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Criação e Evolução (Parte 6)

September 06, 2022

A interpretação do dia-revelação

Andamos tratando de diferentes interpretações de Gênesis 1, e vimos a interpretação literal, a interpretação da lacuna e a interpretação do dia-era. A interpretação do dia-revelação sustenta que os sete dias mencionados em Gênesis 1 não são dias de criação, mas dias de revelação. Quer dizer que são sete dias consecutivos em que Deus revelou a Moisés, ou a quem quer que tenha sido o autor de Gênesis, o que Deus fez ao criar o mundo. Assim, cada dia é um dia consecutivo literal, mas não se trata de dias de criação; são dias de revelação da atividade criativa de Deus, em vez de descrição dos sete dias de criação em si. A interpretação do dia-revelação substitui, portanto, sete dias consecutivos de revelação por sete dias consecutivos de criação.

O que se pode dizer para avaliar teoria? Devo dizer que ela me soa deveras implausível. Não há nada, no texto em si, a sugerir que estamos lidando, no caso, com dias reveladores, sete dias consecutivos de revelação. Pelo contrário, os dias são descritos como o que Deus faz em cada dia sucessivo — as coisas que ele cria nesses dias sucessivos. Então, no fim de cada período de criação, ele o pronuncia bom e, em seguida, vem a tarde e a manhã. Assim, não há aí nenhuma sugestão, na minha opinião, de que estejamos lidando com dias de revelação, em vez de dias de atividade criadora por parte de Deus. Por isso, acho que este ponto de vista é bastante implausível.

A interpretação da estrutura literária

Passemos para um ponto de vista mais interessante — a interpretação da estrutura literária. A interpretação da estrutura literária foi defendida habilmente pelo estudioso francês de Novo Testamento Henri Blocher. Ele escreveu um livro chamado No princípio, em que defende a visão da estrutura literária.[[1]] De acordo com esta visão, o autor de Gênesis 1 não está interessado em cronologia. Ele não está tentando relatar uma visão após outra de modo cronológico. Antes, os dias servem como uma espécie de estrutura literária para basear o seu relato da criação. Ele quer descrever como Deus é a fonte de toda vida; Deus é o criador de todo o mundo. Ele usa a estrutura de seis dias como estrutura literária em que baseia o seu relato. Porém, ele não pretende que tal estrutura literária seja interpretada de modo cronológico.

Desde a Idade Média, os comentaristas bíblicos observam que parece haver uma espécie de paralelismo entre os primeiros três dias e os segundos três dias em Gênesis 1. Correspondendo ao primeiro dia está o dia 4, correspondendo ao segundo dia está o dia 5 e correspondendo ao terceiro dia está o dia 6. Blocher também enxerga esta estrutura como significativa.[[2]] Ele diz que, nos primeiros três dias, Deus cria o domínio ou o espaço para certa forma ou entidade de vida. Então, nos segundos três dias correlatos, ele cria os ocupantes do espaço ou do domínio. Assim, a título de exemplo, no dia 2, o texto diz que Deus separa as águas acima dos céus das águas abaixo dos céus. Em seguida, no quinto dia, ele cria as criaturas marinhas e as aves para habitar as águas e voar pelos céus, de onde a água foi removida. Igualmente, no dia 3, diz-se que Deus cria a terra seca, a vegetação e as árvores frutíferas. No dia 3, há a terra seca e a vegetação — dois atos de criação — e, então, no dia 6, há dois atos de criação — os animais terrestres e, então, os seres humanos. Assim, a ideia é que, nos primeiros três dias, Deus cria os habitats ou os domínios e, então, nos segundos três dias, ele cria os habitantes dos domínios. Assim, o relato da criação não tem a intenção de ser cronológico; antes, a semana de criação é uma espécie de estrutura temática ou literária para basear um relato acronológico.

Penso que é uma visão interessantíssima, defendida habilmente por Blocher, e, por isso, merece ser considerada com seriedade. Devo confessar, porém, que sou um tanto cético quanto ao suposto paralelismo entre os primeiros três dias e os segundos três dias — dias 1 a 3 e dias 4 a 6. Uma leitura mais detida do texto mostra que esses dias não são bem paralelos de forma exata. Por exemplo, no dia 4, Deus cria as luzes no céu — o grande luminar, o sol; o luminar menor, a lua; e as estrelas. Assim, ele cria os luminares celestes no dia 5. O que corresponde à criação que Deus fez das luzes no firmamento no dia 4? Bem, claramente, é a criação divina do firmamento no dia 2. No dia 2, ele cria o firmamento e, em seguida, no dia 4, ele coloca os luminares no firmamento. A separação das trevas e da luz que ocorre no dia 1 não é, na verdade, a criação de um lugar para o sol, a lua e as estrelas. Isto vem no dia 2, quando Deus cria o firmamento — este é o lugar ou o domínio em que, no dia 4, Deus coloca o sol, a lua e as estrelas. Igualmente, no dia 5, Deus cria as criaturas marinhas. O que corresponde à criação divina das criaturas marinhas? Bem, é a sua criação dos mares no dia 3. É aí que se encontra o vínculo verbal. É verdade que, no dia 2, ele separou as águas acima dos céus das águas abaixo dos céus, mas é só no dia 3 que as águas abaixo dos céus são reunidas nos mares e recebem o nome de “mares”. Em seguida, no dia 5, Deus cria as criaturas marinhas para habitar o domínio dos mares. Assim, novamente, não é lá paralelo ao dia 2, em que ele simplesmente separa as águas acima dos céus das águas abaixo dos céus.[[3]] Enfim, no dia 3, observem que não se dá apenas a criação da terra seca — ela não é, simplesmente, estéril —, ocorre também a criação da vegetação e das árvores frutíferas que habitam a terra seca e crescem na terra seca. Assim, no dia 3, Deus não cria, simplesmente, um domínio ou um espaço; ele também cria alguns dos habitantes e algumas das coisas que vivem naquele domínio. Penso que seria forçar demais a imaginação considerar que a vegetação queria dizer um domínio em que homem e animais viveriam, e eles são criados no dia 6.

Por isso, devo dizer que não fico muito convencido de que este paralelismo esteja, de fato, presente no texto, em oposição a uma espécie de construto que o intérprete impõe no texto ou força nele. Não acho que este paralelismo esteja mesmo presente na forma descrita. Parece ser um construto ou criação do intérprete — no caso, Blocher. Dito isto, não acho que a visão da estrutura literária comprometa-se a dizer que a estrutura deva ser entendida a partir de domínios e habitantes desses domínios. Veremos isto quando chegarmos à visão da criação funcional, de que falaremos na próxima vez. Há um paralelismo observado também entre os dias, mas é interpretado de modo diferente do que domínios e habitantes desses domínios. Por isso, não acho que a visão da estrutura literária permaneça ou desmorone a partir desta interpretação particular dos paralelos, mas, ainda assim, isto parece pôr em causa a visão de Blocher.

Em segundo lugar, porém, não fico convencido ainda de que a cronologia, na narrativa, não deva ser levada a sério. Na visão da estrutura literária, a cronologia é insignificante. Mas, sem dúvida, a ideia de numerar os dias consecutivos — segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto — com esses números ordinais, como faz o autor, e a progressão a partir da desolação no começo, os mares primordiais e nada vivo, rumo à aparição da terra seca e, depois, da vegetação e, depois, da vida animal e, por último, culminando no homem e, então, no sétimo dia, o descanso de Deus da sua obra de criação; sem dúvida, isto sugere que a cronologia é parte desta narrativa. Blocher admite que este motivo da criação em 6+1 dias é motivo comum nos antigos mitos da criação, tais como histórias egípcias da criação. Isto leva à questão: se este é motivo comum no mundo antigo, por que pensar que, aqui, em Gênesis 1, não se pretende que seja levado a sério? Por que pensar que se trate apenas de artifício literário, e não de cronologia genuína? Observe que simplesmente mostrar um paralelismo não mostra que ele seja acronológico. É possível ainda ter paralelismo entre os dias e considerá-los ordenados cronologicamente. Assim, tenho algum ceticismo sobre esta visão; não obstante, acho que se trata de uma visão muito substancial e interessante, que merece mais investigação.

Pergunta: É muito interessante, e creio na cronologia, mas o contexto e conteúdo — os primeiros três dias e os últimos três dias —, creio que estão aí como um limite. Quando ele criou a luz, o limite foi colocado entre a luz e as trevas. Depois, no segundo dia, vem céu e terra. No terceiro dia, são terra e mar. E, então, o conteúdo aparece naquele limite. O interessante é que os seres humanos tentam remover todos os limites. Por isso, o juízo ocorre nos dias de Noé, quando Deus remove o limite entre terra e mar.

Resposta: Caramba, foi você que criou essa interpretação?[[4]]

Continuação: Bom, estou fazendo o estudo de BSF[[5]] agora e, ao responder ao questionário, todas essas ideias surgiram. Por isso, só achei que eram empolgantes para mim.

Resposta: Pois bem, devo dizer que fiquei impressionado. Acho que a ideia de estabelecer limites entre trevas e luz, águas de cima e águas debaixo, terras secas e mares é muito mais plausível do que a visão de Blocher. Por isso, estou impressionado!

Pergunta: Teria sido algo que o público original de Moisés teria entendido sobre o relato da criação? Os hebreus o teriam entendido? Como isto se encaixaria no propósito de Moisés ao escrever esta história, para começo de conversa?

Resposta: Esta é a questão fundamental, não é? Blocher pensa que entenderiam. Ele acha que esses leitores originais teriam entendido e, no mínimo, não seriam desencaminhados por um arranjo literário ou temático em que Deus está fazendo algo, como criar domínios, e, então, habitantes, ou talvez limites e, então, conteúdo. Se bem que Blocher não resolve tão bem assim o fato de que se trata de motivo encontrado em outras histórias antigas de criação. Penso que ele precisa atentar para isso e mostrar-nos que não é, tampouco, cronológico. Se ele nos pudesse mostrar que, nesses outros mitos de criação, é algo meramente literário, ele traria um argumento muito forte para pensar que é algo meramente literário, neste caso. No entanto, se nesses outros mitos parece cronológico, seria um fator contrário à visão dele. Não acho, pelo menos até onde me recordo na leitura do livro dele, que ele faça isso. Ele sabe dessas questões, mas não as discute muito. Veremos, quando chegarmos à criação funcional e à interpretação do mito hebraico que, no caso, esses autores travam diálogo muito mais forte com as histórias de criação dos vizinhos de Israel, e veremos quais pistas elas podem oferecer para o modo em que os leitores originais as teriam interpretado.

Pergunta: A palavra hebraica para “firmamento” é, na verdade, “lâmina martelada” — é a mesma palavra usada para a cobertura da mesa com folhas de ouro no templo.

Resposta: Sim. Como veremos ao chegarmos à criação funcional, isto se torna argumento importantíssimo nas mãos de John Walton, para a sua visão de interpretar Gênesis 1, não a partir do que ele denomina de criação material, mas criação funcional. Ele diz que, caso seja interpretada como criação material literal, compromete-se com o que você disse, a saber, que há essa espécie de domo sólido no céu, como uma peça martelada de metal. Há esse domo sólido no céu que separa as águas acima das águas abaixo e, ocasionalmente, ele se abre, as águas vazam por ele, e chove. Obviamente, ninguém com conhecimento científico moderno pensa que há algo como esse domo sólido no céu. A questão aqui, penso eu, será se esses hebreus antigos pensavam de modo tão literal ou se teriam usado também metáforas. Walton pensa que não.

Pergunta: Algo que aprendi com Hugh Ross: o hebraico bíblico tem apenas três mil palavras, tem um vocabulário de três mil palavras, e acabou. Penso que é algo que se deve ter em mente ao ver as palavras originais: eles não tinham muito a escolher.

Resposta: Boa observação. Você está dizendo isto em relação à solidez do firmamento?

Continuação: Exatamente. Só poderiam descrever o firmamento usando essa quantidade de palavras. Com apenas três mil, é preciso pegar palavras que podem ter mais de um significado. Pode não ser tão literal.

Resposta: Pois bem, não nos concentremos nisto a esta altura. Quero me assegurar que entendemos a visão da estrutura literária e as críticas ou avaliação que trouxe sobre ela.

Pergunta: O senhor crê que traduções antigas, como os Targumins ou a Septuaginta, trarão qualquer valor a esta discussão?

Resposta: Boa pergunta. Devo confessar que, nas obras que li — comentários etc. — sobre Gênesis 1, não parecem apelar muito aos Targumins para entender o que foi dito.[[6]] Não tenho familiaridade com nenhuma literatura dessa natureza. Os Targumins são paráfrases ou comentários judaicos que poderiam dar novas perspectivas sobre como entendiam diversos versículos.

Continuação: Por serem tão anteriores à ciência moderna, poderiam mostrar: é literal ou mais figurativo? Do mesmo modo, o grego antigo da Septuaginta tinha um vocabulário enorme. Baseava-se no grego dos filósofos antigos. Talvez ajudasse; talvez não, se fosse só literal, quando traduziram.

Resposta: Ou talvez fosse algo usado metaforicamente. Você está usando o domo como metáfora para algo como um limite. Mas, sim, em relação à Septuaginta, seria interessante ver qual palavra grega utilizaram para traduzir “firmamento”. Não sei. Como disse, não é tão pertinente assim para a visão da interpretação literária.[[7]]


[1] Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis (InterVarsity Press, 1984).

[2] 5:01

[3] 10:02

[4] 15:02

[5] BSF = Bible Study Fellowship. Ver http://www.bsfinternational.org

[6] 20:02

[7] Duração total: 21:17 (Copyright © 2013 William Lane Craig)