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Criação e Evolução (Parte 5)

September 06, 2022

Andamos falando nas últimas tantas lições a respeito de diferentes interpretações de Gênesis, capítulo 1. Da última vez, atentamos para a interpretação da lacuna, que diz haver, entre o versículo 1 e 2 de Gênesis, capítulo 1, uma grande lacuna de tempo, durante a qual houve um mundo pré-histórico — um mundo de organismos e, talvez, até mesmo civilizações, que foi julgado por Deus e destruído — e, então, Gênesis 1.2 descreve a recriação do mundo por parte de Deus. Sugeri que não há nada no texto a indicar que o versículo 2 seja, meramente, uma recriação. Esta interpretação parece ser exemplo de concordismo na sua pior forma. Ou seja, sob a pressão das provas científicas para o tempo geológico e a vida pré-histórica, forçam-se no texto coisas que, na verdade, não estão lá.

Interpretação do dia-lacuna

Passemos à interpretação do dia-lacuna. Ela é um tanto diferente. A interpretação do dia-lacuna sustenta que o que descrevemos em Gênesis, capítulo 1, são seis dias de 24 horas, mas não consecutivos. São seis dias literais de 24 horas, mas não são consecutivos; antes, há longas lacunas de tempo entre os atos criadores da parte de Deus. Assim, por exemplo, no dia um, Deus milagrosamente cria as aves. Então, há esse longo período de tempo durante o qual Deus permite, por exemplo, que as aves se propaguem. Elas produzem segundo as suas espécies. Em seguida, ele intervém novamente, em outro dia de criação, e milagrosamente cria, por exemplo, animais terrestres. Depois, ele permite que se propaguem por um longo período de tempo, segundo as suas espécies, até intervir de novo. Assim, têm-se dias de criação de 24 horas, mas são separados por grandes períodos de tempo.

O que se pode dizer para avaliar esta teoria? Mais uma vez, penso que temos de dizer que não há nada no texto que sugira a interpretação do dia-lacuna. Não há nada no texto que indique haver lacunas de tempo entre esses seis dias. Parece-me que a motivação clara por trás desta interpretação é a busca por conciliar o texto com o tempo geológico e o desenvolvimento evolutivo limitado de formas de vida. Força=se a leitura de lacunas no texto, entre os dias, a fim de estender o passado ao máximo que as provas geológicas indicam ser necessário e, então, permite-se evolução limitada das espécies durante tais lacunas. Na medida em que esta visão tende a ser motivada pela tentativa de conciliar Gênesis 1 com as descobertas da ciência moderna, penso que o que temos, no caso, é exemplo da hermenêutica do concordismo mais uma vez, o que, na minha opinião, é eisegese, e não exegese. É forçar uma leitura para dentro do texto, em vez de a partir dele.

Ironicamente, é preciso dizer também que ela não faz um serviço muito bom na conciliação do texto com a ciência moderna, em todo caso, porque a ciência moderna indica que os animais, por exemplo, não foram criados em períodos de apenas 24 horas. Foram criados ao longo de milhões de anos — mesmo a chama explosão cambriana não foi algo que aconteceu em um dia de 24 horas, mas ao longo de vastos períodos de tempo geológico. Assim, a ideia de que toda a vida aquática, por exemplo, foi criada em 24 horas e, então, houve esse longo período de desenvolvimento sem criação e, depois, houve outro período de 24 horas durante o qual toda a vida terrestre foi criada vai, simplesmente, de encontro ao registro fóssil. Assim, na medida em que a interpretação do dia-lacuna é motivada pelo desejo de encontrar concórdia com a ciência moderna, ela não faz um serviço muito bom, para ser franco.[[1]]

Mas isto é irrelevante, na verdade, para o projeto hermenêutico em que estamos envolvidos a esta altura. Estamos, simplesmente, fazendo a seguinte questão hermenêutica: “O que o texto significa?”. Penso que temos de dizer que a interpretação do dia-lacuna não encontra nenhum respaldo no texto. É uma leitura forçada sobre o texto.

Pergunta: Como é que a interpretação do dia-lacuna resolve o dia 4, a criação do sol?

Resposta: Parece que nada faria nesse sentido, não é? Isto porque ele ainda seria criado em um dia de 24 horas. Eles provavelmente teriam de interpretar a situação, mais uma vez, da maneira em que alguns criacionistas da terra jovem o fizeram, a saber, a abertura da cobertura de nuvens ou algo assim onde o sol aparece agora. Mas você está certo; o simples fato de haver lacunas não ajudaria com esse problema.

Pergunta: Qual é a prevalência desta visão? Nunca a ouvi sendo defendida.

Resposta: Não penso que seja muito prevalente, embora tenha sido proposta. Só estamos fazendo uma sondagem das diversas opções. Esta seria uma delas. De fato, ouvi, quando estava na faculdade, que ela fora sugerida por alguns criacionistas progressivos. Seria uma forma de tentar manter o tempo geológico e a evolução limitada, acomodando as provas para a mudança microevolutiva, sem negar períodos de 24 horas. Mas não consigo mesmo pensar em nenhum defensor moderno desta visão hoje.

 

A interpretação do dia-era

Passemos para a interpretação do dia-era, que é defendida mais amplamente. A interpretação do dia-era é sugerida por inúmeros Pais da Igreja e outros comentaristas através da história. Sustenta que os dias não são períodos literais de 24 horas, mas, sim, que esses dias são, de fato, longos períodos de duração sem especificidade. Embora sejam chamados de dias, não são dias de fato; são longos períodos de tempo — eras. Assim, o que se tem no texto é, na verdade, a descrição da criação de vida por parte de Deus, ao longo de seis eras sucessivas de extensão indeterminada.

Conforme indiquei, temos no texto algumas sugestões de que os dias não são, necessariamente, literais. Vocês devem lembrar-se o que tinha a dizer sobre a criação divina da vegetação e das árvores frutíferas, no terceiro dia, em que Deus ordena que a terra produza essas plantas. Provavelmente, estaríamos imaginando coisas, se pensássemos que o autor achava que era como um filme exibido em velocidade rápida — que tudo aconteceu num período de 24 horas. Por isso, penso que haja alguma indicação no texto de que esses dias não são, necessariamente, literais. Por outro lado, a ideia de que o texto pretende que entendamos esses dias como seis eras consecutivas, especialmente eras de duração igual, é, mais uma vez, uma leitura forçada no texto, em vez de extraída dele. Penso haver indicações, no texto, de que os dias podem não ser literais, mas isto não quer dizer que a intenção era descrever seis eras consecutivas, em especial de duração igual.

Na verdade, mais uma vez, na medida em que aqueles que propõem a interpretação do dia-era são motivados pela ciência moderna para adotar tal visão, ela, na verdade, ainda não se encaixa com o que diz a ciência moderna, em vários aspectos. Por exemplo, as provas não apoiam a visão de que certas formas de vida não entraram em cena até a era anterior acabar. Não é como se fosse preciso esperar para que uma era se completasse antes de virem à existência os animais ou plantas na próxima era. Para dar um exemplo específico, de acordo com os indícios científicos, a vida terrestre apareceu bem antes de entrarem em cena as aves. Ainda assim, o texto diz que as aves foram criadas durante a terceira era, antes da criação de animais terrestres na quarta era. Por isso, houve, na verdade, aves antes da vida terrestre, o que vai complemente contra o registro fóssil e os indícios científicos.[[2]] Alguns intérpretes tentaram escapar a esta dificuldade ao dizer que, talvez, as eras não sejam mesmo eras consecutivas. Talvez sejam sobrepostas, de modo que, por exemplo, haveria a era 1 e, então, a era 2, que podia começar no meio da era 1 e, depois, a era 3 e, em seguida, a era 4, com os animais aparecendo no meio da era anterior, embora sejam descritos como se estivessem na era sucessiva (ver Figura 1).

Figura 1 – Dias-eras sobrepostos [age = era]

Mas penso que temos de dizer que esta hipótese é, obviamente, uma forçação de barra que está tentando salvar a precisão do texto e alinhá-lo aos indícios científicos modernos. Seria inútil tentar discernir no próprio texto qualquer sugestão de que esses dias ou eras não sejam consecutivos, e não um após o outro, mas, de algum modo, começando no meio do outro e continuando. Está claramente, mais uma vez, tentando forçar a leitura da ciência moderna no texto e o fazendo conformar-se à ciência moderna.

Então, embora eu diga que a interpretação do dia-era seja, sem dúvida, uma possibilidade, ela é uma possibilidade que o autor não queria que considerássemos, como se fossem seis eras consecutivas — não obstante, além do fato de que os dias não sejam, necessariamente, literais, não há lá muito apoio, no texto, para pensar que os dias pretendem representar eras. Assim, se há outras interpretações que adotam também os dias como não-literais, teremos de comparar a interpretação do dia-era com elas para tentar discernir qual interpretação do texto é a mais plausível. Porém, o simples fato de dizer que os dias não são literais não implica, em si, que o autor pretendia que pensássemos em seis eras consecutivas, durante a qual as coisas foram criadas na terra.

Pergunta: Entendo que, quando um verso diz: “e foram-se tarde e manhã”, ele pode querer dizer que há um começo da era ou tempo e houve um fim do tempo, o que dá cabo dessa ideia de progressão ou de cruzamento das eras [ele está se referindo à Figura 1.]

Resposta: Você quer dizer que, quando se diz: “e foram-se tarde e manhã”, isto sugeriria que se trata da noite, e, então, a manhã da próxima era começaria logo em seguida? Pareceria ser a explicação natural. Se eu o entendo corretamente, quando se dá a era 1, é dito: “e foram-se tarde e manhã, o primeiro dia” e, então, começa o próximo dia. E, então, foi tarde e foi manhã, e assim foi o próximo dia. Então, as eras parecem consecutivas, não é? Penso, sem dúvida, que essa ideia [referindo-se à Figura 1 e à sobreposição das eras], embora inteligente, é forçada, para falar a verdade. A linguagem natural, na minha opinião, seria como você disse.

Continuação: Então, o senhor concorda que há um ponto inicial e um ponto final nos versículos?

Resposta: Certo, parecem eras consecutivas. Se são eras, elas me parecem consecutivas, e não esse tipo de conjunto escalonado de eras.

Pergunta: Ocorreu-me que o sábado começa na noite, e não na manhã. Vai da noite para a manhã, certo? Será que é por isso que a fé judaica adotou tal posição, por ser o que diz a Bíblia sobre a noite e a manhã?

Resposta: Eu diria o oposto. Penso que a razão por que a narrativa de Gênesis foi escrita a partir de “e foram-se tarde e manhã” reflete esse modo ritual judaico posterior de contar dias, em que o dia começa às 18 horas, à noite, com o pôr-do-sol, e, então, termina no dia seguinte com o pôr-do-sol. Assim, os dias não transcorrem como pensamos, começando pela manhã, ao alvorecer. Vai de crepúsculo a crepúsculo, em vez de manhã a manhã, como fazemos na cultura ocidental. A narrativa reflete tal prática.

Continuação: O senhor está dizendo que o povo judaico crê que o dia começa no nascer-do-sol?

Resposta: Certo.[[3]]

Pergunta: Mas será que Gênesis 1 foi escrito antes de haver o povo judaico?

Resposta: Bem, aí é uma questão de autoria, e não estou tomando nenhuma posição a este respeito. Tradicionalmente, é atribuído a Moisés. A autoria tradicional do Pentateuco é atribuída a Moisés. Assim, nesse sentido, seria após Abraão e, sim, o povo judaico já existia à época.

Continuação: Pensava que a autoria de Gênesis não era atribuída a Moisés, que ela remontava às tabuinhas, aos toledot, que era descrito como uma série de toledot...

Resposta: Essas são só as gerações.

Continuação: As gerações, sim, exatamente. São atribuídas no próprio livro — diz que eram os dias de Adão. Escreveram essas tabuinhas, descobriram essas tabuinhas no Oriente Médio, e cada uma dessas tabuinhas registrou a geração e o seu relato do que aconteceu. É por isso que parecia repetitivo. Isto porque se obtém uma descrição da geração e, então, o próximo autor escreve um pouco a seu respeito, e parece haver repetição.

Resposta: Quando se olha a forma em que os autores do Novo Testamento citam o Pentateuco do Antigo Testamento (os primeiros cinco livros de Moisés), eles costumam dizer: “Como disse Moisés” ou “Quando se lê Moisés”. Estão pensando na atribuição a Moisés. Mas isto não é incompatível com a afirmação de que Moisés tinha fontes e tradições, talvez tradições orais, sobre as quais ele dependia ao escrever. Assim, a data do relato original de Gênesis não é algo sobre o qual estou me posicionando, quanto à data em que foi realmente escrito. Estudiosos liberais dariam uma data muito posterior, mas dizer que é mosaico seria a posição conservadora que o situaria em período muito antigo, e não mais recente, na história de Israel. Seja como for, havia, sem dúvida, judeus que, no caso, contavam essa história.

Continuação: Realmente, penso que Moisés não poderia ter escrito nada disso, a menos que tivesse fontes — a não ser que ele tenha inventado tudo. Assim, ele tem as fontes, de modo que os autores das fontes não eram mesmo Moisés, e foi antes de haver o povo judeu. É por isso que trouxe à tona esta questão.

Resposta: Acho que se trata de questão importantíssima que os estudiosos do Antigo Testamento debatem ferozmente: as fontes de Gênesis. Você precisaria, então, tentar discernir quais elementos na narrativa representam as fontes e quais representam o trabalho editorial do redator ou editor final, e assim por diante. Trata-se de questão muito controversa. Há teorias das fontes de Gênesis que, simplesmente, não vamos abordar, porque estamos nos perguntando: “Como interpretar o texto conforme o temos?”, e não tentando discernir essas tradições que podem estar por trás dele, algo muito controverso e difícil.[[4]]

 

[1] 4:55

[2] 10:02

[3] 15:03

[4] Duração total: 18:44 (Copyright © 2013 William Lane Craig)