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Criação e Evolução (Parte 7)

September 06, 2022

Interpretação da criação funcional

Passemos para a nossa próxima interpretação de Gênesis 1 que está em jogo. É a chamada interpretação da criação funcional.

Em seu livro recente, John Walton expõe esta interpretação. O título do seu livro é O mundo perdido de Gênesis 1.[[1]] Walton afirma que a criação, no antigo Oriente Próximo, tem sido compreendida erroneamente por todos. Ele diz que nós, hoje, entendemos a criação como se tratasse do modo de virem à existência as coisas materiais, quando, de fato, no mundo antigo, a criação tinha a ver, na realidade, com a especificação das funções que as coisas materiais desempenhariam. Walton dá o exemplo de um restaurante. Quando um restaurante, diz ele, começa a existir? Não é só quando o edifício está pronto, a cozinha está instalada, e as cadeiras e mesas estão postas. É quando o restaurante abre para os clientes e começa a funcionar como restaurante. É então que o restaurante realmente é criado. Não basta apenas que o edifício material seja construído para que seja um restaurante. Ele precisa funcionar de certa maneira. Quando ele começa a funcionar dessa maneira, é nesta data que se dirá: “o restaurante começou a existir”. Pois bem, caso o exemplo não lhe caia muito bem, permita-me dar outro exemplo que, na minha opinião, ilustrará tal diferença. Imagine alguns ilhéus do Pacífico Sul a reunir-se e a decidir que vão permitir que certa espécie de concha funcione como moeda corrente na sua sociedade ilhéu. Estas conchas terão certo valor que poderá ser usado em troca por mercadorias e no comércio. Assim, essas conchas viram dinheiro. Ora, as conchas já existem. Estes objetos materiais já existem. Porém, eles não são dinheiro até que os ilhéus comecem a atribuir-lhes tal função. Neste momento, cria-se o dinheiro. Quando as conchas passam a funcionar como moeda corrente, é aí que se cria o dinheiro nessa sociedade, embora as conchas já estivessem presentes. Isto ilustraria a diferença entre o Walton denomina de criação material e criação funcional.

O que ele afirma é que, no antigo Oriente Próximo, entendia-se a criação puramente a partir da criação funcional. Assim, diz ele, Gênesis 1 não trata, na realidade, da criação divina da terra e da terra seca, da vegetação e dos animais, nem mesmo do homem. Antes, trata da declaração divina das funções deles, na ordem criada, em relação à humanidade. Por isso, Walton crê que os sete dias de Gênesis 1 são dias consecutivos literais de 24 horas, durante os quais o universo foi inaugurado como o templo cósmico de Deus em que ele habitará. E o sétimo dia é o clímax dessa inauguração, quando Deus passa a residir no seu templo, cujas funções foram plenamente especificadas nos sete dias anteriores e os seus funcionários instalados. Walton alega que a sua interpretação do texto é a interpretação literal. Não é figurativa ou literária, como era a de Henri Blocher, conforme vimos da última vez na interpretação da estrutura literária. É uma explicação literal. É só que criação, afirma Walton, não significava o que todos hoje entendem por ela. Gênesis 1 é para ser interpretado literalmente, mas tem a ver completamente com a criação funcional, e não com a criação de coisas materiais.

A visão de Walton é sutil e requer que se entenda a diferença que ele faz entre criação material e funcional.[[2]]

Pergunta: A pessoa que criou esta teoria, ele defende um universo pré-existente?

Resposta: Sim! Ele defende, como veremos. Ele alega que Gênesis 1 não trata da criação de vegetação, animais, plantas e coisas assim. Apenas especifica que elas servirão a várias funções.

Continuação: Então, o universo sempre existiu?

Resposta: Bem, ele já estava presente.

Pergunta: Gênesis 1.1. diz: “No princípio, Deus...”. O senhor faz apologética e prova que Deus existe. Mas a Bíblia aceita o fato de que Deus é. Será que isso está no mesmo contexto do que o senhor está falando sobre a criação? Não há a intenção de provar que algo existe — simplesmente se afirma que existe.

Resposta: Ele entende que Gênesis 1.1. (“No princípio, criou Deus os céus e a terra”) significa uma espécie de resumo do capítulo inteiro adiante. Aqui, remeto-o às suas notas sobre creatio ex nihilo, em que falamos em detalhes sobre a relação entre os versículos 1 e 2. Walton não considera que o versículo 1 seja uma afirmação da criação divina do universo no princípio. Ele diz que se trata apenas de um resumo, como se fosse uma espécie de título do capítulo. “No princípio, criou Deus os céus e a terra” — é só um título para o que vem a seguir. Assim, ele crê que a criação começa, de fato, no versículo 2. A história começa, de fato, no versículo 2, com o oceano primordial e, então, com Deus a dizer: “haja luz” e assim por diante.

Pergunta: Isto envolve a interação física de Deus com o mundo? Seria isto parte da interpretação de Walton?

Resposta: Parece que não, assim como os ilhéus do Pacífico Sul não interagem com as conchas ao declarar que agora vão funcionar como moeda corrente. Não há absolutamente nenhum efeito. Apenas declaram que agora elas funcionam como dinheiro.

Continuação: Então, na verdade, seria compatível com a ideia de que o universo é sistema causalmente fechado sob a física.

Resposta: Sim.

A propósito, Walton não é nenhum liberal desvairado. Ele é professor na Faculdade Wheaton, onde me formei.

Admito que vou gastar um tempo desproporcional nesta visão. A razão é dupla. Uma é que acabei de ler o livro de Walton e fiquei muito empolgado com ele! A outra é que o livro se tornou muito influente em toda a discussão sobre criação e evolução hoje. Tem endosso de Francis Collins e diversos outros estudiosos na quarta capa do livro; por isso, penso que esteja desempenhando papel influente no diálogo entre fé e ciência hoje.

O que podemos dizer para avaliá-la? A primeira questão que quero abordar é o esclarecimento terminológico. Walton traça uma firme dicotomia entre o que ele chama de ontologia material e ontologia funcional: criação material e criação funcional. Infelizmente, acho que essa terminologia é imprecisa e equivocada. Penso que podemos ver isto ao comparar a terminologia de Walton com a análise de causação de Aristóteles. Aristóteles disse que, quando consideramos as causas, elas podem ser de muitos tipos diferentes. Por exemplo, existe a causa eficiente de algum efeito. A causa eficiente, para Aristóteles, é o que traz à existência o efeito. Leva o efeito a existir. Assim, por exemplo, Michelangelo é a causa eficiente da estátua Davi. Ele esculpiu Davi — ele é a causa eficiente da estátua. Causas podem também ser, no entanto, causas materiais, segundo a visão de Aristóteles. Uma causa material é o material da qual é feito o efeito. É a matéria de que ele é feito. Assim, por exemplo, enquanto Michelangelo é a causa eficiente de Davi, a causa material é o bloco de mármore que foi extraído e, depois, moldado e esculpido para virar a estátua. Em terceiro lugar, existe o que Aristóteles denominou de causa formal. Seria o padrão ou o conteúdo de informações do efeito. A estátua Davi tem certo padrão ou estrutura ou conteúdo de informações que determinam a sua forma.[[3][ Por último, existe a causa final. Seria o fim para o qual algo é feito, ou o alvo ou propósito para o qual algo é feito. Pode-se presumir que Michelangelo teve algum tipo de objetivo estético em mente ao criar Davi. Seria a causa final.

Tratemos, agora, da criação funcional segundo Walton. Onde a criação funcional se encaixaria no esquema de Aristóteles? Se Aristóteles estivesse falando com Walton, o que ele entenderia ser a criação funcional? Pois bem, acho muito óbvio que seria a causalidade final. A criação funcional especifica o fim — o propósito ou o telos — para o qual algo é criado. Assim, Walton dirá que a criação funcional é de natureza teleológica. Ele, explicitamente, identifica a criação funcional com a especificação da teleologia — o fim para o qual algo existe ou é feito, o propósito a que serve. Seria a causação final. Seria a criação funcional, a causalidade final. Onde, no esquema de Aristóteles, estaria a criação material? O que corresponderia à criação material? Bem, não seria a causa material, não é verdade? A causa material é a matéria da qual se faz algo e, quando Deus cria os objetos materiais, ele não é a matéria de que elas são feitas, certo? Ele não é a causa material delas. Deus é a causa eficiente de objetos materiais. Assim, quando Walton trata da criação material, o que ele quer dizer, na verdade, é a causação eficiente da parte de Deus ao trazer à existência esses objetos materiais ou fazê-los existir. É o que uma causa eficiente faz: traz à existência o seu efeito.

Por que, então, Walton denomina de causalidade eficiente a criação material? Parece confuso. Por que chamar de criação material? Bem, penso que a razão seja que ele tem entendimento impreciso do que signifique um objeto material existir. Ele diz: “O que significa que algo — digamos, uma cadeira — exista?”. Ele responde que, na nossa cultura, “... uma cadeira existe porque é material”.[[4]] Ora, isto está patentemente errado. Se você moesse uma cadeira, o mesmo material ainda existiria, mas não seria mais uma cadeira. Para que uma cadeira exista, o material tem de ser arranjado de certa maneira como objeto unificado que tem certas propriedades específicas. Isto é muito importante, porque a causa eficiente de uma cadeira não tem de ser a causa do material do qual se faz a cadeira. Quando um carpinteiro faz uma cadeira, por exemplo, ele é a causa eficiente da cadeira, mas a madeira é a causa material da cadeira. A questão em que estamos interessados em relação a Gênesis 1 é se Gênesis 1 está descrevendo Deus como a causa eficiente dos efeitos que ele produz ou se o está descrevendo meramente como se especificasse as causas finais para objetos que já estavam presentes.

Acho que a terminologia de Walton não é só imprecisa, mas também equivocada. Walton, no seu livro, nota que, em alguns casos, os objetos que, segundo se diz no Antigo Testamento, Deus criou, não são objetos materiais — por exemplo, Walton aponta para trevas ou desastre ou norte e sul (são todas coisas que, segundo se diz, foram criadas por Deus). Portanto, diz ele, essas passagens não podem referir-se à criação material ou causação eficiente. Eu acho, porém, que ele se equivocou, evidentemente, com a sua terminologia falha. Quando Deus, por exemplo, cria o desastre, ele é, obviamente, a causa eficiente do desastre, embora o desastre não seja objeto material e, portanto, não tenha causa material. Walton confunde-se com a sua própria terminologia ao pensar que, porque o desastre não tem causa material, ele não pode ser exemplo de criação material.[[5]] Veja como a sua terminologia o levou a equívocos. É exemplo de causação eficiente, embora coisas como desastre, trevas, norte e sul não sejam objetos materiais. São casos de causação eficiente.

Por fim — e aqui vai minha última observação —, penso que a análise de Aristóteles pode servir a nos alertar contra a elaboração de falsas dicotomias. Não é preciso ser uma coisa ou outra — é possível ser tanto uma quanto outra. Todos os quatro tipos de causação podem estar envolvidos em caso específico de criação. Só porque um texto fala de Deus como se ele especificasse a causa final para a qual algo existe — como se especificasse a sua função —, não se exclui que ele seja também a causa eficiente. Não devemos pensar na questão como se fosse uma coisa ou outra. Poderia ser tanto uma quanto outra. Por isso, quer dizer que, se Walton vai mostrar-nos que Gênesis 1 se ocupa exclusivamente da criação funcional, ele tem de provar que a criação material ou a causação eficiente estão excluídas. Não basta que ele mostre estar envolvida a criação funcional. Ele tem de mostrar que a causação eficiente ou a chamada causação material estão excluídas, que elas sequer entram na equação.

Penso que este esclarecimento terminológico é realmente crítico e, à medida que virmos da próxima vez a teoria da criação segundo Walton, precisaremos perguntar: Será que Gênesis 1 pensa em Deus como a causa eficiente dos objetos que ele cria? Será que se trata daquilo que Walton denomina de causação material (equivocadamente), ou será que Gênesis 1 simplesmente diz respeito à especificação, por parte de Deus, das causas ou funções finais a que as coisas servem? É este assunto que abordaremos na próxima vez.[[6]]


[1] John H. Walton, The Lost World of Genesis One (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2009).

[2] 5:00

[3] 10:02

[4] John H. Walton, The Lost World of Genesis One, (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2009), p. 23.

[5] 15:01

[6] Duração total: 17:13 (Copyright © 2013 William Lane Craig)