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Criação e Evolução (Parte 3)

September 06, 2022

Andamos refletindo sobre a Interpretação Literal de Gênesis, capítulo 1, e sugeri da última vez que os argumentos favoráveis à Interpretação Literal de Gênesis 1 não são convincentes. Vimos que, embora a narrativa fale, sim, de pessoas históricas — principalmente o próprio Deus, bem como Adão e Eva —, trata-se de obra-prima de elevada literatura, com uma estrutura literatura elaborada cuidadosamente, e não simplesmente uma espécie de crônica do que ocorreu. Portanto, a maioria dos exegetas evangélicos diria que, embora ela tenha base histórica, é descrita em linguagem figurada ou poética que não deve ser forçada à literalidade. Vimos, em particular, que seria injustificado pensar que a palavra “yom” ou “dia” tenha de referir-se a um dia literal. Por exemplo, em Gênesis 2.4, tem-se a palavra yom usada de modo claramente metafórico. Em Gênesis 2.4, diz-se o seguinte: “São essas as origens dos céus e da terra, na ocasião em que foram criados, quando o SENHOR Deus fez a terra e os céus”. Ora, nesta passagem, faz-se referência a toda a semana da criação como “o dia” em que o Senhor fez os céus e a terra. Assim, mesmo no próprio relato da criação, temos a palavra yom empregada em sentido metafórico para descrever toda a semana da criação, e não apenas um período de 24 horas.

Em todo caso, mostrar que a palavra yom significa um dia de 24 horas, na verdade, nem sequer começa a tratar da questão de que um dia de 24 horas seja ou não utilizado como metáfora para algo mais. E atentamos para o exemplo da palavra inglesa “arm” [braço/arma]. Mesmo que, em todas as passagens hebraicas que se possa achar no Antigo Testamento, a palavra “arm” se refira a um membro ou uma extensão, em vez de uma arma, isto não quer dizer que, quando as Escrituras dizem: “o braço do Senhor [the arm of the Lord] estava com o povo de Israel”, pretenda-se dizer que Deus tenha extensões literais ou membros literais. Antes, a palavra “arm” não está sendo usada no sentido de uma arma; está sendo usada no sentido de um membro. Significa membro, mas o membro é empregado como metáfora para o poder, força e vigor divinos que acompanham Israel. Assim, mesmo que fosse verdade que a palavra yom significa um período de 24 horas, não se começa sequer a tocar na questão literária de que um dia de 24 horas seja ou não utilizado como metáfora literária para algo mais.

Por isso, não acho os argumentos favoráveis à interpretação literal convincentes. Vamos voltar, agora, a nossa atenção para uma crítica da interpretação literal. Aqui, quero defender que há indicação no texto em si de que a intenção do autor não eram seis dias consecutivos de 24 horas. Quero enfatizar: digo isto não baseado na ciência moderna. Não estou sendo vítima do concordismo — a leitura forçada da ciência moderna para dentro do texto. Antes, estou dizendo isto com base na exegese do texto em si; há algumas indicações de que o autor não pretendeu que tomássemos o relato como seis dias consecutivos de 24 horas. Quais são elas? Já mencionei uma delas: o fato de que a frase “foram-se a tarde e a manhã” não é mencionada em relação ao sétimo dia. Isto sugere que o sétimo dia ainda está continuando. Deus ainda está no seu dia de descanso sabático. Este nunca acaba — ele não está mais na atividade de criar coisas novas. Deus ainda está descansando da sua obra de criação. Assim, se o sétimo dia pode ser entendido com mais flexibilidade, por que não os outros dias também? Além disso, observe que, ao longo de todo o primeiro capítulo de Gênesis, a tarde ou noite é mencionada antes da manhã: “E foram-se a tarde e a manhã, o segundo dia [o terceiro dia etc.]”. Isto é bastante estranho.[[1]] Um dos problemas que perturbam os intérpretes de Gênesis 1 desde os tempos antigos é o fato de que Deus não cria o sol até o quarto dia. É no quarto dia que ele cria o sol e a lua. Porém, se for assim mesmo, como é que os dias anteriores podem ter sido períodos de 24 horas, uma vez que não havia nenhum sol para criar os dias solares? Como é que pode haver tarde e manhã, se a terra não estava em rotação ao redor do sol? Mesmo os defensores da interpretação literal costumar a vacilar neste ponto, apelando para interpretações não-literais. Por exemplo, ao dizer que o quarto dia foi o dia em que o sol apareceu no céu, deixando para trás a espessa nuvem que o cobria. Mas não é isto que o texto diz. Isto é uma leitura forçada sobre o texto. Em comparação, a forma de contar os dias a começar pela noite e, então, a terminar na manhã reflete o modo posterior de Israel contar dias. Para o judeu, o sábado e a Páscoa começavam à noite e, então, terminavam antes do nascer do sol. Assim, os dias de Israel começam à noite e, então, terminam de manhã. Tal padrão se reflete na narrativa aqui, em Gênesis 1. Assim, parece ser, novamente, o padrão que é importante, servindo como padrão para a semana de trabalho em Israel e o dia de descanso sabático, e não para a duração de cada dia.

Em terceiro lugar, quero que vocês notem algo muito peculiar quando o assunto é o terceiro dia. Observe Gênesis 1.11-12. Penso que seja uma das características mais interessantes desta narrativa. Gênesis 1.11-12 diz:

E disse Deus: “Produza a terra os vegetais: plantas que deem semente e árvores frutíferas que, segundo suas espécies, deem fruto que contenha a sua semente sobre a terra.” E assim foi. E a terra produziu os vegetais: plantas que davam semente segundo suas espécies e árvores que davam fruto que continha a sua semente, segundo as suas espécies. E Deus viu que isso era bom.[[2]]

Observe que ele não diz simplesmente aqui: “E disse Deus: “Haja os vegetais. E assim foi.” — uma espécie de creatio ex nihilo. Não, o que diz é: “Produza a terra os vegetais: plantas que deem semente e árvores frutíferas que, segundo suas espécies, deem fruto que contenha a sua semente sobre a terra”. Em seguida, diz que a terra produziu essas coisas. Ora, todos sabemos quanto tempo leva, por exemplo, para que uma macieira floresça e, então, frutifique, enfim, com maçãs. O antigo povo de Israel também sabia dessas coisas. Assim, se o autor esteve pensando, no caso, em períodos de 24 horas, o que ele teria de imaginar seria algo como uma fotografia em câmera-rápida em que a sementinha irrompe do solo e, então, vira essa árvore, cresce e floresce por toda parte e — bum! bum! bum! — todas as maçãs aparecem na árvore. Não consigo me convencer de que era isto que o autor tinha em mente — que ele imaginasse que fosse como um filme passado em velocidade rápida. Assim, quando ele diz que a terra produziu vegetação a dar sementes segunda a sua espécie e árvores frutíferas segundo a sua espécie, acho muito plausível pensar que o autor não imaginava que isto ocorresse em apenas 24 horas.

Por fim, observe também o sexto dia. Este é o dia em que Deus cria Adão e Eva. Pois bem, quando se lê o capítulo 2 de Gênesis, torna-se plausível que o autor não tenha pretendido que o sexto dia fosse apenas um período de 24 horas, pois ele continua, no capítulo 2, a descrever a atividade de Adão, naquele dia, antes da criação de Eva — a denominação de todos os animais, por exemplo: centenas de milhares de animais que deviam ser do conhecimento dos israelitas antigos.[[3]] A fim de familiarizar-se com os hábitos deles, perceber que nenhum deles era apto a ser-lhe companheiro, perceber que ele estava sozinho e era singular na criação e, então, cair no sono e ver, enfim, Eva criada, parece vislumbrar um período de tempo mais extenso.[[4]] Quando, finalmente, Eva é apresentada a Adão em Gênesis 2.23, o que ele diz? “Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne”. A palavra “agora” conota um período de tempo ou período de espera. Por exemplo, é a mesma palavra utilizada na história de Jacó com Leia e Raquel, em que Jacó, só agora, consegue deixar Labão após 14 anos de trabalho para ganhar Leia e Raquel como suas esposas.[[5]] Igualmente, quando Jacó, enfim, vê ao seu filho José e está pronto para partir desta vida e morrer, a mesma palavra é empregada: só “agora” ele está pronto.[[6]] Então, esta expressão de só “agora” é empregada, em outros lugares de Gênesis, para indicar um longo tempo de espera. Isso, mais uma vez, na minha opinião, sugere que o autor não via o que disse em Gênesis 1 como se fosse descrição de um período de 24 horas.

Assim, por estas e outras diversas razões, penso que se pode legitimamente abordar Gênesis 1—3 com maior flexibilidade do que implica a interpretação literal. Se isto estiver correto, significaria que o relato da criação não tem a intenção de transcorrer em seis dias consecutivos de 24 horas. Isto não é negar que a interpretação literal de Gênesis seja uma interpretação legítima. Penso que se trata de modo perfeitamente plausível de entender Gênesis 1. Simplesmente quero dizer que não precisamos, como cristãos, nos colocarmos numa caixinha e dizermos que esta é a única interpretação legítima para o cristão crente na Bíblia. Os criacionistas da terra jovem que consideram qualquer um que adote a visão não-literal dessas passagens como alguém que, de algum modo, compromete-se com algo que não é bíblico ou, em outro sentido, alguém que trai a ortodoxia bíblica estão, simplesmente, enganados, neste caso, sendo excessivamente estreitos em suas alternativas exegéticas. Há boas indicações no próprio texto, totalmente além da ciência moderna, que sugerem que esse texto não pretende ser entendido literalmente.

Historicamente, é interessante observar que muitos dos Pais da Igreja e rabinos ao longo da história não entendiam que Gênesis 1 se referia a dias literais de 24 horas. Pessoas como Agostinho, Orígenes, Justino Mártir e outros dos Pais da Igreja entendiam que não se tratava de períodos de 24 horas. Sempre houve, entre os Pais da Igreja e entre os rabinos judeus, uma latitude de interpretações — um reconhecimento de interpretações alternativas. Alguns dos Pais da Igreja e rabinos interpretavam, sim, esta passagem literalmente, mas outros a entendiam de modo figurado. Jamais foi pedra de toque da ortodoxia perguntar se a pessoa cria ou não que o mundo foi criado em seis dias literais de 24 horas. Assim, embora a interpretação literal seja uma possibilidade para os cristãos hoje, não penso que seja a única. Há outras interpretações igualmente legítimas.

Pergunta: Amo yom. Tenho estudado yom há oito anos. (Inaudível – ele comenta que há centenas de citações de yom, e todas referem-se a dias de 24 horas.)

Resposta: Pois então, isto não está correto. Tratei do assunto na aula. Meu contraexemplo foi Oseias 6.2.

Continuação: Sim, e são dias literais de 24 horas.

Resposta: Por que você diz isso?

Continuação: Eles apontam para o Messias.

Resposta: Mas, além do Messias, por que é que você entenderia que Oseias 6.2 se refere a períodos de 24 horas?[[7]]

Continuação: Porque diz: em três dias “estarás com o Senhor”. Foram três dias entre crucificação e ressurreição que Israel seria...

Resposta: Pois bem, você está fazendo uma interpretação à luz da vida de Cristo.

Continuação: Mas é claro!

Resposta: Mas não a partir de Oseias e do que a passagem significou para as pessoas para as quais Oseias escreveu, no contexto original, Oseias estava falando dos dois dias que são do juízo e ira de Deus sobre Israel e do terceiro dia de libertação e redenção. E não se trata de dias de 24 horas. Oseias 6.2 — pesquisei também sobre o assunto — não é citado em lugar algum no Novo Testamento com referência a Cristo. O único lugar em que se tem o tema do terceiro dia mencionado explicitamente em relação ao Antigo Testamento é a história de Jonas, em que Jonas estava no ventre da baleia por três dias e três noites.

Continuação: Há 38 “manhã e noite” sem yom que são dias de 24 horas. Há 19 lugares com “manhã e noite” com yom, e todos são dias de 24 horas. Penso que o que é preciso fazer é olhar não apenas a palavra yom, mas o seu contexto e as outras palavras usadas em volta dela.

Resposta: Muito boa observação. Quero afirmar absolutamente o que você disse. Não se pode fazer estudos de palavras simples com base no dicionário e criar assim a exegese de uma passagem. O contexto é tudo. E espero ter feito isto aqui; é o que estava tentando fazer.

Continuação: A segunda parte a observar: havia outras palavras disponíveis em hebraico que poderiam ter sido usadas, se Deus é o autor (creio que ele é o autor, pois Adão ainda não estava lá, e Moisés não escreveu Gênesis)? Há muitas outras palavras que poderiam ser usadas para significar longos períodos de tempo ou períodos de tempo que não são ambíguos. Há muitas palavras que poderiam ter sido usadas, mas não foram. Yom foi usado em muitos casos com manhã e noite.

Resposta: Permita-me responder rapidamente, em razão do tempo. Isto tudo precisa se conciliar com a observação que eu fiz. Mostrar que yom significa um dia de 24 horas nem sequer começa a tratar da questão literária de um dia de 24 horas poder ou não ser usado metaforicamente. Mais uma vez, usarei a minha ilustração de “arm” [braço/arma]: “arm”, em hebraico, significa um membro. Não significa “arma”, como pode ser em inglês. Mas não quer dizer que, quando “the arm of the Lord” [o braço do Senhor] fez isto ou aquilo, Deus tenha, literalmente, extensões físicas. Um período de 24 horas — yom — pode ser metáfora literária.[[8]]


[1] 4:57

[2] De Bíblia Almeida 21

[3] 10:15

[4] Gênesis 2.19-22

[5] A palavra é happaam e pode ser traduzida por “enfim” (ver Gênesis 2.23 RSV) ou “agora” (ver Gênesis 2.23 NASB) ou “desta vez” (ver Gênesis 29.34-35). A passagem que Dr. Craig menciona envolvendo Jacó, Leia e Raquel é Gênesis 29.19-35. A palavra happaam é usada tanto no versículo 34 quanto no 35, mas não no contexto de Jacó “enfim” ganhar Leia e Raquel como esposas. Antes, é usada por Leia as duas vezes. Na primeira vez, Leia exorte que, enfim, Jacó se unirá a ela por dar-lhe três filhos (ver versículo 34: “Agora desta vez meu marido se unirá a mim...). O segundo uso, no versículo 35, é de novo Leia, quando diz: “Desta vez louvarei o SENHOR...”, em reação a dar à luz ao seu quarto filho, Judá.

[6] A referência é a Gênesis 46.30. A palavra happaam costuma ser traduzida por “agora”, como em: “E Israel disse a José: Agora posso morrer, já que vi o teu rosto e ainda vives”. O contexto indica que José está dizendo algo como: “enfim, finalmente, posso morrer, já que vi meu filho José e sei que ele está vivo e são”.

[7] 15:04

[8] Duração total: 18:14 (Copyright © 2013 William Lane Craig)