora. É por isso que Israel descansa no sabá. Não fazem nenhum trabalho no dia de sábado. O sétimo dia não é o dia em que Deus vem a residir no seu templo cósmico; é o dia em que ele cessa a sua obra criadora, o que também estabelece o fundamento para a prática do sabá para Israel.

Outro comentário escapa para um assunto que, diz Dr. Craig, não tem a ver com o que está em discussão no momento.

A interpretação do mito hebraico da criação

Passemos para a próxima interpretação, que vou chamar de interpretação do mito hebraico da criação. No seu novo livro, In the Beginning... We Misunderstood [No princípio… um mal-entendido nosso] (2012), Miller e Soden elaboram esta interpretação de Gênesis 1. Embora não usem esse título para ela, não dando bem um título para a perspectiva deles, é essa a minha caracterização do que constitui a visão deles. Como há mitos pagãos da criação, no Egito e Mesopotâmia antigos, assim também este seria exemplo de mito hebraico da criação.[9] Eles diriam que Gênesis 1.1—2.3 não deve ter entendido literalmente. Eles repetiriam os indícios contra a interpretação literal do texto que já investigamos quando falamos da interpretação literal. Eles apresentam essas mesmas considerações que os levam a pensar que esse texto não deve ser entendido literalmente. Antes, dizem que a chave para interpretar corretamente Gênesis 1 é compará-lo a mitos egípcios da criação. Também examinam mitos mesopotâmicos e cananeus, mas acham que estes apresentam pouquíssimas semelhanças com o texto de Gênesis 1 e, por isso, consultá-los não é lá proveitoso. Há poucos pontos de semelhança entre mitos mesopotâmicos e cananeus de criação e a história em Gênesis 1. Porém, observam eles, Israel esteve no Egito em cativeiro por quatrocentos anos e, durante esse tempo, os israelitas passaram a adorar divindades egípcias. Moisés teve de desmamá-los destas divindades egípcias e anunciar-lhes quem era o Deus verdadeiro: Javé, ele era o Deus verdadeiro. Mesmo depois de deixarem o Egito no Êxodo, muitos deles ainda mantinham deuses egípcios e os cultuavam. A religião egípcia fizera incursões profundas na nação de Israel. Creem que, quando comparamos Gênesis 1 a mitos egípcios da criação, surgem semelhanças muito significativas, bem como diferenças significativas. As diferenças nos ajudarão a ver como Israel buscou rejeitar ou corrigir tais mitos pagãos que receberam quando estavam no Egito. As semelhanças mostrarão as conexões com o Egito, mas as diferenças marcantes mostrarão o modo em que Israel tentou corrigir essas histórias pagãs de criação.

Miller e Soden apontam que é, infelizmente, deveras difícil reconstruir exatamente o que constituía o mito egípcio antigo da criação. Não temos nem um único texto, como temos Gênesis 1, a elaborar a visão egípcia da criação. Antes, a visão egípcia da criação deve ser reconstruída a partir de todos os tipos de diferentes textos, ao longo de alguns milhares de anos, a fim de buscar delinear uma visão coerente. Escrevem eles:

Não há nem um único relato egípcio conhecido até o presente que descreve a perspectiva egípcia completa acerca da criação. Pelo contrário, reunimos um mosaico de partes e fragmentos registrados em diversos documentos. Tais documentos representam uma mistura de tempos e teologias (cobrindo mais de dois milênios), muitos dos quais em tensão uns com os outros, uma situação que não parecia incomodar os egípcios... Para a maior parte das vezes, os documentos egípcios da criação consistem em breves declarações e alusões, espalhadas por muitas inscrições (textos de pirâmides, textos de ataúdes, o Livro dos Mortos e outras inscrições).[10]

Assim, não temos um único mito egípcio coerente da criação. Antes, trata-se de reconstruções que estudiosos fizeram com base numa diversidade de breves recortes e inscrições ao longo de milhares de anos. Porém, nas páginas 78-80, eles tentam resumir os contornos do mito egípcio da criação.[11] Vou ler a passagem para vocês:

Antes do princípio da criação, havia apenas um mar infinito, escuro, aquoso e caótico. Não havia nada acima do mar ou abaixo do mar: o mar era tudo que havia. Imerso no mar, Atum (ou Ré ou Ámon ou Ptá), o deus criador e fonte de todas as coisas, trouxe a si mesmo à existência, ao separar-se das águas. Cosmologias egípcias que veem Ámon como o criador, ou mesmo como uma das quatro qualidades iniciais da matéria de pré-criação (aquosa, ilimitada, escura, imperceptível), do qual surge a criação, também entenderiam que o vento estava presente na água, pois Ámon era também o deus do vento. Uma vez que Atum, Ámon e Ré estavam todos conectados com o sol, a luz estava então em existência, embora o sol em si ainda não nascera. Embora vários meios de criação sejam utilizados de modo intercambiável nos relatos egípcios (incluindo espirro, cuspe e masturbação), em muitos relatos Atum (ou um dos outros deuses observados acima) falou, e o universo veio à existência. Esta nova criação (ou o “universo” conforme concebido pelos egípcios) começou com a separação das águas para criar a atmosfera (uma bolha d’ar, conhecida como o deus Chu, no meio dessa massa infindável de água). A ordem de Atum separou a superfície das águas no céu em relação à terra. As águas regrediram, e o primeiro montículo de terra apareceu.[12]

Penso que vocês podem provavelmente ver, a partir deste relatório, certas semelhanças, bem como enormes diferenças, entre o mito egípcio da criação e o relato encontrado em Gênesis 1. Há pontos de semelhança: pensa-se, por exemplo, nas águas primevas, nas trevas sobre o abismo e, então, no espírito de Deus ou vento a pairar sobre a face das águas. Porém, há também diferenças significativas. O que Miller e Soden mantêm é que o objetivo do autor de Gênesis não é tanto corrigir as descrições físicas encontradas nessas histórias egípcias da criação quanto corrigir a teologia da criação que elas apresentam. Por exemplo, vocês vão observar como o autor de Gênesis desmitologiza completamente o mundo natural. Ele se livra de todos esses deuses e deusas e, pelo contrário, apresenta esse único Deus criador que é a fonte de tudo e, em si, não é autocriado, nem advém da água, mas é soberano e transcendente. Assim, o objetivo da narrativa não é corrigir a descrição física, tanto quanto corrigir a teologia. É isto que eles escrevem:

Na maioria dos casos, o escritor bíblico emprega motivos comuns para demonstrar as diferenças marcantes na apresentação hebraica de Deus. Em outras palavras, as diferenças consideráveis mostram que Gênesis não está copiando, mas reformulando os eventos da criação, a fim de defender com força uma teologia diferente.[13]

Da próxima vez, vou descrever para vocês tal teologia, conforme Miller e Soden a entendem, e mostrar as maneiras nas quais a teologia da criação, no entendimento hebraico, difere da teologia da criação nesses mitos egípcios da criação.[14]

 

[1] Ver John H. Walton, The Lost World of Genesis One (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2009).

[2] Johnny V. Miller e John M. Soden, In the Beginning… We Misunderstood: Interpreting Genesis 1 in Its Original Context (Grand Rapids, MI: Kregel Publications, 2012), pp. 155-156.

[3] 5:00

[4] Walton, The Lost World of Genesis One, p. 94.

[5] 9:54

[7] 15:08

[8] 20:05

[9] 24:58

[10] Miller e Soden, In the Beginning, pp. 78, 82.

[11] 29:37

[12] Ibid., pp. 78-80.

[13] Ibid., p. 98.

[14] Duração total: 35:16 (Copyright © William Lane Craig 2013)