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Criação e Evolução (Parte 9)

October 07, 2022

Andamos falando da interpretação adequada de Gênesis 1 e, em particular, da interpretação da criação funcional de John Walton.[1] Da última vez, vimos a palavra bara, usada no Antigo Testamento como a palavra para “criar”, e defendi que bara é uma espécie de causação eficiente, e não criação funcional.

Agora, queremos adentrar na interpretação de Walton do capítulo e na sua alegação de que, em Gênesis 1, a criação não começa no versículo 1; antes, a criação começa no versículo 2, com as águas primordiais e o Espírito Santo a pairar sobre as águas. Na sua perspectiva, o versículo 1 é tão-somente uma súmula da semana inteira da criação. Não se trata de um ato inicial de criação que se dá antes do versículo 2. A criação, propriamente dita, não começa, de fato, senão no versículo 2, com as águas já no seu devido lugar. Assim, a criação, diz ele, ao menos em Gênesis 1, não envolve trazer a matéria à existência, mas apenas envolve o estabelecimento de funções.

Penso que seja importante recordarmos justamente o quanto é radical a interpretação de Walton. Talvez pensemos que, segundo a visão dele, a criação começa com as águas primordiais já no seu devido lugar e, em seguida, nos próximos sete dias, Deus introduz ordem e função nesse mundo ao fazer aparecer a terra seca e separá-la dos mares, ao trazer à existência criaturas marinhas e aves, ao fazer a vegetação e as árvores frutíferas brotarem, ao criar os animais terrestres e assim por diante. Porém, conforme o interpreto, isto seria um mal-entendido. Estas coisas seriam todas exemplos de criação material, mesmo que não envolvam trazer algo à existência a partir do nada (ex nihilo), assim como a montagem de uma cadeira por um carpinteiro seria um exemplo de criação material ou causação eficiente. Se este relato é para ser, exclusivamente, funcional, conforme alega Walton, quer dizer que todas as plantas, animais e até mesmo o homem têm de estar lá, já a partir do versículo 2. Ele, então, simplesmente estabelece funções deles nos próximos dias. Assim, Walton afirma, na página 169 do seu livro, que, antes dos sete dias de Gênesis 1, os dinossauros e os hominídeos estavam firmes e fortes, só esperando para receber as suas respectivas funções.

Dito isto, ando pensando na sugestão que alguém mencionou na última aula de que talvez haja outra maneira de interpretar o que Walton pretende dizer: que ele não está a negar que haja criação material dessas coisas ao longo de sete dias, mas, sim, que a narrativa só se concentra na criação funcional, sendo este o enfoque exclusivo do capítulo. Assim, poderíamos pensar, por exemplo, de um autor aristotélico de Gênesis 1 que acredita, sim, tanto na causação eficiente quanto na causação final, e poderíamos imaginar que tal autor aristotélico escreve um relato como Gênesis 1 pensando apenas na causação final — concentrando-se apenas nas causas finais ou funções que Deus estabeleceu; porém, ele não pretende negar que a criação material também esteja acontecendo. Ele apenas a está ignorando na narrativa. O problema com tal interpretação, na minha opinião, é, primeiramente, que contradiria o que Walton diz sobre o que uma testemunha ocular teria observado durante esses sete dias relativamente recentes.[2] Ele diz que os dinossauros estavam presentes, os hominídeos estavam presentes, o sol brilhava e tudo teria aparecido do jeito que acontece agora, mas Deus não teria ainda ocupado a sua residência no templo cósmico, nem tampouco se teria ainda declarado que o homem é à imagem de Deus. Assim, não penso que seja esta a visão de Walton.[3]

Ainda assim, poderíamos imaginar uma visão assim. Poderíamos dizer: “E se for um relato que está apenas concentrado nas funções das coisas?”. Não se pretende, assim, negar a criação material dessas coisas durante esse tempo, mas ela está simplesmente posta de lado.[4] Penso que os comentários que já fiz ainda seriam aplicáveis, a saber: não é disto que tratam as histórias antigas da criação. As histórias antigas da criação tratam da criação material das coisas. Eles começam com este estado indiferenciado, como as águas primordiais e, então, descrevem como as coisas vieram a ser, como elas vieram à existência. Em Gênesis 1, tem-se o surgimento da terra seca, das criaturas marinhas e das aves, tem-se a produção da vegetação a partir da terra e, então, a povoação da terra pelos animais. Não se toca na especificação de funções; fala-se do modo como essas coisas vieram à existência. Dizer que o enfoque se dá apenas em funções tornaria literalmente falsa a grande maioria das descrições do que aconteceu durante aquela semana em Gênesis 1.

Ademais, o comentário que fiz semana passada ainda se sustentaria: bara não indica a criação funcional. Conforme vimos, quando se atenta para os cinquenta e tantos casos de bara no Antigo Testamento, eles falam de causação eficiente: de Deus a produzir a existência das coisas. Sejam elas coisas materiais ou imateriais (como um coração puro ou desastre), não obstante, é dito que Deus se constitui a causa eficiente.

Parece-me que os indícios sustentam que esse relato, embora fale de funções, é, ainda assim, um relato do modo em que essas coisas vieram a ser. Ou seja, Deus é a causa eficiente, e não simplesmente aquele que especifica as causas finais dessas coisas.

Mesmo que concordemos com Walton que a criação, propriamente dita, começa apenas no versículo 2, não penso que haja nada no texto a sugerir que se trata tão-somente de criação funcional, que as coisas não estão vindo à existência. Porém, será que Walton está certo em pensar que o versículo 1 é apenas um título sumular do capítulo, e não um ato inicial de criação? Não penso que ele esteja correto neste quesito. No caso, eu simplesmente o remeteria às lições que tivemos sobre a criação a partir do nada um pouco antes nesta seção.[5] Walton, pelo menos neste livro, não interage com os argumentos que partilhamos de Claus Westermann,[6] que mostram ser o versículo 1 não apenas oração subordinada, mas declaração de criação a partir do nada.. Se Westermann estiver correto, penso que Gênesis 1.1 dá início, sim, ao relato da criação, com um ato inicial de Deus de trazer à existência o universo. Então, toda a interpretação da criação funcional entra em colapso, por depender do pensamento de que o versículo 1 não constitui o ato inicial de criação.

Pergunta: Seria possível que Walton esteja discutindo a prioridade: se é a função que subjaz à criação material ou se é a criação material que rege a função? É essa a prioridade?

Resposta: Tenho certeza de que ele diria serem as funções a prioridade; que essas coisas são criadas tendo em vista esse fim. Não penso que precisaríamos discordar disso. Porém, como digo, só para me repetir, parece-me que o relato, embora tenha essas funções em mente (as razões pelas quais Deus as criou), trata da ação de Deus como a causa eficiente para trazer à existência essas coisas. Isto subverte a interpretação da criação funcional.

Continuação: Todos sabemos que a Palavra de Deus causou a criação; então, a Palavra de Deus define a função, e esta como que traz à tona o material?

Resposta: Não, não estou dizendo que a função traz à tona essas coisas. Pense mais uma vez na diferença entre uma causa eficiente e uma causa final. A causa final — o fim para o qual algo é criado; o objetivo ou propósito — não traz à existência a coisa. É preciso uma causa eficiente para trazer à existência a coisa. Assim, não pense que as funções ou as causas finais são as responsáveis por trazer essas coisas à existência. No caso, Deus é, claramente, a causa eficiente. É Ele quem traz essas coisas à tona.[7]

Continuação: Então, o senhor está dizendo que, entre o versículo 1 e 2, Deus falou e a água veio a existir, mas isto não foi registrado?

Resposta: Sim.

Continuação: Certo. Poderia ser que o versículo 1 estabelece um limite no entendimento humano, uma vez que está escrito para seres humanos? No princípio, Deus criou o seu propósito último (os humanos) e, então, é como se ele colocasse um limite: o que ocorrera antes do primeiro dia, não é para sabermos.

Resposta: Bem, eu o remeto mais uma vez às lições anteriores nas quais falei a este respeito. Defendi que a expressão “os céus e a terra”, em hebraico, é expressão para a totalidade de tudo. Significa o universo. Tem-se este começo absoluto em que Deus cria — bara —, ele traz à existência o universo. Assim, parece-me que o versículo 1 deve ser entendido, de modo mais plausível, como ato inicial de criação que representa um começo absoluto. Não havia nada antes dele.

Pergunta: Só um breve comentário a partir de um trabalho que escrevi sobre Gênesis 1.1: a expressão “céu e terra”, quando é usada, ao menos, no Pentateuco, tem um referente único. Não são dois referentes separados. “Céu e terra” é um pacote único.

Resposta: Correto. Sim, não há nenhuma palavra em hebraico para o universo. Por isso, seria uma expressão idiomática que englobaria o todo.

Permitam-me passar para o próximo argumento de Walton a favor da sua perspectiva: os dias 1-3 estabelecem funções. Ele defende que os dias 1-3 servem para estabelecer a base para a medição do tempo, o clima e o alimento. Não penso que precisemos contestar que as coisas são criadas para esses propósitos. Porém, obviamente isto não implica que a criação material da terra seca, do firmamento e da vegetação não seja afirmada também. Walton tem bastante dificuldade com o firmamento que Deus criou. Ele pensa que os israelitas antigo criam que, literalmente, existia um domo sólido no céu — o firmamento — que sustentava as águas acima da terra. Por isso, ele diz que, se tomarmos Gênesis 1 como relato da criação material, subentende-se a existência de algo “que estamos inclinados a descartar como se não fizesse parte do cosmo material conforme o entendemos”.[8] Em outras palavras, não há nenhum firmamento. Ele diz que “fugimos ao problema” ao interpretar o texto de modo puramente funcional.[9] Não quer bem dizer que Deus criou o firmamento no sentido de trazê-lo à existência.[10] No caso, penso que Walton permitiu muito claramente que a ciência moderna se intrometesse na sua hermenêutica. A questão não é se o firmamento fazia parte ou não do cosmo material, conforme os israelitas antigos o entendiam. Tentar justificar a interpretação funcional ao apelar para a inexistência do firmamento na ciência moderna é exemplo de concordismo, que, vocês vão se lembrar, é permitir que a ciência moderna adentre e guie a sua exegese. É uma visão que o próprio Walton rejeita.[11] Acho tremendamente irônico que Walton, após atacar o concordismo em seção anterior no livro, torne-se ele próprio culpado da mesmíssima falácia hermenêutica, ao dizer que, porque o firmamento não existe, de acordo com a ciência moderna, devemos pensar que esta narrativa não trata da criação material, mas da criação funcional. Mais uma vez, isto não procede, pois os israelitas antigos, se criam que o firmamento era parte do universo, não teriam tido nenhum problema em narrar um relato da criação dele.

Permitam-me passar para o próximo ponto: os dias 4-6 estabelecem os funcionários, ou seja, os agentes que executam tais funções.[12] Os dias 1-3 estabelecem as funções e, então, os dias 4-6 estabelecem os funcionários. Observem que a visão de Walton difere da visão da estrutura literária de Blocher.[13] Na visão de Blocher, os dias 4-6 são a criação dos habitantes dos domínios criados nos dias 1-3. Porém, na visão de Walton, os dias 1-3 estabelecem as funções e, então, os dias 4-6 são o estabelecimento dos funcionários que executarão tais funções. Penso que se trate de sugestão interessante que, na minha opinião, é mais plausível do que a visão de Blocher. Em especial, o sol e a lua parecem, sim, ser estabelecidos como funcionários para a medição do tempo. Penso que é aí que a interpretação de Walton da criação funcional se faz mais persuasiva — é com o estabelecimento do sol e da luz para executarem as funções de medição de tempo (marcar os dias, anos, estações etc.). Mas, obviamente, isto nada faz para excluir a criação material das entidades nos dias 4-6, bem como o estabelecimento destas entidades como funcionários. Assim, simplesmente dizer que se estabelecem funcionários não chega nem perto de mostrar que a criação material deles não esteja envolvida nesses dias.

Permitam-me mais um ponto. É a afirmação de Walton de que a narrativa envolve o descanso divino num templo: o universo é o templo cósmico de Deus, aonde ele vem a residir no sétimo dia. Walton defende que, no antigo Oriente Próximo, deuses residiam em templos. É lá que pensavam morarem os deuses: nos templos. Assim, ele pensa que o descanso de Deus no sétimo dia indica que Deus vem a residir no cosmo como seu templo cósmico. Os sete dias que levam a isto são reflexo dos sete dias de dedicação que precederam a inauguração do templo de Salomão. Como o templo de Salomão teve um período de sete dias de dedicação, assim também temos esses sete dias de especificação de funções e de funcionários antes de Deus vir residir no seu templo. Penso que o problema com esta sugestão é que, simplesmente, não há nenhum indício no texto de que o autor pense no mundo como o templo de Deus ou no repouso de Deus no sétimo dia como a sua vinda para residir no templo. A interpretação de Walton pressupõe que Deus não fez nenhum trabalho criativo nos dias 2-6 e, portanto, ele não precisa repousar no sétimo dia! Ele não criou nada; por isso, não há nenhuma necessidade de um descanso sabático. Portanto, ele reinterpreta o descanso de Deus como se fosse a mera residência de Deus no seu templo. Reinterpretar o descanso de Deus da criação como a residência de Deus no seu templo pressupõe a verdade da interpretação da criação funcional. Assim, não pode servir de prova para a interpretação da criação funcional. Seria forçado. Esta visão pressupõe a verdade da interpretação da criação funcional, e não vimos absolutamente nenhuma prova boa para isto. Se Deus estiver envolvido na obra criativa durante os dias 1-6, não haveria nenhuma razão para a sua cessação da obra criadora e o descanso no sétimo dia. Não há simplesmente nada acerca de um templo ali. Em relação ao número de sete dias, penso que se associa de forma mais plausível com outras histórias antigas da criação “em sete dias”, pois o motivo de sete dias é comum em outras histórias antigas da criação, em vez de tentar associá-lo com o templo de Salomão. Trata-se de analogia ou paralelo muito mais distante do que outras histórias de criação ao longo de sete dias.[14] Assim, não acho tampouco que seja uma interpretação plausível essa afirmação sobre Gênesis 1 como a história de Deus vindo a residir no universo como seu templo cósmico.[15]

 


[1] John H. Walton, The Lost World of Genesis One, (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2009).

[2] “A fase material, entretanto, poderia estar em desenvolvimento por longas eras e poderia, nesse caso, corresponder com as descrições das eras pré-históricas, conforme a ciência a revelou a nós. Não haveria nenhum motivo para pensar que o sol não estava a brilhar, as plantas não estavam a crescer ou os animais não estavam presentes” (Walton, The Lost World of Genesis One, p. 98).

[3] Na seção de perguntas frequentes do seu livro, Walton escreve: “P: Por que Gênesis não pode ser tanto funcional quanto material? R: Teoricamente, poderia ser os dois”. No entanto, prossegue ele: “Pressupor, porém, que devemos, simplesmente, ter um relato material, se quisermos dizer algo significativo, é imperialismo cultural... Segundo o meu juízo, há pouco no texto que o eleva como relato material e muito que depõe contra ele”. Assim, ele basicamente diz que Gênesis 1 poderia, teoricamente, ser as duas coisas, mas não o interpreta assim. (Walton, The Lost World of Genesis One, p. 171.)

[4] 5:09

[5] Ver “Doctrine of Creation (Part 1)” [Doutrina da Criação (Parte 1)].

[6] Ver Claus Westermann, Genesis 1-11, trad. John Scullion (Minneapolis: Augsburg, 1984).

[7] 10:03

[8] Ibid., p. 60.

[9] Walton diz: “Talvez encontremos algum escape do problema, contudo, ao continuarmos a pensar na criação como se ela dissesse respeito, em última instância, ao funcional, e não ao material” (Walton, The Lost World of Genesis One, p. 57).

[10] Walton diz: “Se não se trata de um relato de origens materiais, Gênesis 1 não está afirmando nada sobre o mundo material. Não importa se as águas cósmicas eram mesmo retidas por um domo sólido” (Walton, The Lost World of Genesis One, p. 57).

[11] Para as razões pelas quais Walton rejeita o concordismo, ver The Lost World of Genesis One, pp. 16-18.

[12] 15:09

[13] Isto foi discutido em “Doctrine of Creation (Part 32)” [Doutrina da criação (Parte 32)]. Ver também Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis (InterVarsity Press, 1984).

[14] Dr. Craig corrige o ponto precedente na próxima aula: sete dias não são comuns em histórias antigas de criação. São, porém, motivo muito comum por todo o mundo antigo, sendo usado de diversas maneiras.

[15] Duração total: 20:17 (Copyright © 2013 William Lane Craig)