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Criação e Evolução (Parte 4)

September 06, 2022

Andamos falando, na nossa seção sobre a Doutrina da Criação, sobre diversas interpretações concorrentes dos capítulos iniciais de Gênesis. Observamos a interpretação literal de Gênesis, que diz ser essa uma narrativa semicientífica da criação divina do universo e da vida, em seis dias consecutivos de 24 horas. Defendi, com base em certas pistas no próprio texto, que tal interpretação não é obrigatória ao cristão crente na Bíblia e, pelo contrário, há algumas boas razões para pensar que o autor de Gênesis 1 não pretendia que nós o entendêssemos como se estivesse ensinando seis dias consecutivos de criação de 24 horas.

Pergunta: Como já deve saber, esta é uma área no seu currículo de escola dominical de três anos em que ainda penso haver mais provas bíblicas e científicas para a terra jovem, mas não sou nem um pouco dogmático a este respeito. Na última aula, o senhor estava dizendo que um dos grandes problemas era que a luz foi criada antes do sol, da lua e das estrelas, e que ouviu a explicação de que as nuvens simplesmente saíram do caminho. Acho que é uma explicação tola. Penso, porém, que, se Gênesis 1.14, quando fala de luminares, no hebraico se trata de portadores de luz. Por isso, penso ser importante que a luz tenha sido criada antes dos portadores de luz. Por todo o Antigo e Novo Testamento, Deus é visto em visões como luz e, então, em Apocalipse, fala-se da nova terra, em que não haverá sol, luz e estrelas, pois Deus fornecerá a luz. Assim, não penso que seja problema que a luz tenha sido criada antes do sol, da lua e das estrelas. Igualmente, diz que foram criados como sinais dos dias e anos, de modo que parece que os dias e anos podem ter existido antes do sol, da lua e das estrelas, pois Deus já estabelecera o que eles eram — um sinal só pode ser algo que já fora estabelecido anteriormente. Assim, não penso que haja algum problema que ele tenha decidido dias e anos antes de haver ali o sol, a luz e as estrelas para nos ajudar na marcação. A minha pergunta é a seguinte: será que o senhor concordaria que a evolução teísta, que tipicamente não acredita em Adão e Eva literais, não é compatível com o cristianismo, ao passo que o criacionismo da terra jovem, que tipicamente acredita, de fato, em Adão e Eva literais, seja compatível?

Resposta: Quero segurar um pouco esta questão até chegar a esse ponto. Penso que ainda seja muito cedo para levantar essa questão. Vamos adiar a questão da historicidade de Adão e Eva. Já Indiquei que os principais atores neste drama são apresentados como personagens históricos — principalmente o próprio Deus. Ele, claramente, não é símbolo mitológico. Ele é agente real que cria o mundo. Então, como disse, Adão e Eva — embora sejam simbólicos da humanidade (o nome Adão significa “homem”) — parecem ser indivíduos históricos, por estarem ligados com genealogias e descendentes a pessoas indisputavelmente históricas, como Abraão. Assim, penso que o intérprete, para ser fiel ao texto, tem de lidar com o fato de que esses personagens principais sejam apresentados como indivíduos históricos. Se os evolucionistas teístas conseguem fazer isso bem ou não, falaremos sobre isto mais adiante. Em relação à luz, a questão não era tanto que havia luz antes do sol e da luz, mas que foram dias de 24 horas. Há noite e manhã, o que implica a rotação da terra em seu próprio eixo ao orbitar o sol. Assim, se você disser que há luz antes da criação do sol, isso pareceria sugerir que não se trata, afinal, de dias de 24 horas; que, de fato, não estamos falando de períodos de tempo de 24 horas. Por isso, penso que o criacionista da terra jovem que pega esse rumo terá dificuldade em defender a sua visão de que sejam dias literais de 24 horas, uma vez que isto é determinado pelo sol.[[1]] Em relação ao que você disse sobre eles servirem de sinais — eu mesmo fiz a mesma observação ao falar da doutrina de creatio ex nihilo, em que apontei que a passagem, na verdade, diz “haja” luminares “para” marcar estações, dias, anos e assim por diante. Assim, isto talvez, de fato, pressuponha que já existem e não foram criados no quarto dia. Mas, então, isto quer dizer, mais uma vez, que você vai interpretar o texto de um modo que, justamente, não é literal, quando diz: “Deus criou estas coisas, e foram-se tarde e manhã, o quarto dia”. Por isso, embora a opção que você está apontando seja legítima, questiono se ela se encaixa bem e folgadamente na interpretação do dia literal de 24 horas.

Pergunta: Estava assistindo a um programa no Discovery Channel uma noite, e ele tratava da terra, da criação e todas essas coisas. Falavam de como seguiram o registro fóssil até o passado e chegaram a um nível — e bum! abaixo daquele nível não há registros fósseis. Até criaram um termo para isso: cunharam de explosão cambriana. A minha pergunta é a seguinte: será que há algo, nas Escrituras, que possa indicar que os dias de 24 horas foram os dias da criação, mas não foram dias consecutivos, e houve um período entre eles?

Resposta: Isto dá uma ótima deixa para a próxima interpretação que vamos discutir, a interpretação da lacuna e, em seguida, a interpretação do dia-lacuna, que coloca lacunas de tempo entre os dias de criação. Então, aguente um pouco, e tratarei da questão daqui um minuto.

Pergunta: Sou criacionista da terra jovem, e volto-me à perfeição da escrita de Gênesis 1. Não penso que indica ser ele poesia. Penso que indica o autor. Da última vez em que conversamos, falamos da indicação de que, quando há um número com dia ao longo da Bíblia, tende a ser um dia de 24 horas, e tratamos de Oseias.[[2]] Voltei e olhei Oseias, e penso que os dois dias e três dias são períodos curtíssimos de tempo, mas emprega-se técnica poética chamada de “quiasma”. Indica, na verdade, que Oseias era poesia. É muito semelhante a Jó — de seis calamidades ele te resgatará e de sete não lhe sobrevirá mal algum. É N e N+1 que usam, chamado de quiasma, que indica poesia. Era para fins de memorização. Então, volto ainda, com exceção da poesia, a este ponto de que, onde houver um número e um “dia”, penso que se indicam, sim, dias de 24 horas. A última coisa é que, se Deus quisesse comunicar-nos que se tratava se dias de 24 horas — “foi assim que fiz” —, que outras palavras ele usaria?

Resposta: Não penso que seja uma questão de vocabulário. Primeiramente, em relação à estrutura, os quiasmas que você mencionou; se você atentar para Gênesis 1, ele tem todos os tipos de estruturas assim escritas em toda a sua extensão. É precisamente o que distingue este capítulo como algo elaborado com tanto cuidado. Veja o comentário de Gênesis de Bruce Waltke,[[3]] por exemplo, onde ele expõe muitos tipos de estruturas paralelas que ele enxerga em Gênesis 1 que seriam exatamente indicadoras dos tipos de interesses que levem talvez a pensar que se trata de um tipo poético de narrativa. Quanto ao número ordinal a indicar sempre um período de 24 horas, como eu disse, quando tratei disto na aula, este detalhe poderia ser simplesmente um acidente da quantidade de literatura hebraica que nos restou, ou seja, não temos tantos casos assim em que alguém diz o segundo dia ou o quarto dia e não estejam falando de um período literal de 24 horas.[[4]] Não há nada gramaticalmente em hebraico que exija que, quando se tem um número ordinal com “dia”, ele tenha de ser de 24 horas. Em Oseias 6.2, conforme disse, tem-se uma exceção. Por isso, poderia ser apenas acidente da quantidade de literatura que sobrou. E o último ponto que quero reiterar: não penso que isto sequer começa a tocar na questão de poder um dia de 24 horas ser usado ou não como metáfora. Estou, na verdade, inclinado a concordar com você que os dias em Gênesis 1 têm a intenção de ser dias de 24 horas. Porém, não penso que isto queira dizer que não sejam metafóricos ou que tenham de ser literais. Suspeito que o uso da expressão “foram-se a tarde e a manhã” indica que o autor emprega a noção de dias de 24 horas. E direi, em resposta à interpretação do dia-era, por exemplo, que não parece que ele esteja pensando em eras, mas em dias. Estou quase inclinado a concordar com você, mas não penso que se começa sequer a tocar na questão: será que alguém poderia usar um dia de 24 horas como metáfora para algo além do literal? Para responder à sua última pergunta: como Deus pode fazer isso? Bem, ele poderia prover uma narrativa histórica que se parecesse mais com, digamos assim, o livro de Crônicas ou Reis, onde se tem claramente apenas uma narrativa histórica direta, e não uma peça literária estilizada, teológica e literariamente, como acontece com Gênesis 1, conforme disse Waltke. Não se trata, simplesmente, de um relatório científico ou relatório histórico, como se teria, digamos assim, no livro de Reis ou algo do tipo.

Pergunta: O começo do Antigo Testamento e o começo do Novo Testamento talvez tenham algum paralelo, em que a luz foi criada e, então, os corpos regentes nos céus. No Novo Testamento, o Verbo ali estava e, então, a personificação do Verbo. Igualmente, há plantas primeiro e, então, o sol, a lua e as estrelas; é como se Deus criasse Adão e Eva e, então, houvesse um novo começo com a família de Noé. É quase como se houvesse um começo do seu projeto e, então, o sol, a lua e as estrelas aparecem e assumem seu lugar como um novo começo, e o ritmo de leis naturais acontece. É como vi a questão.

Resposta: Então, isto seria em apoio à interpretação não-literal?

Continuação: Penso que sejam dias de 24 horas.

Resposta: Certo, porque o que você disse não parecia indicar que você apoiava a interpretação literal. Parecia indicar mais que o autor estava fazendo um argumento teológico.

Continuação: Mesmo com o capítulo 5 a falar sobre Adão com 130 anos de idade e gerando um filho. Mas, quando ele nasceu, ele não era um bebê. Por isso, 130 anos — será que isto acrescenta os anos antes mesmo de ele existir? Deus pode fazer qualquer coisa e, então, alcançar o que quer que seja...

Resposta: Você está trazendo à tona algo muito interessante, às vezes denominado teoria de antholos, que faz a seguinte pergunta: “Adão tinha umbigo?”. Isto porque ele nunca nasceu, não é? Ele nunca teve uma placenta. Se Adão tivesse umbigo, quer dizer que Deus o criou com a aparência de idade — ele parecia ter 30 anos de idade quando ele tinha apenas 5 segundos de idade, por exemplo. Assim, será que Deus poderia ter criado o mundo com a aparência de idade, mas não com idade real? É a chamada teoria de antholos, que apela para a capacidade divina de criar coisas que têm a aparência de idade. Não vou falar nada a seu respeito, porque não é bem uma abordagem hermenêutica a Gênesis 1. É mais uma teoria de idade aparente, ou seja, uma tentativa moderna de explicar como o universo poderia ser jovem, mesmo parecendo tão velho.

 

Interpretação da lacuna

Prossigamos para a interpretação da lacuna. Trata-se de uma visão popularizada pela velha Bíblia de Estudo de Scofield. Defende haver uma lacuna entre os versos 1 e 2 de Gênesis, capítulo 1. “No princípio, criou Deus os céus e a terra”, e então há uma enorme lacuna de tempo antes de Deus começar a trabalhar a terra e produzir a vida.[[5]] Defende que foi durante esta lacuna que houve uma espécie de mundo primordial, e todos os indícios de vida fóssil, formas de vida extintas e assim por diante faziam parte de um mundo antigo que existiu antes do versículo 2, sobrevindo-lhes o juízo de Deus que as destruiu. Assim, o que se descreve do versículo 2 em diante é, de fato, a recriação que Deus fez do mundo após longa lacuna. Este ponto de vista diria que todas as provas que temos — científicas e históricas — de períodos geológicos antigos, vida pré-histórica e antiguidade vêm desse mundo pré-lacunar, que foi destruído por Deus antes do versículo 2.

O que podemos dizer para avaliar esta teoria? Penso que poderia muito bem haver uma lacuna de tempo entre os versículos 1 e 2 no primeiro capítulo. O versículo 1 descreve, conforme vimos, a criação divina do universo como um todo. Os céus e a terra é como um hebreu descreveria o universo como um todo. Então, no versículo 2, o enfoque se reduz radicalmente à atividade de Deus sobre a terra: “e a terra era sem forma e vazia”. Ele descreve como Deus transforma a terra de uma deserto desolado e inabitável em um lugar propício para a vida do homem. Assim, poderia muito bem haver uma lacuna entre o versículo 1 (a criação divina do mundo como um todo) e, em seguida, a sua transformação da terra em um ecossistema habitável para a vida humana.

Porém, a ideia de que havia um mundo anterior cheio de vida antes deste é, simplesmente, estranha demais ao texto. O texto está descrevendo a criação divina inicial da biosfera e, em cada ocasião, pronuncia a obra de Deus como boa. Deus viu que era boa. A ideia de que tudo isso é apenas uma repetição de algo que ele fizera antes não tem absolutamente nenhum aval no texto. Lembre-se bem: tudo isto deve ser antediluviano. Não se trata de geologia do dilúvio. É anterior a Noé. Quer dizer que, antes do versículo 2, houve esse mundo pré-histórico de animais, épocas geológicas e assim por diante — talvez até mesmo civilizações antigas —, e tudo foi destruído por Deus. Simplesmente, não há nada no texto para amparar tal visão. De fato, penso que esta interpretação da lacuna parece ser exemplo de concordismo na sua pior versão. Lembre-se: o concordismo é a hermenêutica da tentativa de forçar a ciência moderna no texto — a busca por ler o texto de acordo com a ciência moderna, em vez de lê-lo como teria sido entendido e escrito originalmente. Parece que, sob a pressão das provas científicas e históricas para a vida pré-histórica e o tempo geológico, força-se a leitura de algo no texto que não era nem um pouco pretendido pelo autor. Por isso, acho que esta interpretação não tem amparo hermenêutico.

Pergunta: [faz comentário a algo que o Dr. Craig não consegue saber do que se trata. O que faz a pergunta diz, então, que seria algo contrário à criação ex nihilo.][[6]]

Resposta: Isto retorna à sua interpretação do versículo 1. Na seção sobre creatio ex nihilo, falamos detalhadamente sobre ser o versículo 1 um começo absoluto ou não. “No princípio, Deus criou”. Ou será que se trata de uma oração subordinada, com o sentido de: “Quando Deus, no princípio, criou, a terra era sem forma e vazia” e por aí vai? Defendi com detalhes que, de fato, o que se tem no versículo 1 é uma oração absoluta, e não subordinada. Trata-se de uma oração principal que afirma, sim, ter Deus criado tudo, não a partir de matéria pré-existente ou mundos anteriores, mas foi um começo absoluto. A ideia de que há algo entre o versículo 1 e o versículo 2 que foi destruído por Deus parece-me ser, simplesmente, sem amparo algum a partir do texto. Penso que seja o resultado de forçar a leitura da ciência nele.

Pergunta: Então, entendi que o senhor não quer tanto usar o livro da natureza para acrescentar informação ao texto bíblico. Seria concordismo. É esta a sua interpretação?

Resposta: OK, a sua pergunta é: o que é concordismo? Será concordismo usar o livro da natureza para iluminar o texto bíblico? Penso que o projeto de olhar o livro da natureza, como você o expressou, para ver se está de acordo com a Bíblia, é a tarefa do teólogo sistemático, e não do teólogo bíblico. O teólogo bíblico, na minha opinião, precisa olhar o texto e interpretá-lo de acordo com o gênero literário dele, o que podemos determinar sobre o modo em que o autor original e o seu público o teriam entendido e buscar entender o que o texto quis dizer para ele e o seu público. Então, a pergunta: “Como isto se encaixa no livro da natureza?” e o que a ciência nos diz sobre o universo em que vivemos constitui-se um segundo projeto que será parte da teologia sistemática, em que se busca integrar a Bíblia com as descobertas da ciência moderna, da história e tudo mais. Assim, por ora, estamos nos concentrando apenas neste projeto hermenêutico e vamos tratar desse outro projeto posteriormente, ao pensar em como olhar o livro da natureza e ver se podemos entender as coisas à sua luz e do ensino do texto bíblico.

Continuação: Então, o teólogo sistemático poderia manter esses pontos de vista ou dar essas interpretações...

Resposta: Correto, boa observação. Em outras palavras, o teólogo sistemático poderia manter esses pontos de vista, mas ele não alegaria que é o que o autor original quis dizer. Ele diria que é esta a maneira em que reconstruirei como o universo veio a existir, mas não faria uma alegação hermenêutica de que é isto que o texto está ensinando. Isto já é muito diferente.

Continuação: Seria como a virgem de Isaías 7, certo? Igualmente, a virgem de Isaías 7... parece que Mateus é meio concordista na interpretação.

Resposta: Pois bem, aí aparece a questão do modo em que um autor do Novo Testamento interpretou um texto do Antigo Testamento. É diferente do que estamos falando aqui, em que um teólogo sistemático lê o livro da natureza e busca integrá-lo com o texto bíblico para produzir uma visão bíblica do mundo. Em certo sentido, talvez eu esteja sendo injusto com os proponentes da interpretação da lacuna. Talvez ela não tenha sido proposta, na verdade, como interpretação hermenêutica de Gênesis 1. Talvez tenha sido o que você acabou de descrever: uma teoria para integrar Gênesis com a ciência moderna. Trata-se de um projeto legítimo, desde que não seja proposto como alegação hermenêutica de que é o que o texto original disse e significou, além de como foi entendido. Por isso, se a intenção não era ser assunto interpretativo, mas um projeto secundário, as minhas objeções aqui de que não têm apoio no texto não seriam relevantes. Porém, a minha preocupação, no caso, é, em primeiríssimo lugar, como entendermos o significado ou a interpretação correta de Gênesis 1. Penso que essa interpretação da lacuna, francamente, é muito absurda. A ideia de que, entre os versículos 1 e 2, houve algum mundo pré-histórico que ficou sob o juízo de Deus e foi destruído — não há simplesmente nada no texto a sugerir que foi o que o autor pensou. Da próxima vez, vamos abordar a interpretação do dia-lacuna, que é um tipo de teoria da lacuna um pouco distinta, colocando as lacunas entre os dias da criação.[[7]]


[1] 5:10

[2] Isto se refere a Oseias 6.2.

[3] Bruce K. Waltke, Genesis: A Commentary (Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 2001).

[4] 10:16

[5] 15:24

[6] 20:00

[7] Duração total: 25:10 (Copyright © 2013 William Lane Craig)