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Deus, tempo e eternidade

Summary

Explores whether God is timeless or everlasting throughout infinite time. Conferência de Oxbridge, 23 de julho de 2002. Originalmente publicado como: “God, Time, and Eternity”. Texto disponível na íntegra em http://www.reasonablefaith.org/god-time-and-eternity.

É um grande prazer estar aqui, e fiquei particularmente feliz que Walter tenha mencionado a Sociedade Filosófica Evangélica [Evangelical Philosophical Society]. Deus tem realizado uma obra notável no campo da filosofia no âmbito anglo-americano, e o crescimento da Sociedade Filosófica Evangélica é apenas uma evidência disso. Trouxe comigo alguns exemplares do nosso periódico Philosophia Christi, para quem quiser conhecê-lo mais de perto. Recebemos tanto a membros associados como a membros efetivos na Sociedade. Os dois tipos de membresia incluem uma assinatura do periódico; portanto, convido-os para depois darem uma olhada nele, se tiverem interesse.

No programa, o tópico sob o qual estou inscrito para falar hoje é a eliminação do tempo absoluto pela teoria especial da relatividade. Todavia, durante o intervalo, mudei de ideia acerca do tópico e, ao ouvir Sir John ontem, fiquei contente por tê-lo feito, pois considero que o Professor Polkinghorne solapou com grande eficácia a ideia de que a teoria especial da relatividade eliminou o conceito de Newton de tempo absoluto. Segundo afirmou Sir John, a noção de tempo, ou de temporalidade, é no fundo uma noção metacientífica ou metafísica e, portanto, não pode ser, em última análise, constatada pela ciência. Na verdade, seria muito ousado da minha parte afirmar que a teoria da relatividade não nos ensina realmente nada sobre a natureza do tempo, mas tudo sobre as nossas medidas físicas do tempo. Assim, tenho a satisfação de mudar o meu tópico, abandonando especificamente a teoria da relatividade para tratar da discussão mais geral sobre o tópico “Deus, tempo e eternidade”.

Deus, declara o profeta Isaías, é “o Alto, o Sublime, que habita a eternidade” (Is 57.15). Por ser profeta, e não filósofo, Isaías não parou para refletir acerca da natureza da eternidade divina. Ser eterno significa, no mínimo, não ter começo nem fim. Afirmar que Deus é eterno significa minimamente que ele jamais veio à existência e nunca deixará de existir. Existir eternamente é existir permanentemente.

Dito isso, devemos notar que há pelo menos duas maneiras como algo pode existir eternamente. Uma maneira seria existir onitemporalmente, quer dizer, em cada instante do tempo. E, se o tempo for ampliado infinitamente tanto para o passado quanto para o futuro, então, o ser que existir onitemporalmente existiria sem princípio nem fim. Ele jamais poderia vir a existir nem deixar de existir; existiria permanentemente. E, tipicamente, a Escritura refere-se a Deus nos termos da sua duração eterna, onitemporal. Por exemplo, Salmo 90.2 diz: “Senhor, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração. Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”. A imagem aqui, na mente do salmista, é a de um Deus onitemporal que permanece todo o tempo, da eternidade passada à eternidade futura.

Por outro lado, um ser poderia existir eternamente, sem começo nem fim, se tal ser fosse absolutamente atemporal; quer dizer, um ser que transcendesse completamente o tempo, desprovido de localização temporal e, portanto, sem extensão temporal, mas existindo exclusivamente fora do tempo, não teria princípio nem fim. Tal ser existiria, por assim dizer, num “presente” único e atemporal. Embora a Escritura não se refira a Deus explicitamente nos termos dessa eternidade atemporal, há, entretanto, algumas passagens bíblicas que sugerem a transcendência extratemporal de Deus. Por exemplo, Gênesis 1.1 diz: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”. E o texto segue descrevendo a sua criação do primeiro dia, do segundo, do terceiro, do quarto e assim por diante. Portanto, o princípio vislumbrado pelo autor de Gênesis talvez não seja simplesmente o princípio material do universo, o cosmos, mas um princípio em si mesmo. Ora, uma vez que Deus não passou a existir, isso indicaria que Deus, de algum modo difícil de expressar, existia além do princípio do tempo, além do começo do tempo no universo descrito no versículo 1.

Da mesma forma, há no Novo Testamento uma série de passagens interessantes que falam da existência de Deus antes do tempo. Por exemplo, na doxologia que finaliza o livro de Judas, versículo 25, lemos: “ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos”. Nessa passagem, em quase inevitável façon de parler, ou modo de falar, o autor refere-se a Deus como existente antes de todo o tempo; em certo sentido, Deus existe fora do tempo. Se o tempo for finito e tiver um princípio, então, Deus, sendo eterno, tem de existir além do tempo de algum modo.

Assim, os dados bíblicos não são claros quanto à natureza da eternidade divina. Algumas passagens dão a entender que Deus seria onitemporal e outras, que ele seria absolutamente atemporal, e, portanto, é impossível decidir essa questão biblicamente. Temos de voltar nossa atenção para a reflexão racional, teológica e filosófica para julgarmos a natureza da eternidade divina.

Agora, neste ponto, alguém poderia perguntar: “Por que isso? Por que não nos contentamos com a afirmação bíblica de que Deus não tem princípio nem fim e existe permanentemente, parando aí sem tentar decidir entre essas duas teorias concorrentes quanto à eternidade divina?”. Gostaria de sugerir duas razões por que considero importante mergulharmos nesse tópico mais profundamente e não nos contentar apenas com a interpretação minimalista.

A primeira razão é de natureza apologética. Ou seja, o naturalismo moderno costuma atacar o teísmo, ou a crença em Deus, não apenas com base na falta de evidências para a existência de Deus, mas porque, como às vezes eles alegam no papel de naturalistas, o próprio conceito de Deus é incoerente, e, portanto, não pode existir nenhum ser cabível nesse conceito. Um bom exemplo disso seria o premiado físico P. C. W. Davies em seu livro God and the New Physics, [1] um desenfreado campeão de vendas quando foi publicado pela primeira vez, lançando instantaneamente Davies à fama como um dos melhores popularizadores da ciência em nossos dias. Davies afirma que Deus não pode ser nem temporal nem atemporal. Ele diz que Deus não pode ser atemporal porque a Bíblia o descreve como uma pessoa, mas as pessoas são por natureza inerentemente temporais. Elas agem e reagem, são seres conscientes que deliberam, planejam e se recordam. Elas pensam a respeito das coisas. Elas pretendem fazer coisas e levam adiante seus projetos. Todas essas coisas são atividades temporais, e, portanto, se Deus for pessoal como a Bíblia afirma, ele não pode ser atemporal.

Por outro lado, afirma Davies, Deus também não pode ser temporal. Porque, se ele existir no tempo, estará sujeito às leis da teoria da relatividade que governam espaço e tempo e, por essa razão, não poderá ser onipotente, pois está debaixo das leis da natureza. Desse modo, o teísta é confrontado por um dilema. O teísta crê que Deus é pessoal e onipotente, mas, se for as duas coisas, não poderá ser atemporal nem temporal; logo, um Deus assim não pode existir. O Deus da Bíblia não existe.

Ora, para responder a pessoas como o Professor Davies, será simplesmente fútil citar versículos da Bíblia, pois seu argumento é que o conceito bíblico de Deus é incoerente. Por isso, o teólogo cristão precisa munir-se de algum modelo coerente ou teoria da eternidade divina que escape do dilema de Davies.

A segunda razão por que considero que não podemos permanecer calados é doutrinária. Quer dizer, por bem ou mal, já existe um sem-número de declarações descuidadas sobre a doutrina da eternidade divina, e, por isso, não há sentido em ficar calados agora. O gato já escapou do saco! Nos púlpitos, os pregadores fazem constantemente declarações como “estaremos com o Senhor na eternidade”, e assim por diante. Muitas vezes penso que essas afirmações são teologicamente inexatas. Uma boa ilustração desse problema é o livro Disappointment with God, [2] do célebre autor cristão Phillip Yancey. Bem, quero dizer desde já que gostei de ler Disappointment with God e achei-o significativo e comovente. Apesar disso, o ponto principal da solução de Yancey para o problema da decepção com Deus — ou seja, a decepção causada pelo sofrimento e o mal gratuitos que Deus permite em nossas vidas —, o aspecto central para a sua solução é a doutrina de Yancey sobre a eternidade divina. Mas, quando se lê a sua explicação para a eternidade, descobre-se que ela contradiz a si mesma. Na verdade, ele adota duas analogias para a eternidade divina que defendem visões mutuamente excludentes. Uma sustenta a atemporalidade e a outra, a onitemporalidade divina. Assim, essa incoerência lógica finca-se no âmago do seu livro e deixa sem resposta o problema da decepção com Deus.

Portanto, como cristãos reflexivos, penso que não podemos simplesmente nos dar ao capricho de continuar calados quanto à natureza da eternidade divina. Precisamos nos envolver em projeto que selecione alguma teoria ou modelo de eternidade divina que seja biblicamente fiel e logicamente coerente.

Então, depois do que foi dito, quero destacar que não fazemos isso dogmaticamente, pois as Escrituras estão abertas a esse respeito. A teoria que desenvolvermos será sustentada experimentalmente e apresentada como um modelo sugerido ao exame e à avaliação da comunidade cristã. E, na verdade, quando se contempla o cenário contemporâneo, descobre-se que os acadêmicos cristãos divergem de fato no modo como entendem a eternidade divina. Tradicionalmente, a eternidade de Deus tem sido compreendida nos termos da atemporalidade. Deus simplesmente transcende o tempo; ele não existe no tempo. Ele não existe agora, mas existe simplesmente de modo atemporal. Entre os maiores proponentes dessa perspectiva contam-se Santo Agostinho, Boécio, Anselmo e Tomás de Aquino. No cenário contemporâneo, filósofos como Eleonore Stump e Norman Kretzmann, Paul Helm, Brian Leftow e John Yates defendem todos a teoria da atemporalidade divina.

Por outro lado, há também um número considerável de pensadores que defendem a temporalidade de Deus. Entre os autores clássicos, podemos citar João Duns Escoto ou Guilherme de Ockham. Isaac Newton, o grande pai da física moderna, no seu comentário a Principia, impresso que consta no material recebido por vocês para esta conferência, defendia a temporalidade divina. No cenário contemporâneo, pensadores como Alan Padgett, Richard Swinburne, Stephen Davis e Nicholas Wolterstorff têm todos eles optado por modelos da temporalidade divina.

Obviamente as duas visões não podem estar certas, pois uma contradiz a outra. Dizer que Deus é atemporal é simplesmente afirmar que ele não é temporal. Portanto, uma é a negação, ou a negativa, da outra. Se Deus for atemporal, ele não será temporal; se for temporal, então, por definição, não será atemporal. É comum os leigos dizerem: “Bem, por que Deus não pode ser as duas coisas? Por que não pode ser tanto temporal quanto atemporal?”. Bem, o problema com essa resposta é que, a menos que se apresente um modelo no qual essa alegação faça sentido, ela, de imediato, contradiz a si mesma e, logo, não pode ser verdadeira. É como afirmar que algo tanto é preto como não-preto. Isso é logicamente impossível, a não ser que se forneça algum modelo que supra uma diferença que torne possível o argumento. Por exemplo, algo pode ser preto de um lado e não-preto do outro. Ou ser preto num momento, mas ser não-preto mais tarde, noutro momento. Portanto, caso se pretenda sustentar que Deus é tanto temporal quanto atemporal, é indispensável fornecer algum modelo que dê sentido a isso. Nesse caso, obviamente, nenhuma das duas alternativas serviria, pois uma parte de Deus não pode ser temporal e a outra atemporal, porque, como ser imaterial, Deus não tem partes separáveis. Ele não se compõe de partes. Nem é possível afirmar coerentemente que Deus é atemporal num instante e temporal noutro, porque é claramente autocontraditório afirmar que ele é atemporal em determinado tempo. Essa é uma contradição de termos. Logo, as duas visões acerca da eternidade de Deus não podem estar certas. Temos de decidir se Deus é atemporal ou temporal.

Portanto, o que eu gostaria de fazer hoje é examinar primeiro os argumentos favoráveis e contrários à atemporalidade divina e depois analisar os argumentos favoráveis e contrários à temporalidade divina.

Ora, descobri que a maioria dos argumentos favoráveis à atemporalidade cuja literatura examinei é claramente falaciosa ou, na melhor das hipóteses, inconclusiva. Mas há um argumento favorável à atemporalidade que considero realmente muito persuasivo, o qual se baseia na incompletude da vida temporal. A vida temporal é radicalmente incompleta visto que ainda não temos nosso futuro e já não temos mais nosso passado. Nosso passado está continuamente indo embora, e estamos sempre buscando o futuro que não temos. Na existência, tudo o que temos de permanente é o momento presente, que está sempre fugindo, sempre se desvanecendo, sempre passando. É assim mesmo a única coisa que temos de permanente na existência, como seres temporais. A nossa vida é, assim, radicalmente efêmera e tem permanência demasiadamente tênue na existência. Mas isso parece incompatível com a vida de um ser perfeitíssimo, como é Deus.

Anos atrás, fui convencido inesperada e poderosamente da efemeridade da vida temporal quando lia o livro Little House in the Big Woods, [3] de Laura Ingalls, para nossos filhos pequenos, Charity e John. Ora, não dava para esperar que esse livro fosse uma fonte de percepção filosófica, mas, à medida que chegava aos parágrafos finais que encerravam o livro, fiquei absolutamente atordoado com o que li. (Ele não causou tanto impacto em meus filhos, mas atingiu-me como um martelo!). Eis o que ela escreveu:

As longas noites de inverno, lareira e música chegaram de novo [...] A voz forte e doce do Paizinho cantava com suavidade:

“Poderíamos esquecer os velhos conhecidos,

E jamais trazê-los à memória?

Poderíamos esquecer os velhos conhecidos,

E os dias de outrora?

E os dias de outrora, meu amigo,

E os dias de outrora,

Poderíamos esquecer os velhos conhecidos,

E os dias de outrora?”

Quando o violino parou de cantar, Laura chamou de mansinho, “Que são dias de outrora, Paizinho?”

“São os dias de muito tempo atrás, Laura”, disse o Paizinho. “Vá, agora durma”.

Mas Laura ficou acordada um pouco mais, ouvindo o violino do Paizinho tocando suavemente e o som solitário do vento nas árvores do Grande Bosque. Ela olhou o Paizinho sentado no banco junto à lareira, com a luz das chamas refletindo no cabelo e na barba castanhos e reluzindo no violino marrom com tons de mel. Olhou a Mãezinha, tricotando e balançando de leve a cadeira.

Ela disse a si mesma: “Isto é o agora”.

Estava feliz que a casinha aconchegante, seu Paizinho, sua Mãezinha, a lareira e a música eram o agora. Não poderiam ser esquecidos, pensou ela, porque o agora é agora. Não pode nunca ser muito tempo atrás. [4]

O que torna essa passagem tão comovedora, evidentemente, é que agora o momento no qual o pensamento de Laura Ingalls era tão real, era “o agora” para ela, é muito tempo atrás. Passou, foi-se para sempre! A Mãezinha e o Paizinho passaram. A fronteira americana passou. A própria Laura Ingalls Wilder passou. Os dias que ela chamou de “dias felizes e dourados” foram-se, passaram-se para sempre, jamais serão recuperados. O tempo tem um modo selvagem de consumir a existência, convertendo em tênue e fugaz nossa reivindicação de existir. E, certamente, isso é incompatível com a vida de um ser perfeitíssimo, como Deus. Um ser perfeito deve ter a vida toda de uma vez, completa, vida que jamais vai embora nem ainda está por vir. Noutras palavras, a vida de um ser perfeito não pode ter senão uma existência atemporal na qual ele existe num eterno agora que nunca passa.

Esse argumento favorável à atemporalidade divina atinge-me como extremamente plausível e poderoso. Mas ainda não penso que seja totalmente demonstrável, pois considero que a transitoriedade do tempo é reduzida para um ser onisciente. Em parte, a razão para que os dentes do tempo nos pareçam selvagens é porque não temos na mente a lembrança total do passado nem a antecipação do futuro. Mas, para um ser onisciente, que conhece completamente o passado, o presente e o futuro como se fossem exatamente agora, a natureza transitória da passagem do tempo não é motivo para tanta melancolia. Deus tem a capacidade de lembrar-se dos eventos passados e de revivê-los com tanta vividez e realidade como se fossem presentes. Assim também, ele conhece antecipadamente os eventos que ocorrerão no futuro com o mesmo tipo de realidade com a qual conhece os eventos presentes. Portanto, para um ser que tem total lembrança do passado e total conhecimento antecipado do futuro, a passagem do tempo não é um defeito tão severo e prejudicial quanto é para nós, criaturas finitas e temporais. Todavia, na ausência de argumentos contrários favoráveis à temporalidade divina, considero realmente que esse argumento oferece fundamentos plausíveis para afirmar que Deus é atemporal.

Então, que objeções podem surgir contra a atemporalidade divina? Bem, uma das objeções mais comuns que é levantada na literatura é que atemporalidade e personalidade são incompatíveis. As pessoas se envolvem em atividades como antecipação do futuro e lembrança do passado; na deliberação e no pensamento discursivo; em provar sentimentos conscientemente. Todas essas atividades são temporais. Por isso, afirma-se que é incoerente a ideia de uma pessoa atemporal.

Seria esse um bom argumento? Não estou convencido que seja uma boa objeção. Vamos fazer um experimento mental: imagine que Deus se absteve de criar o mundo. Imagine Deus existindo sem a criação. Podemos imaginar um mundo possível no qual existe exclusivamente Deus, solitário, sozinho, sem nenhum universo nem ordem criada, sejam quais forem. Num mundo assim, Deus seria temporal? Bem, se ele tivesse um fluxo de consciência seria claramente temporal, pois haveria uma série temporal de eventos mentais ocorrendo na sua mente. Mas vamos supor que Deus existe imutavelmente nesse estado, que ele tem um estado de consciência único. Nesse caso, ele seria temporal? Bem, considero que isso está longe de ser evidente. Pelo contrário, na visão relacional do tempo, na qual o tempo é uma simultaneidade de eventos, esse estado imutável seria um estado de atemporalidade. Portanto, Deus existindo num tal estado seria, segundo penso, plausivelmente atemporal.

Alguém poderia dizer: “Um ser pessoal não pode existir em condição atemporal”. Bem, por que não? Quais são as condições suficientes para a personalidade? Bem, parece-me que a condição necessária e suficiente para a personalidade seja a autoconsciência. Conhecer a si mesmo como um eu, ter percepção de si mesmo e autoconsciência e, portanto, intencionalidade e liberdade de vontade são suficientes para a personalidade. Mas autoconsciência não é uma noção inerentemente temporal. Deus pode simplesmente conhecer toda a verdade numa única intuição da verdade sem ter de aprendê-la nem ter de chegar à sua conclusão por meio de um processo. Uma vez que a sua consciência não muda, não há razão para atribuir temporalidade a Deus. Assim, nada existe a respeito de uma vida autoconsciente que implique temporalidade, desde que considerada como autoconsciência imutável.

Quanto às outras propriedades que mencionamos, eu diria que, apesar de serem propriedades comuns às pessoas humanas (as quais, afinal de contas, são temporais), não são propriedades essenciais da personalidade. Por exemplo, considere-se a deliberação e o pensamento discursivo; isso é ausente de Deus, não tanto em razão da sua atemporalidade, mas por causa da sua onisciência. Um ser onisciente não precisa deliberar, pois já conhece as conclusões de tudo quanto ele possa pensar a respeito. E, portanto, a atividade pensante de Deus não pode ser discursiva, já que ele é um ser onisciente. Ele simplesmente conhece a verdade toda numa única intuição num único instante. Da mesma maneira, memória e antecipação não são essenciais para uma pessoa atemporal, pois não tem nada para esquecer nem para antecipar, uma vez que ela simplesmente existe atemporalmente. Não há passado nem futuro. Assim, essas qualidades, conquanto comuns às pessoas humanas, não são essenciais à personalidade, e, portanto, parece-me que não há incoerência em referir-se a Deus como um ser pessoal atemporal.

Na verdade, penso que a doutrina da Trindade pode ajudar-nos a sair dessa, porque ela fornece um modelo funcional para a existência atemporal de Deus. Quase sempre se afirma que as pessoas têm de existir em relacionamentos interpessoais, e, assim, Deus tem de ser temporal. Assume-se que as pessoas com as quais Deus se relacionaria deveriam ser pessoas humanas. Mas, segundo a doutrina cristã da Trindade, isso não é verdade. Deus, em seu próprio ser, é tripessoal, e, na unidade de seu próprio ser, ele pode gozar da plenitude de relacionamentos interpessoais no seio da própria Divindade, de modo atemporal e imutável. Tudo que o Pai sabe, o Filho e o Espírito sabem; o que o Pai ama, o Espírito e o Filho amam; o que o Filho quer, o Pai e o Espírito querem. Essa é a doutrina da pericorese, segundo a qual as três pessoas da Divindade são completamente transparentes uma para a outra e se interpenetram mutuamente. E da mesma maneira que às vezes nos referimos a dois apaixonados — sentados frente a frente, olhos nos olhos, sem dizerem palavra — como “perdidos num instante atemporal”, assim, de maneira literal, Deus, nos relacionamentos interpessoais da Trindade, pode existir num instante atemporal de amor, plenitude e bem-aventurança absolutos na autossuficiência do seu próprio ser. Portanto, não estou absolutamente convencido de que atemporalidade e personalidade sejam incompatíveis; parece-me bastante possível e plausível que Deus, enquanto ser pessoal, existe atemporalmente.

Em síntese, então, vimos um bom argumento favorável à atemporalidade divina — não decisivo, mas acho-o plausível — e, até aqui, sem uma boa razão para rejeitar a atemporalidade divina.

E quanto à temporalidade divina? Permitam-me partilhar com vocês dois argumentos favoráveis à temporalidade divina. O primeiro é o argumento baseado no relacionamento causal de Deus com o mundo. Para entendê-lo, é preciso antes compreender a diferença entre mudança intrínseca e extrínseca. Algo muda intrinsecamente se uma de suas propriedades, isolada do relacionamento com qualquer outra coisa, mudar. Por exemplo, uma maçã durante a maturação muda de verde para vermelho. Essa é uma mudança intrínseca à maçã. Algo muda extrinsecamente se mudar nas suas relações com algo mais. Por exemplo, eu já fui mais alto do que meu filho John, agora sou mais baixo do que ele, não por causa de alguma mudança intrínseca em mim, mas em razão de uma mudança intrínseca nele. Ele ficou mais alto. Eu fiquei mais baixo do que John sofrendo uma mudança extrínseca. Com relação à minha altura, permaneci intrinsecamente imutável, mas sofri uma mudança extrínseca com relação a John, já que agora, devido ao crescimento dele, eu estou numa nova relação, qual seja, menor do que, uma vez que antes eu tinha uma relação diferente com meu filho John, maior do que. Assim, pois, sofri uma mudança relacional ou extrínseca.

Ora, para que algo seja temporal, não precisa estar mudando intrinsecamente. Tudo o que precisa é sofrer uma mudança extrínseca nas suas relações. Por exemplo, vamos imaginar uma rocha existindo no espaço exterior, congelada em zero absoluto. (Sei que isso é fisicamente impossível, mas é apenas um experimento mental). Imaginemos que essa rocha está congelada em zero absoluto; portanto, é absolutamente imutável intrinsecamente. Tal rocha seria atemporal? Bem, é claro que penso que não, pois ela poderia se modificar extrinsecamente nas suas relações com as coisas em torno de si. Um meteoro passa sibilando por ela — pouco depois, passa outro — e, mais tarde, mais um. Ainda que a rocha seja intrinsecamente imutável, ela conserva óbvias relações temporais com esses eventos sucessivos. Portanto, a mudança meramente extrínseca é suficiente para a existência temporal.

Agora, Deus, como criador do universo, está causalmente relacionado com o mundo. Ele traz o mundo à existência. E a questão é: seria Deus temporal, em virtude de seus relacionamentos mutáveis com o universo temporal? Façamos um experimento mental.

Imaginemos uma vez mais Deus existindo sozinho, sem o mundo, sem a criação. Em tal estado, Deus ou é temporal ou é atemporal. Se ele for temporal, então o caso está resolvido. Deus existe no tempo. Então, vamos supor que ele seja atemporal. Além disso, vamos supor agora que Deus decide criar o mundo e assim ele traz o universo à existência. Agora, ao fazer isso, Deus continua atemporal ou, ao contrário, torna-se temporal em virtude do seu novo relacionamento com o mundo mutável. Se Deus passa a ser temporal, então ele claramente existe no tempo. Então, Deus poderia continuar atemporal ao criar o universo? Bem, acho que não. Por quê? Porque, ao criar o universo, Deus sofre no mínimo uma mudança extrínseca — uma mudança relacional. No instante da criação, ele entra numa nova relação, na qual ele antes não estava porque não havia “antes”. É o primeiro instante do tempo. E, no primeiro instante do tempo, Deus entra na nova relação de sustentar o universo ou, pelo menos, de coexistir com o universo, relação na qual ele não estava antes. Assim, em virtude dessa mudança relacional extrínseca, Deus seria trazido para dentro do tempo no momento da criação.

Pensadores como Tomás de Aquino tentaram se esquivar da força desse argumento com a negação de que Deus mantenha qualquer relação real com a ordem criada. Aquino admitia que, se Deus entrasse em novas relações no instante da criação, como a de ser Senhor, então ele seria temporal. Assim, pois, Aquino foi levado a negar que Deus mantenha quaisquer relações reais com o mundo e afirmou que, como criaturas, estamos realmente relacionados com Deus, como seus efeitos, mas Deus não está realmente relacionado conosco como nossa causa ou Criador. Penso que tal doutrina é claramente um expediente do desespero. Deus está causalmente relacionado ao universo e parece impossível, ou incoerente, que poderia haver efeitos reais sem uma causa real. Como poderíamos estar realmente relacionados com Deus como efeitos de uma causa, mas Deus não estar relacionado conosco como causa de um efeito? Além disso, Deus parece estar claramente relacionado conosco, visto que ele nos conhece, ele nos ama e quer a nossa existência. Parece-me, portanto, que a solução de Aquino simplesmente não é plausível. São relações reais, segundo qualquer definição sensível da expressão “relações reais”. Concluo, pois, que temos uma forte razão para entender que, em virtude da sua relação causal com a criação temporal, Deus seja temporal.

O segundo argumento que eu gostaria de partilhar é o argumento baseado no conhecimento de Deus acerca dos fatos temporalmente dinâmicos [tensed facts]. Para entender esse argumento, precisamos perceber exatamente a diferença entre “fatos temporalmente dinâmicos” [tensed facts] e “fatos temporalmente estáticos” [tenseless facts]. Por exemplo, é um fato temporalmente estático que a conferência sobre C. S. Lewis, em Cambridge, começa em 21 de julho de 2002. O fato jamais muda. Foi sempre verdadeiro, será sempre verdadeiro, é uma verdade temporalmente estática que a conferência sobre C. S. Lewis se inicia em 21 de julho de 2002. Mas esse fato temporalmente estático não basta para que eu me disponha a deixar Atlanta, tome um avião em 20 de julho e voe para Cambridge. Por que não? Bem, porque um fato temporalmente estático é sempre verdadeiro. O que preciso saber, além desse fato temporalmente estático, para me dispor a tomar um avião e voar para Cambridge? O que preciso saber é o fato temporalmente dinâmico de que hoje é 20 de julho, ou que amanhã é 21 de julho. Em virtude de saber desse fato temporalmente dinâmico, eu tomo o avião e vou para Cambridge para a conferência. Portanto, fatos temporalmente dinâmicos são fatos sobre o relacionamento de certos eventos com o momento presente. Idiomaticamente, fatos temporalmente dinâmicos podem ser expressos pelos tempos verbais, como passado, presente e futuro; ou por advérbios como “hoje”, “ontem” e “amanhã”; ou por locuções prepositivas como “num período de dois dias” ou “três dias atrás”. Todos esses são meios de expressar fatos temporalmente dinâmicos.

Agora, note-se que, em virtude de conhecer fatos temporalmente dinâmicos, eu devo ter uma posição temporal. Se sei que hoje é 20 de julho, estou posicionado em 20 de julho. Além disso, em razão de conhecer fatos temporalmente dinâmicos, eu estaria constantemente mudando. Eu saberia que hoje é 20 de julho. No dia seguinte, saberia, então, que hoje é 21 de julho e no próximo dia que hoje é 22 de julho. Assim, qualquer ser que conheça fatos temporalmente dinâmicos está sofrendo mudanças e, portanto, é temporal. Como ser onisciente, Deus não pode desconhecer fatos temporalmente dinâmicos. Ele deve conhecer não somente os fatos temporalmente estáticos sobre o universo, mas deve conhecer também os fatos temporalmente dinâmicos sobre o mundo. Caso contrário, Deus seria literalmente ignorante a respeito do que está ocorrendo agora no universo. Ele não teria a mínima ideia do que está acontecendo no universo porque isso é um fato temporalmente dinâmico. Ele seria como o diretor cinematográfico que conhece a película guardada na lata de filme, mas não tem ideia de qual seja o quadro que está sendo projetado agora na tela do cinema do centro da cidade. Da mesma maneira, Deus seria ignorante do que está acontecendo agora no universo. Certamente que isso é incompatível com uma doutrina vigorosa da onisciência divina. Logo, tenho a convicção de que, se Deus é onisciente, ele tem de conhecer os fatos temporalmente dinâmicos e, portanto, tem de existir no tempo.

Considero, portanto, que temos dois bons argumentos favoráveis à temporalidade divina. Que objeções podem ser levantadas contra Deus existir no tempo? Permitam-me, mais uma vez, mencionar duas. A primeira objeção à possibilidade de Deus existir no tempo é que os dois argumentos que acabei de apresentar favoráveis à temporalidade divina pressupõem uma visão dinâmica do tempo. Como já ouvimos no transcurso dessa conferência, os filósofos do tempo diferem com respeito a duas abordagens radicalmente distintas sobre a natureza do tempo. De acordo com a teoria dinâmica do tempo, o vir a existir temporalmente é objetivo e real. O passado não existe mais; o futuro não existe ainda e é pura potencialidade; e as coisas vêm a existir no presente e deixam de existir à medida que passam, de sorte que o processo temporal é dinâmico e real. Passado, presente e futuro são características objetivas da realidade. John Polkinghorne e Bob Russell enunciaram essa visão.

Comparativamente, os teóricos que defendem a visão estática do tempo consideram que todos os momentos no tempo são igualmente reais, seja passado, presente ou futuro. O tempo é como se fosse um contínuo espacial, e os eventos são ordenados nesse contínuo como antes de e depois de. Todavia, a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma ilusão subjetiva da consciência humana. Na realidade, o universo é um bloco quadrimensional que apenas existe. Nunca vem à existência e nunca deixa de existir. É realmente coeterno com Deus, e pode-se dizer que é criado apenas no sentido de depender eternamente de Deus para existir. Tem princípio no mesmo sentido que a fita métrica tem um início, isto é, há um primeiro centímetro. Mas o universo não passa a existir; o bloco quadridimensional de espaço-tempo tão somente existe. De modo semelhante, na teoria estática do tempo não há mesmo fatos temporalmente dinâmicos. O tempo linguístico serve apenas para expressar a perspectiva subjetiva de quem o usa. Não há verdade absoluta acerca do que está acontecendo agora no universo, porque “agora”, bem como “aqui”, serve meramente para apreender a perspectiva subjetiva de alguém. Cada pessoa em cada instante no universo espaço-temporal considera seu tempo como “agora” e outros tempos como “passado” e “futuro”. Mas na realidade objetiva não existe “agora” no mundo. Tudo existe apenas de modo temporalmente estático. Russell Stannard enunciou essa visão.

Caso se adote a visão estática do tempo, negando-se a realidade objetiva da existência temporal e dos fatos temporalmente dinâmicos, os dois argumentos favoráveis à temporalidade divina são cortados pela raiz. O argumento baseado na relação real de Deus com o mundo presumia a realidade objetiva do vir a existir temporalmente, e o argumento baseado no conhecimento de Deus sobre o mundo temporal presumia a realidade objetiva dos fatos temporalmente dinâmicos. Porém, caso a visão estática do tempo esteja certa, nada com o que Deus está relacionado jamais veio a existir nem ocorreu, e todos os fatos temporalmente estáticos existem, de sorte que Deus não sofre mudança extrínseca nem intrínseca. Ele pode ser o Sustentador e Conhecedor imutável e onisciente de todas as coisas e, por esse motivo, existe atemporalmente. Porque, se o tempo existe como parte de um bloco quadrimensional, Deus não sofre mudança na sua relação causal com o mundo. Existindo fora do tempo, ele apenas causa a ocorrência de todas as coisas no bloco quadrimensional nas suas diversas posições de espaço-tempo. Todavia, ele é absolutamente imutável nas suas relações causais com o mundo. Semelhantemente, na visão estática do tempo não existem fatos temporalmente dinâmicos. Fatos temporalmente dinâmicos são uma ilusão subjetiva da consciência humana. No bloco de espaço-tempo não existe realmente “agora”. Não há passado nem futuro. São apenas perspectivas de diferentes pessoas no bloco, mas nenhuma delas é objetiva nem real. Portanto, se você adota a visão estática do tempo, os argumentos que apresentei em favor da temporalidade divina não contam.

Assim, estou convencido de que a teoria da eternidade divina que se adota permanecerá ou cairá dependentemente da decisão que for tomada com relação à teoria dinâmica do tempo versus a teoria estática do tempo. Quem adota a teoria dinâmica do tempo deverá acreditar na temporalidade divina. Para quem adota a teoria estática do tempo, então, a visão mais plausível será a atemporalidade divina.

Agora, na minha palestra desta manhã, não há tempo para aprofundar-me nessa questão. Isso exigiria toda uma palestra, todo um seminário. Mas, se interessar a alguém, abordo os argumentos a favor e contra a teoria estática do tempo em meu livro Time and Eternity [Tempo e eternidade]. E, por insignificante que pareça, julgo que os argumentos favoráveis à teoria dinâmica do tempo são superiores aos argumentos a favor da teoria estática do tempo. Considero que o tempo é dinâmico, que a teoria estática do tempo está sujeita a graves objeções filosóficas e, também entendo, a objeções teológicas, dado que a teoria dinâmica do tempo é compatível tanto com a nossa percepção quanto com o que os filósofos nos dizem a respeito da natureza do tempo. Portanto, estou convencido de que o tempo é dinâmico, e, por isso, posiciono-me do lado da temporalidade divina.

Antes de concluirmos, há, porém, uma segunda objeção à temporalidade divina com a qual temos de lidar. A questão é: por que Deus não criou o mundo mais cedo? O filósofo alemão Leibniz apresentou essa objeção ao filósofo newtoniano Samuel Clarke, na correspondência entre eles. Clarke, assim como Newton, cria que Deus havia passado um tempo infinito, vazio e improdutivo até certo momento no qual ele criou o universo. Então, Leibniz perguntou: “Por que ele não criou o mundo mais cedo?”. Por que razão Deus passou uma eternidade num período de indolência criativa antes de criar o mundo, e por que criaria ele o mundo no momento em que o criou, por que não mais cedo ou mais tarde? Vejam a coisa da seguinte maneira. Segundo essa visão newtoniana, a qualquer tempo t anterior ao momento da criação, Deus demorou a criar até um momento posterior t + n. Seja qual for o momento do passado infinito que se escolha, nesse momento Deus poderia ter criado o mundo, todavia ele preferiu não criá-lo. Embora desde a eternidade Deus quisesse criar o universo, ele privou-se deliberadamente de criá-lo nesse momento, adiando-o até algum tempo mais tarde. Um ser supremamente racional, assim como é Deus, não adiaria a realização da sua vontade se não fosse por uma boa razão. Mas no tempo infinito e vazio pode não haver razão para se preferir criar em dado momento e não noutro, pois no tempo infinito e vazio todos os momentos são iguais. São indistinguíveis e, portanto, pode não haver razão para se escolher um momento em vez de outro, e, assim, não há razão para Deus deixar de criar de algum tempo t até t + n. Portanto, Leibniz argumentava, deve-se dizer que o tempo começou no momento da criação, que Deus não passou através de um tempo infinito e vazio até a criação, mas que o tempo começou no exato momento da criação. Essa é exatamente a visão que Santo Agostinho também adotou ao tratar do problema.

Temos agora uma situação extremamente bizarra. Vimos que o tempo precisa ter tido um início. Deus existe no tempo. Nada obstante, Deus não tem um início. Como é possível decifrar isso? Como é possível Deus existir no tempo, o tempo ter um início e, ainda assim, Deus não ter um início. Não parece fazer sentido. Será que isso nos força a dizer, portanto, que Deus é simplesmente atemporal?

Bem, julgo que não, e quero propor um modelo para a eternidade divina que, segundo entendo, resolverá esse problema. Vamos supor que o tempo começa a existir no momento da criação, e, por conveniência, vamos chamar esse momento de “big bang”. Então, Deus não existia literalmente antes do big bang, porque existir antes do big bang é existir numa relação temporal. Portanto, Deus não existiria temporalmente antes do big bang. De algum modo misterioso, ele existia além do big bang, mas não antes do big bang. Ora, em tal estado, é evidente que ele teria de existir de modo imutável, porque se houvesse eventos, se ele sofresse mudança, o tempo não começaria no big bang. Começaria com aqueles primeiros eventos. Assim, para existir além do big bang, Deus deve existir imutavelmente. Mas tal estado de imutabilidade, desprovido de eventos, deve ser, como costumo dizer, plausivelmente considerado um estado de atemporalidade. Portanto, o modelo que quero propor é que Deus existe atemporalmente sem a criação e temporalmente subsequente à criação.

Creio que podemos obter uma analogia física para isso a partir da noção de singularidade cosmológica inicial. A singularidade cosmológica em que nosso universo teve início não é, estritamente falando, parte do espaço e do tempo, e, portanto, não é anterior ao universo; antes, é a fronteira de espaço e tempo. A singularidade é causalmente anterior ao nosso universo, mas não é cronologicamente anterior ao universo. Ela existe na fronteira de espaço-tempo. Analogamente, quero sugerir que consideremos a eternidade, da mesma maneira que a singularidade, como a fronteira do tempo. Deus é causalmente anterior, mas não cronologicamente anterior, ao universo. Seu estado imutável, atemporal, eterno é a fronteira do tempo; nesse estado, ele existe sem o universo, e no momento da criação Deus entra no tempo em virtude da sua relação real com a ordem criada e seu conhecimento de fatos temporalmente dinâmicos, de sorte que Deus é atemporal sem a criação e temporal subsequente à criação.

Ora, essa conclusão extraordinária, penso eu, é merecedora de séria reflexão. Ela significa que Deus, na criação e também na encarnação, empreendeu um ato de complacência por nossa causa. Existindo unicamente na plenitude de seus relacionamentos intratrinitários, Deus não precisava se relacionar com pessoas temporais. Na sua existência atemporal perfeita não há déficit em seu modo de existir, não há nenhuma deficiência a ser preenchida. Mas pelo seu amor e graça ele quis criar um mundo temporal de criaturas finitas, para que pudessem ser convidadas a partilhar da vida trinitária íntima da Divindade e do amor das três pessoas da Trindade. Assim, na criação, Deus rebaixa-se para entrar e encarregar-se do nosso modo temporal de existência a fim de relacionar-se conosco e nos pôr em relação consigo mesmo. E, é evidente, na encarnação ele se rebaixa ainda mais para assumir não meramente nosso modo de existência, mas nossa própria natureza humana.

Entendo que isso faz totalmente sentido para o relacionamento entre Deus e o tempo. Deus é atemporal sem a criação e temporal subsequente à criação. Tendo entrado no tempo, ele não é dependente de sinais de luz de velocidade finita ou de procedimentos de tempo sincronizado, pois sabe o que é o tempo. Antes, existindo no tempo absoluto, Deus é, como proclamou Newton, o Senhor Deus de domínio do seu universo. Nas palavras de São Judas: “ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos”.

Discussão

P. (Hugh Ross): Bill, quando a Bíblia fala de tempo, não é possível que esteja se restringindo ao tempo cósmico? E, uma vez que podemos conceber o tempo como propriedades multidirecionais, multidimensionais e paráveis, as quais o tempo cósmico não possui, não podemos conceber que a temporalidade seja independente do tempo cósmico, e a atemporalidade, portanto, poderia simplesmente ser existência além do tempo cósmico. Será que a Escritura não se refere temporalmente a “antes do início do tempo”? Essas coisas não são, pelo menos, possibilidades?

R. Sim. Certamente é possível considerar que Deus exista em algum tipo de dimensão de tempo secundário, que seria uma espécie de hipertempo no qual nosso tempo ordinário está embutido. Mas não estou convencido, como você sabe, Hugh, que essa seja uma boa alternativa, uma alternativa plausível. Penso que seja metafisicamente extravagante postular um hipertempo, um tempo de segunda dimensão. Não há evidência científica para isso. Nas teorias das cordas multidimensionais, como você sabe, essas dimensões adicionais são dimensões espaciais, não dimensões temporais. Todas elas evoluem numa única dimensão de tempo que começa com o big bang. Portanto, é uma extravagância metafísica postular um hipertempo.

Em segundo lugar, não julgo que pressupor uma dimensão de tempo secundário resolva de fato qualquer coisa, pois todos os problemas dos quais falamos, quanto à primeira dimensão do tempo, simplesmente voltarão a surgir com respeito à segunda dimensão do tempo. O hipertempo é temporalmente dinâmico ou temporalmente estático? E a coisa toda volta a surgir sem cessar. Portanto, não entendo que isso resolva realmente alguma coisa.

Por último, meu terceiro ponto seria que considero realmente que a suposição de uma dimensão de tempo secundário está aberta a certas objeções, isto é, entendo que só seja possível compreender o hipertempo construindo um tempo unidimensional no qual vivemos e existimos como um tempo estático. Se o nosso tempo for um tempo dinâmico, então não pode estar embutido numa dimensão de tempo superior. Considerá-lo como uma dimensão de tempo superior é tratá-lo como uma dimensão espacial, na qual seja possível, digamos, estender e acrescentar-lhe largura, de modo a se obter um plano. Mas, se você tem uma teoria dinâmica do tempo, o tempo não é alargado espacialmente como uma figura linear. Isso só funcionará numa teoria estática. E, visto que não considero que a teoria estática seja correta, por inúmeras razões, não acho, portanto, em última análise, que o hipertempo seja metafisicamente possível. Logo, por essas razões, eu o rejeitaria.

P. (Hugh Ross): Bem, e quanto à possibilidade de um hiper-hipertempo? Noutras palavras, alguma capacidade de Deus completamente independente de qualquer conceito de tempo que temos, mas que apesar disso permitiria a Deus --

R. Veja, quando você usa a ideia de extradimensionalidade, entendo que a está usando de fato como uma metáfora para algo que não é literalmente uma dimensão de tempo mais elevada. É uma metáfora para dizer que Deus tem a capacidade de agir em nosso tempo de maneiras extraordinárias, ou alguma coisa desse tipo. E, certamente, eu admitiria isso, mas não julgo que a metáfora de embutir dimensões de tempo mais altas seja uma metáfora proveitosa, pois é demasiadamente ilusória. Se for considerada literalmente, como já disse, acho que seja extravagante, não soluciona o problema e tem sérias objeções.

P. Obrigado por sua excelente explicação! O conceito da imutabilidade, da impossibilidade de mudança de Deus é, acho eu, essencial, caso queiramos manter distância da Teologia do Processo e de outras áreas, nas quais entendo que poderíamos dar errado. Se Deus é atemporal antes da criação e temporal depois da criação, você estaria dando a entender alguma mudança na natureza, na essência ou no caráter de Deus, ou simplesmente na sua relação com o tempo?

R. Excelente pergunta! Não estou, de modo algum, dando a entender mudança na natureza de Deus. Lembre-se, falei da sua mudança extrínseca, mudança nos relacionamentos. Essa não seria uma mudança na sua natureza. Entendo, de fato, que Deus também muda de maneira intrínseca — por exemplo, saber que horas são. Ele sabe que agora é t1, agora é t2, agora é t3. Mas julgo que esses tipos de mudanças triviais não ameaçam jamais o conceito ortodoxo de Deus. O crucial é que Deus não muda nos seus atributos de onipresença, onipotência, santidade, amor, eternidade, e todos os demais. De acordo com esse modelo, todos eles seriam preservados como atributos essenciais de Deus.

P. Você disse no início da sua palestra que os leigos quase sempre fazem a pergunta: “Por que Deus não poderia ser tanto atemporal quanto temporal?”. Eu perguntaria isso novamente: por que Deus não poderia ser atemporalmente existente ou temporal? Entendo que há um elemento de atemporalidade dentro do tempo. Esse é meu argumento.

R. Você percebeu que o modelo que adotei no final é realmente essa intuição do leigo? Ou seja, argumentei que Deus é atemporal e temporal. É a intuição do leigo, mas, a menos que se apresente um modelo, não passa de uma contradição absoluta. É como afirmar que algo é A e não-A, o que é logicamente incoerente. É impossível. Mas tentei fornecer um modelo para que não seja mais autocontraditória. Como qualifico esse modelo? Deus é atemporal sem o universo e temporal subsequentemente ao princípio do universo. O que fiz, em certo sentido — e acho que seja muito irônico, pois não planejei fazer isso —, foi terminar demonstrando a verdade daquilo que o leigo imagina quando diz que Deus é tanto temporal quanto atemporal. Entendo que isto está certo: ele é atemporal sem a criação e temporal subsequentemente ao momento da criação.

P. Mas eu lhe diria que algo deve ter se perdido aí, na transição de ser atemporal para ser temporal, porque, se Deus passa a ser temporal após ou durante a criação, ele deve não se lembrar mais da atemporalidade que tinha antes. Não pode se lembrar dela porque não é mais atemporal.

R. Sim — bem, está certo! Essa é uma teoria muito esquisita, admito. É um modelo muitíssimo estranho. Mas, quando se lida com temas como tempo e eternidade, quase tudo o que se propõe é estranho! Portanto, o que esse modelo exigiria que disséssemos é que a onisciência de Deus no seu estado atemporal envolve o conhecimento de verdades exclusivamente temporalmente estáticas, como: “Em t=0, eu crio o mundo”, “em t=n, liberto os israelitas da escravidão”, “em t=n+m, encarno-me na pessoa de Jesus de Nazaré”, e assim por diante. No momento da criação, haveria repentinamente um número imensurável de proposições temporalmente dinâmicas que trocariam seu valor de verdade de falso para verdadeiro: ou seja, “Eu libertarei os israelitas”, “Eu me encarnarei”, e assim por diante. Proposições no passado passarão a ser verdadeiras: “Eu criei o universo há um minuto”, “Eu fiz isso ou aquilo”, e assim por diante. Mas não haveria proposições no passado sobre o estado atemporal antes da existência do mundo, porque ele não está no passado.

P. E quanto às proposições de futuro contingente? Deus é apanhado de surpresa pelo que fazemos?

R. Não, não acho que seja porque entendo que ele é onisciente. A doutrina da onisciência diz que, para qualquer proposição ou fato verdadeiros, Deus conhece essa proposição ou conhece esse fato e ele não crê em nenhuma proposição falsa. Essa é a definição tradicional de onisciência. Uma vez que agora há verdades sobre o futuro, Deus, como ser onisciente, tem de conhecê-las. E isso é o que a Bíblia afirma. O Novo Testamento tem um vocabulário inteiro de palavras gregas com o prefixo pro-, como prognosis, que significa literalmente “conhecimento antecipado”, o qual é atribuído a Deus. Ele prediz (promartureo) o futuro. Ele predestina (proorizo) o futuro. Além disso, o conhecimento que Deus tem do futuro é exemplificado na profecia, como a predição de Jesus sobre a traição de Judas e a negação de Pedro, eventos altamente contingentes. Afirmo, portanto, que Deus não se surpreende pelo que sucede no curso do desdobramento do tempo, porque ele é onisciente.

P. Onde obtém ele tal presciência, visto que se tornou temporal?

R. Essa é uma boa pergunta. Há, pelo menos, duas teorias, acho eu, que podem ser adotadas para fundamentar a presciência divina. Uma seria a de que Deus simplesmente tem onisciência como um atributo essencial; é um atributo essencial de Deus acreditar única e exclusivamente em proposições verdadeiras. Ele não aprende nada porque ele tem exatamente a propriedade essencial de conhecer toda a verdade, e seria errado imaginar que Deus precise, de algum modo, de aprender o que ele sabe. O outro modelo é chamado de “conhecimento médio”, o qual sustenta que Deus sabe o que toda criatura livre faria livremente em quaisquer circunstâncias em que ele a puser. Em virtude de conhecer essas verdades e de conhecer o decreto da sua própria vontade para criar certas circunstâncias e colocar nelas certas criaturas, Deus, então, sabe tudo o que vai acontecer. Estou convencido de que um desses dois modelos é um modelo viável para a onisciência divina e o modelo do conhecimento médio é especialmente útil para explicar a providência de Deus sobre um mundo de criaturas livres.

  • [1]

    Publicado em português com o título Deus e a nova física (Lisboa: Edições 70, 2000). [N. do R.]

  • [2]

    Publicado em português com o título Decepcionado com Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 1990). [N. do R.]

  • [3]

    Publicado em português com o título A cabana na grande floresta (Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1975). [N. do R.]

  • [4]

    Laura Ingalls Wilder, Little House in the Big Woods (Nova Iorque: Harper & Row, 1932), pp.237-238.