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O argumento cosmológico kalam

Summary

Este artigo é o texto da palestra do doutor Craig em 2015 na Universidade de Birmingham, onde ele fez sua tese de doutorado que levou ao renascimento do argumento cosmológico kalam nos nossos dias.

Quando garoto, ficava admirado com a existência do universo. Eu me perguntava de onde ele veio. Será que teve um começo? Lembro-me de deitar na cama à noite tentando pensar num universo sem começo. Todo evento seria precedido por outro evento, voltando no passado sem cessar, sem nenhum ponto de parada — ou, para ser mais preciso, nenhum ponto de partida! Um passado infinito, sem começo! Minha mente ficava zonza com a ideia. Parecia inconcebível. Deve ter havido um começo em algum momento, pensava eu, para que tudo se iniciasse.

Não tinha a menor suspeita de que, por séculos — por milênios, na verdade —, muitos lutavam com a ideia de um passado infinito e a questão da possibilidade de haver ou não um começo do universo. Filósofos gregos antigos acreditavam que a matéria era necessária e incriada e, portanto, eterna. Deus talvez fosse responsável por trazer ordem ao cosmo, mas Ele não criou o universo em si.

Este ponto de vista grego contrastava com o pensamento judaico, ainda mais antigo, a respeito do assunto. Os escritores hebraicos criam que o universo nem sempre existiu, mas foi criado por Deus em algum ponto no passado. Como afirma o primeiro versículo das Escrituras Sagradas hebraicas, “no princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1.1).

Em dado momento, essas duas tradições rivais começaram a interagir. Apareceu na filosofia ocidental um debate contínuo que durou bem mais de mil anos acerca da possibilidade do universo ter ou não um começo. Este debate se desenvolveu entre judeus e muçulmanos, bem como cristãos, tanto católicos quanto protestantes. Por último, topou com um fim um tanto inconcluso no pensamento do grande filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant. Ele defendia, ironicamente, que existem argumentos racionalmente convincentes nos dois lados, expondo, pois, a falência da própria razão!

Vim a saber deste debate pela primeira vez somente após terminar a faculdade. Desejoso de chegar a uma posição sobre a questão, decidi, assim que completasse meu mestrado em filosofia, encontrar alguém disposto orientar uma tese de doutorado no assunto. A pessoa que se sobressaía em relação a todos os demais era o professor John Hick, na Universidade de Birmingham. Viemos, então, para Birmingham, escrevi sobre o argumento cosmológico sob a direção do professor Hick e, passado o tempo, três livros resultaram daquela tese de doutorado. Consegui investigar as raízes históricas do argumento, bem como aprofundar e desenvolver sua análise. Também descobri ligações muito incríveis com a astronomia e cosmologia contemporâneas.

Por suas raízes históricas na teologia islâmica medieval, batizei o argumento de “o argumento cosmológico kalam” (kalam é a palavra árabe para teologia medieval). Atualmente este argumento, em grande medida esquecido desde o tempo de Kant, voltou ao centro das atenções. O Cambridge Companion to Atheism [Manual Cambridge de Ateísmo] (2007) relata: “uma contagem dos artigos nos periódicos de filosofia mostra que mais artigos foram publicados sobre ... o argumento kalam do que sobre qualquer outra ... formulação argumentativa para a existência de Deus [...] nem teístas nem ateus ‘conseguem deixar o argumento kalam em paz’” (p. 183).

Qual é o argumento que despertou tanto interesse? Deixemos um dos maiores protagonistas medievais nesse debate falar por si mesmo. Al-Gazali foi teólogo muçulmano da Pérsia — ou Irã atual — no século XII. Ele se preocupava que os filósofos muçulmanos de seus dias eram influenciados pela filosofia grega antiga na negação da criação do universo por Deus. Depois de estudar minuciosamente os ensinamentos desses filósofos, Gazali escreveu uma crítica destruidora da visão destes com o título A incoerência dos filósofos. Neste livro intrigante, ele argumenta que a ideia de um universo sem começo é absurda. O universo deve ter um começo e, uma vez que nada começa a existir sem uma causa, deve haver um criador transcendente do universo.

Gazali formula seu argumento de forma muito simples: “Todo ser que começa tem uma causa para seu começo; ora, o mundo é um ser que começa; logo, ele possui uma causa para seu começo”. [1]

O raciocínio de Gazali envolve três passos simples:

1. Tudo que começa a existir tem uma causa.

2. O universo começou a existir.

3. Logo, o universo tem uma causa.

Atentemos para cada passo de seu argumento.

Premissa 1

Observe que Gazali não precisa de uma premissa tão forte quanto (1) para que seu argumento tenha êxito. A primeira premissa pode ser afirmada de forma mais modesta.

1’. Se o universo começou a existir, o universo tem uma causa para seu começo.

Esta versão mais modesta da primeira premissa nos permitirá evitar distrações sobre a possibilidade de partículas subatômicas que são o resultado de processos de decaimento quântico virem a existir sem uma causa. Esta suposta exceção a (1) é irrelevante a (1’). Pois o universo compreende toda realidade contígua de espaço-tempo. Logo, o universo vir a existir sem uma causa significa vir a existir do nada, o que é absurdo. Nos eventos de decaimento quântico, as partículas não vêm a existir do nada. Como adverte Christopher Isham, o principal cosmólogo quântico da Grã-Bretanha,

É preciso tomar cuidado ao usar a palavra “criação” em contexto físico. Exemplo familiar é a criação de partículas elementares em um acelerador. O que ocorre, porém, nessa situação, é a conversão de um tipo de matéria em outro, com a quantidade total de energia sendo preservada no processo. [2]

Assim, essa suposta exceção a (1) não é exceção a (1’).

Dou aqui três razões a favor da premissa (1’):

1. Algo não pode vir do nada. Alegar que algo pode vir a existir do nada é pior do que mágica. Quando um mágico tira o coelho da cartola, ao menos se tem o mágico, sem contar a cartola! Mas, se a premissa (1’) é negada, é preciso pensar que o universo inteiro apenas apareceu em algum ponto no passado por nenhuma razão. Ninguém, porém, acredita sinceramente que coisas — digamos, um cavalo ou uma vila esquimó — podem aparecer sem uma causa.

2. Se algo pode vir à existência do nada, torna-se inexplicável por que nada ou coisa alguma não vem a existir do nada. Pense assim: por que bicicletas e Beethoven e cerveja de raiz simplesmente não apareceram do nada? O que torna o nada algo tão discriminatório? O nada não pode ter coisa alguma que favoreça universos, pois o nada não tem nenhuma propriedade. E coisa alguma pode limitar o nada, pois não há coisa alguma para ser limitada!

3. A experiência comum e as informações científicas confirmam a verdade da premissa 1’. A ciência da cosmogonia se baseia no pressuposto de que existem condições causais para a origem do universo. É difícil, então, entender como alguém comprometido com a ciência moderna conseguiria negar que (1’) tem mais plausibilidade de ser verdadeiro do que falso.

Penso, pois, que a primeira premissa do argumento cosmológico kalam é certamente verdadeira.

Premissa 2

A premissa mais controversa no argumento é a premissa 2, de que o universo começou a existir. Isto não é de forma alguma evidente. Examinemos tanto argumentos filosóficos quanto indícios científicos a favor da premissa 2.

Primeiro argumento filosófico

Gazali argumentou que, se o universo nunca começou a existir, há um número infinito de eventos anteriores a hoje. Ainda argumentou, porém, que um número infinito de coisas não pode existir. Gazali admitiu que um número potencialmente infinito de coisas pudesse existir, mas negou que um número realmente infinito de coisas pudesse existir.

Quando se diz que algo é potencialmente infinito, infinidade serve simplesmente como limite ideal que jamais é alcançado. Por exemplo, seria possível dividir qualquer distância finita pela metade, e em seguida em quartos, depois em oitavos, em dezesseis partes, e assim por diante até o infinito. O número de divisões é potencialmente infinito, no sentido de que seria possível continuar dividindo sem parar, mas nunca se chegaria a uma divisão em “infinitas partes”. James se poderia ter um número realmente infinito de partes ou divisões.

Pois bem, Gazali não tem nenhum problema com a existência de infinitos meramente potenciais, pois se tratam apenas de limites ideais. Ele argumentou, porém, que, se um número realmente infinito de coisas pudesse existir, diversos absurdos surgiriam. Se quisermos evitar tais absurdos, devemos negar que um número realmente infinito de coisas exista. Isso implica que um número de eventos passados não pode ser realmente infinito. Logo, o universo não pode ser sem começo; antes, o universo começou a existir.

Alega-se com muita frequência que esse tipo de argumento foi invalidado por avanços na matemática moderna. Na teoria moderna dos conjuntos, o uso de conjuntos realmente infinitos é comum. Por exemplo, o conjunto de números naturais {0, 1, 2, ...} possui um número realmente infinito de membros. O número de membros nesse conjunto não é apenas potencialmente infinito, de acordo com a teoria moderna dos conjuntos; antes, o número de membros é realmente infinito. Muitas pessoas inferem que esses avanços solapam o argumento de Gazali.

Será que é isso mesmo? A teoria moderna dos conjuntos mostra que, caso se adotem alguns axiomas e regras, pode-se falar de conjuntos realmente infinitos de forma coerente, sem se contradizer. Tudo que se consegue com isso é mostrar como elaborar determinado universo de discurso para falar coerentemente de infinitos reais. Isso nada faz para mostrar que tais entidades matemáticas realmente existem ou que um número realmente infinito de coisas pode realmente existir. Se Gazali está certo, este universo de discurso pode ser considerado como apenas um domínio da ficção, como o mundo de Sherlock Holmes ou algo que existe em sua mente.

O modo como Gazali revela a impossibilidade de um número realmente infinito de coisas é imaginando como seria se tal conjunto pudesse existir e, então, elaborando consequências absurdas. Compartilho aqui uma das minhas ilustrações favoritas chamada “Hotel de Hilbert”, criação do grande matemático alemão David Hilbert.

Hilbert primeiramente nos convida a imaginar um hotel comum com um número finito de quartos. Suponha ainda que todos os quartos estão ocupados. Se um novo hóspede aparece na recepção à procura de um quarto, o gerente diz: “Sinto muito, todos os quartos estão ocupados”, e é o fim da história.

Imaginemos, porém, diz Hilbert, um hotel com número infinito de quartos, e suponhamos novamente que todos os quartos estão ocupados. Este fato deve ser considerado com cuidado. Não há uma vaga sequer em todo o hotel infinito; cada quarto tem uma pessoa de carne e osso. Suponha, então, que um novo hóspede apareça na recepção à procura de um quarto. “Sem problemas”, diz o gerente. Ele desloca a pessoa que se hospedava no quarto 1 para o quarto 2, a pessoa que se hospedava no quarto 2 para o quarto 3, a pessoa que se hospedava no quarto 3 para o quarto 4, e assim sucessivamente até o infinito. Em consequência dessas mudanças de quarto, o quarto 1 agora está vago e o novo hóspede, agradecido, pode entrar nele. Mas, antes dele chegar, todos os quartos já estavam ocupados!

A coisa fica cada vez pior! Suponhamos, então, diz Hilbert, que uma infinidade de novos hóspedes apareça na recepção à procura de quartos. “Sem problemas, sem problemas!”, diz o gerente. Ele desloca a pessoa que se hospedava no quarto 1 para o quarto 2, a pessoa que se hospedava no quarto 2 para o quarto 4, a pessoa que se hospedava no quarto 3 para o quarto 6, sempre deslocando o hóspede antigo para o quarto que tem o número duas vezes maior que seu quarto atual. Uma vez que qualquer número multiplicado por duas é par, todos os hóspedes acabam parando em quartos de número par. Consequentemente, todos os quartos de número ímpar ficam vagos e a infinidade de novos hóspedes pode ser acomodada facilmente. Na verdade, o gerente poderia fazer isso um número infinito de vezes e sempre acomodar infinitamente mais hóspedes. Porém, antes deles chegarem, todos os quartos já estavam ocupados!

Como um aluno comentou comigo uma vez, o Hotel de Hilbert, se pudesse existir, teria o seguinte cartaz na entrada: “Não há mais vagas (ainda aceitamos hóspedes)”. Será que um hotel desses pode existir na realidade?

O Hotel de Hilbert é absurdo. Como nada se atém à ilustração envolvendo um hotel, o argumento pode ser generalizado para mostrar que a existência de um número realmente infinito de coisas é absurdo.

Às vezes, há quem reaja ao Hotel de Hilbert dizendo que esses absurdos surgem porque o conceito de infinidade está além de nossa capacidade e não conseguimos entendê-lo. Uma reação dessas, porém, é equivocada e ingênua. Como disse, a teoria dos conjuntos infinitos é ramo muitíssimo avançado e bem compreendido da matemática moderna. Os absurdos surgem porque entendemos, sim, a natureza do infinito real. Hilbert era um cara esperto e sabia muito bem como ilustrar as consequências bizarras da existência de um número realmente infinito de coisas.

Na verdade, a única coisa que o crítico pode fazer a essa hora é aguentar o tranco e dizer que o Hotel de Hilbert não é absurdo. Às vezes, os críticos tentarão justificar essa mudança dizendo que, se um infinito real pudesse existir, tais situações seriam exatamente o que esperaríamos. A resposta, no entanto, é inadequada. Hilbert, obviamente, concordaria que, se um infinito atual pudesse existir, a situação com o hotel imaginário é o que esperaríamos. Do contrário, não seria uma boa ilustração! Mas a questão é se um hotel desses é realmente possível.

Penso, então, que o primeiro argumento de Gazali é bom. Mostra que o número de eventos passados deve ser finito. Portanto, o universo deve ter tido um começo. Podemos resumir o argumento de Gazali como segue:

1. Um infinito real não pode existir.

2. Um regresso temporal infinito de eventos é um infinito real.

3. Logo, um regresso temporal infinito de eventos não pode existir.

Segundo argumento filosófico

Gazali tem um segundo argumento independente para a existência do universo. A série de eventos passados, observa Gazali, foi formada adicionando-se um evento após o outro. A série de eventos passados é como uma sequência de peças de dominó caindo uma após a outra até a última peça, hoje, ser atingida. Argumenta, porém, que nenhuma série formada pelo acréscimo de um membro após o outro pode ser realmente infinita. Pois não se pode passar por um número infinito de elementos um de cada vez.

É fácil ver isso no caso da tentativa de contar até o infinito. Não importa quanto se conte, sempre haverá ainda uma infinidade de números para contar.

Se não é possível contar até o infinito, como seria possível fazer contagem regressiva a partir do infinito? Seria como se alguém alegasse ter feito contagem regressiva de todos os números negativos, terminando no zero: ..., -3, -2, -1, 0. Parece loucura. Pois, antes de poder contar 0, seria preciso contar -1, e, antes de contar -1, seria preciso contar -2, e assim sucessivamente, de volta ao infinito. Antes que qualquer número pudesse ser contado, uma infinidade de números teria de ser contada primeiro. Acaba-se arrastando cada vez mais longe no passado, a tal ponto que não é possível mais contar nenhum número.

Então, a última peça do dominó jamais poderia cair, se um número infinito de peças tivesse que cair primeiro. Hoje, portanto, nunca poderia chegar. Mas, obviamente, estamos aqui! Isto mostra que a série de eventos passados deve ser finita e ter um começo.

Gazali buscou aumentar a impossibilidade de formar um passado infinito ao dar ilustrações dos absurdos que surgiriam, caso fosse possível realizá-lo. Por exemplo, suponha que, para cada órbita que Saturno completa ao redor do sol, Júpiter completa duas. Quanto maior a órbita, mais Saturno fica para trás. Se continuarem a orbitar para sempre, chegarão perto de um limite em que Saturno está infinitamente atrás de Júpiter. Obviamente, nunca chegarão realmente a esse limite.

Agora invertamos a história: suponha que Júpiter e Saturno orbitam o sol desde a eternidade passada. Qual terá completado mais órbitas? A resposta é que o número de órbitas é exatamente o mesmo: infinito! (Não podemos escapar deste argumento dizendo que infinito não é um número. Na matemática moderna, é, sim, um número, o número de elementos no conjunto {0, 1, 2, 3, ...}.) Mas isso parece absurdo, pois, quanto mais orbitam, mais cresce a disparidade. Como, então, o número de órbitas magicamente se torna igual, ao fazer que os planetas orbitem desde a eternidade passada?

Outra ilustração: suponha que encontremos alguém que afirma estar em contagem regressiva desde a eternidade passada e está agora prestes a completar: ... -3, -2, -1, 0! Ufa! Por que, pode-se perguntar, a pessoa está para completar sua contagem regressiva só hoje? Por que não terminou ontem ou anteontem? Afinal, até ali uma quantidade infinita de tempo já passara. Assim, se a pessoa estivesse contando numa velocidade de um número por segundo, já teve um número infinito de segundos para completar sua contagem regressiva. Já deveria ter acabado! Na verdade, em qualquer ponto no passado, já teve tempo infinito e, por isso, já deveria ter terminado. Mas, assim, em nenhum ponto no passado é possível encontrar a pessoa prestes a completar sua contagem regressiva, o que contradiz a hipótese de que já conta desde a eternidade.

Alexander Pruss e Robert Koons recentemente defenderam uma atraente versão contemporânea do argumento de Gazali chamada de Paradoxo do Anjo da Morte. Existem infinitos Anjos da Morte (que podemos identificar como deuses, para evitar quaisquer objeções físicas). Você está vivo à meia-noite. O Anjo 1 o fulminará à uma da manhã, se você ainda estiver vivo àquela hora. O Anjo 2 o fulminará à meia-noite e meia, se você ainda estiver vivo na ocasião. O Anjo 3 o fulminará à meia-noite e quinze, e assim por diante. Uma situação dessas parece obviamente concebível, dada a possibilidade de um número realmente infinito de coisas, mas leva a uma impossibilidade: você não pode sobreviver depois da meia-noite e, ainda, você não pode ser morto por qualquer Anjo da Morte a qualquer momento. Pruss e Koons mostram como reformular o paradoxo para que os Anjos da Morte se espalhem por um tempo infinito, e não em uma única hora, por exemplo, fazendo com que cada Anjo da Morte ataque com sua foice no 1º. de janeiro de cada ano passado, se você tiver conseguido viver tanto assim.

Estas ilustrações apenas corroboram a afirmação de Gazali segundo a qual nenhuma série formada pelo acréscimo de um membro após outro pode ser realmente infinita. Uma vez que a série de eventos passados foi formada pelo acréscimo de um evento após o outro, não pode ser realmente infinita. Deve ter tido um começo. Temos, pois, um segundo bom argumento para a premissa 2, de que o universo começou a existir. Podemos resumir este argumento como segue:

1. Um conjunto formado pelo acréscimo sucessivo não pode ser um infinito real.

2. A série temporal de eventos é um conjunto formado por acréscimo sucessivo.

3. Logo, a série temporal de eventos não pode ser um infinito real.

Primeira confirmação científica

Um dos avanços mais espantosos da astronomia moderna, que Gazali nunca teria previsto, é que agora temos fortes indícios científicos para o começo do universo. A primeira confirmação científica do começo do universo advém da expansão do universo.

Por toda a história, os homens pressupuseram que o universo como um todo não mudava. Evidentemente, as coisas no universo se moviam e mudavam, mas o universo em si simplesmente existe, por assim dizer. Foi este o pressuposto de Albert Einstein quando começou a aplicar ao universo sua nova teoria da gravidade, chamada de Teoria Geral da Relatividade, em 1917.

Einstein, porém, achava que algo estava terrivelmente errado. Suas equações descreviam um universo que inflava como um balão ou, então, ruía em si mesmo. Durante a década de 1920, o matemático russo Alexander Friedmann e o astrônomo belga Georges Lemaître decidiram levar as equações de Einstein ao pé da letra e, consequentemente, formularam independentemente um do outro modelos de um universo em expansão. Em 1929, o astrônomo americano Edwin Hubble, por meio de incansáveis observações no Observatório do Monte Wilson, fez uma sensacional descoberta que validou a teoria de Friedmann e Lemaître. Ele descobriu que a luz de galáxias distantes parecia ser mais vermelha do que se esperava. Era muito mais plausível que este “deslocamento vermelho” na luz fosse devido ao alongamento das ondas de luz, à proporção que as galáxias se afastam de nós. Toda vez que Hubble mirava seu telescópio no céu noturno, observava o mesmo deslocamento vermelho na luz das galáxias. Parecia que estamos no centro de uma explosão cósmica e todas as outras galáxias fogem de nós a velocidades fantásticas!

Pois bem, de acordo com o modelo de Friedmann-Lemaître, não estamos, na verdade, no centro do universo. Antes, um observador em qualquer galáxia olhará e perceberá as outras galáxias como se estivessem se afastando de si mesmo. Isso porque, de acordo com a teoria, é, na verdade, o próprio espaço que está em expansão. As galáxias estão de fato em repouso no espaço, mas recuam umas das outras à medida que o próprio espaço se expande.

O modelo de Friedmann-Lemaître no devido tempo veio a ser conhecido como a teoria do Big Bang ou Grande Expansão. O nome, porém, pode gerar equívocos. Pensar na expansão do universo como uma espécie de explosão pode nos fazer pensar equivocadamente que as galáxias estão se movendo e entrando em espaço vazio pré-existente a partir de um ponto central. Seria uma total falha de compreensão do modelo. A teoria é muito mais radical do que isso.

Ao rastrear a expansão do espaço de volta no tempo, tudo se aproxima cada vez mais. Eventualmente, a distância entre dois pontos quaisquer no espaço se torna zero. Mais perto do que isso, impossível! Naquele ponto, então, atingiu-se o limite de espaço e tempo. Espaço e tempo não podem ser recuados mais ainda. É literalmente o começo de espaço e tempo.

Para visualizar melhor, podemos retratar nosso espaço tridimensional como um disco bidimensional que encolhe à medida que se recua no tempo (Fig. 1).

Fig. 1. Representação geométrica do espaço-tempo. O disco bidimensional representa nosso espaço tridimensional. A dimensão vertical representa o tempo. À medida que se recua no tempo, o espaço encolhe até a distância entre dois pontos quaisquer ser zero. Espaço-tempo, portanto, representa a geometria de um cone. O ponto do cone é o limite de espaço e tempo.

Tempo

Espaço

Singularidade cósmica inicial

Eventualmente, a distância entre dois pontos quaisquer no espaço se torna zero. Assim, o espaço-tempo pode ser representado geometricamente como um cone. Significativo é que, embora um cone possa se estender indefinidamente em uma direção, ele possui um ponto de fronteira na outra direção. Como esta direção representa o tempo e o ponto de fronteira se encontra no passado, o modelo implica que o tempo passado é finito e teve um começo.

Como o espaço-tempo é a esfera em que toda matéria e energia existem, o começo do espaço-tempo também é o começo de toda matéria e energia. É o começo do universo.

Observe que não há absolutamente nada antes do limite inicial de espaço-tempo. Não nos equivoquemos com palavras, no entanto. Quando os cosmólogos dizem: “Não existe nada antes do limite inicial”, não querem dizer que existe uma situação anterior a ele, sendo um estado de inexistência. Seria como tratar nada como se fosse algo! Pelo contrário, querem dizer que, no ponto de fronteira, é falso dizer que “existe algo antes deste ponto”.

O modelo padrão do Big Bang prevê, pois, um começo absoluto do universo. Se o modelo está correto, temos confirmação científica incrível da segunda premissa do argumento cosmológico kalam.

O modelo padrão está, então, correto, ou — o que é mais importante — ele está correto ao prever um começo do universo? A despeito de sua confirmação empírica, o modelo padrão do Big Bang precisará ser modificado de diversas maneiras. O modelo é baseado, como vimos, na Teoria Geral da Relatividade de Einstein. Mas a teoria de Einstein pára quando o espaço é encolhido em proporções subatômicas. Precisaremos introduzir a física quântica nesse ponto, e ninguém sabe exatamente como se deve fazê-lo. Além disso, a expansão do universo provavelmente não é constante, como no modelo padrão. Provavelmente está acelerando e talvez tenha tido um breve momento de expansão super-rápida no passado.

Nenhum desses ajustes, todavia, afetaria a previsão fundamental do começo absoluto do universo. Na verdade, físicos propuseram inúmeros modelos alternativos ao longo das décadas desde o trabalho de Friedmann e Lemaître, e aquelas que não têm um começo absoluto repetidamente se mostraram impraticáveis. Visto de modo mais positivo, os únicos modelos não-convencionais viáveis são aqueles que envolvem um começo absoluto do universo. Tal começo pode ou não envolver um ponto de começo. Mas, segundo teorias (como a proposta “sem limite” de Stephen Hawking) que não têm um começo com algo como um ponto, o passado ainda é finito, e não infinito. O universo não existiu eternamente, de acordo com essas teorias, mas veio à existência, mesmo que não o tenha feito em um ponto precisamente definido.

Em certo sentido, a história da cosmologia do século XX pode ser encarada como uma série de uma tentativa frustrada após a outra para evitar o começo absoluto previsto pelo modelo padrão do Big Bang. Tal perdição se manteve por praticamente cem anos, durante período de enormes avanços na astronomia de observação e trabalho teórico criativo na astrofísica.

Nesse ínterim, uma série de notáveis teoremas de singularidade cada vez mais consagrou modelos empiricamente defensáveis, ao mostrar que, em condições cada vez mais generalizadas, um começo é inevitável. Em 2003, Arvind Borde, Alan Guth e Alexander Vilenkin conseguiram mostrar que qualquer qualquer universo que está, em média, em estado de expansão cósmica ao longo de cada história, não pode ser infinito no passado, mas deve ter um começo. Isso se aplica a hipóteses de multiversos também. Em 2012, Vilenkin mostrou que modelos que não correspondem a essa condição ainda são incapazes, por outras razões, de evitar o começo do universo. Vilenkin concluiu: “nenhuma dessas hipóteses pode ser de fato eterna no passado”. [3] “Todos os indícios que possuímos dizem que o universo teve um começo”. [4]

O teorema de Borde-Guth-Vilenkin prova que o espaço-tempo clássico, sob uma única condição muito geral, não pode ser estendido para o infinito passado, mas deve atingir uma fronteira em algum momento no passado finito. Ora, havia algo no outro lado da fronteira ou não havia. Se não havia, a fronteira simplesmente é o começo do universo. Se havia algo no outro lado, será uma região descrita pela teoria da gravidade quântica, ainda a ser descoberta. No caso, diz Vilenkin, esse algo será o começo do universo. Seja como for, o universo começou a existir.

Evidentemente, conclusões científicas são sempre provisórias. Podemos esperar perfeitamente que novas teorias serão propostas, na tentativa de evitar o começo do universo. Tais propostas devem ser bem-vindas e examinadas. Todavia, é bastante claro para qual lado os indícios apontam. Atualmente, o proponente do argumento cosmológico de Gazali se posiciona comodamente dentro da ciência dominante ao defender que o universo começou a existir.

Segundo argumento científico

Como se não bastasse, existe na realidade uma segunda confirmação científica do começo do universo, desta vez da Segunda Lei da Termodinâmica. De acordo com a Segunda Lei, a menos que energia seja introduzida num sistema, este ficará cada vez mais desordenado.

Pois bem, já no século XIX, os cientistas notaram que a Segunda Lei implicava uma sombria previsão para o futuro do universo. Dado tempo o suficiente, toda a energia no universo se espalhará uniformemente por todo o universo. O universo virará um caldo descaracterizado em que a vida não é possível. É um estado de equilíbrio. Os cientistas o designaram de a “morte térmica” do universo.

Essa previsão indesejada fez surgir outro enigma: se, dado tempo suficiente, o universo inevitavelmente no futuro estagnará em estado de morte térmica, por que, se ele existiu eternamente, não está agora em estado de morte térmica? Se em quantidade finita de tempo o universo no futuro atingirá equilíbrio, dado tempo passado infinito, ele deveria já estar agora mesmo em estado de equilíbrio. Mas não o está. Estamos em estado de desequilíbrio, em que energia ainda está disponível para ser usada e o universo tem uma estrutura ordenada.

O físico alemão Ludwig Boltzmann, do século XIX, propôs solução ousada a esse problema. Boltzmann sugeriu que talvez o universo esteja, de fato, em estado de equilíbrio geral. Não obstante, somente pelo acaso, surgirão focos de desequilíbrio mais ordeiros aqui e ali. Boltzmann refere-se a essas regiões isoladas de desequilíbrio como “mundos”. Nosso universo apenas calha de ser um desses mundos. No devido tempo, de acordo com a Segunda Lei, ele reverterá para o estado geral de equilíbrio.

Físico contemporâneos rejeitaram universalmente a ousada Hipótese de Muitos Mundos de Boltzmann como explicação do desequilíbrio observado no universo. Seu erro fatal é que, se nosso mundo é meramente uma flutuação fortuita de um estado de equilíbrio geral, deveríamos estar observando uma extensão muito menor de ordem. Por quê? Porque uma pequena flutuação do equilíbrio é muitíssimo mais provável que a enorme flutuação contínua necessária para criar o universo que vemos, e ainda assim uma pequena flutuação seria suficiente para nossa existência. Por exemplo, uma flutuação que formou um mundo não muito maior do que nosso sistema solar deveria bastar para que nós estivéssemos vivos e seria inimaginavelmente mais provável de acontecer do que uma flutuação que formou todo o universo que vemos!

Na realidade, a hipótese de Boltzmann, se aplicada de forma coerente, levaria a uma estranha espécie de ilusionismo: com toda probabilidade, habitamos, sim, um mundo menor, e as estrelas e planetas que observamos são apenas ilusões, meras imagens nos céus. Pois essa espécie de mundo é muito mais provável do que um universo que, a despeito da Segunda Lei da Termodinâmica, deslocou-se do equilíbrio por bilhões de anos para formar o universo que observamos.

A descoberta da expansão do universo na década de 1920 modificou o tipo de morte térmica predita com base na Segunda Lei, mas não alterou a questão fundamental. Descobertas recentes indicam que a expansão cósmica está, na verdade, em aceleração. Como o volume de espaço aumenta tão rapidamente, o universo realmente fica cada vez mais longe de um estado de equilíbrio em que matéria e energia se distribuem uniformemente. A aceleração da expansão do universo, no entanto, somente apressa sua morte. Pois agora as diferentes regiões do universo se tornam cada vez mais isoladas umas das outras no espaço e cada região abandonada se torna sombria, fria, difusa e morta. Mais uma vez, por que nossa região não está nesse estado, se o universo já existe por tempo infinito?

A implicação óbvia de tudo isso é que a questão se baseia em pressuposto falso, a saber, que o universo existe por tempo infinito. Hoje em dia, a maioria dos físicos diria que a matéria e a energia foram simplesmente colocadas no universo como condição inicial, e o universo continua a seguir o caminho traçado pela Segunda Lei desde seu começo, um tempo finito atrás.

É claro que houve tentativas de evitar o começo do universo previsto com base na Segunda Lei da Termodinâmica. Nenhuma, porém, teve êxito. Os céticos talvez mantenham a esperança de que a gravidade quântica servirá para evitar as implicações da Segunda Lei da Termodinâmica. Em 2013, porém, o cosmólogo Aron Wall, da Universidade da Califórnia, conseguiu formular um novo teorema de singularidade que parece fechar a porta àquela possibilidade. Wall mostra que, dada a validade da Segunda Lei geral da Termodinâmica na gravidade quântica, o universo deve ter começado a existir, a menos que se postule uma inversão na flecha do tempo (o tempo caminhando para trás!) em algum ponto no passado, o que, conforme ele observa corretamente, envolve um começo termodinâmico no tempo que “pareceria trazer à tona os mesmos tipos de questões filosóficas que qualquer outro tipo de começo no tempo traria”. [5] Wall relata que suas conclusões exigem a validade de apenas alguns conceitos básicos, de modo que “é razoável crer que as conclusões se sustentarão em uma teoria completa da gravidade quântica”.

Assim, mais uma vez, os indícios científicos confirmam a verdade da segunda premissa do argumento cosmológico de Gazali.

Conclusão

Com base, portanto, tanto em indícios filosóficos quanto científicos, temos bons motivos para crer que o universo começou a existir. Logo, segue que o universo tem uma causa para seu começo.

Quais propriedades essa causa do universo deve possuir? Essa causa deve ser em si não-causada, pois vimos que uma série infinita de causas é impossível. Trata-se, portanto, da Causa Primeira Não-causada. Deve transcender espaço e tempo, já que criou espaço e tempo. Deve, portanto, ser imaterial e não-física. Deve ser inimaginavelmente poderosa, uma vez que criou toda matéria e energia.

Por fim, Gazali argumentou que a Causa Primeira Não-causada deve também se tratar de um ser pessoal. É a única forma de explicar como uma causa eterna é capaz de produzir um efeito com um começo, como o universo.

Eis aí o problema: se uma causa é suficiente para produzir seu efeito, então, se a causa existe, o efeito deve existir também. Por exemplo, a causa do congelamento da água é a temperatura abaixo de 0 grau Celsius. Se a temperatura está abaixo de 0 grau Celsius desde a eternidade, qualquer água existente estaria congelada desde a eternidade. Seria impossível que a água começasse a congelar apenas algum tempo finito atrás. Ora, a causa do universo existe permanentemente, por ser atemporal. Por que, então, o universo não existe permanentemente também? Por que o universo veio a existir apenas 14 bilhões de anos atrás? Por que não é tão permanente quanto sua causa?

Gazali manteve que a resposta para esse problema é que a Causa Primeira deve se tratar de um ser pessoal dotado de livre-arbítrio. Sua criação do universo é ato livre, independente de quaisquer condições determinantes anteriores. Assim, seu ato de criação pode ser algo espontâneo e novo. Livre-arbítrio permite que se consiga um efeito com um começo a partir de uma causa atemporal e permanente. Assim, somos conduzidos não simplesmente a uma causa transcendente do universo, mas a seu criador pessoal.

Deve-se admitir a dificuldade de imaginar isso, mas uma forma de pensar a esse respeito é vislumbrar Deus como se ele existisse sozinho sem o universo, sendo sem mudanças e atemporal. Seu livre ato de criação é evento temporal simultâneo ao evento do universo ao vir à existência. Portanto, Deus entra no tempo quando cria o universo. Sendo assim, Deus é atemporal sem o universo e está no tempo com o universo.

O argumento cosmológico de Gazali nos oferece, portanto, fortes motivos para acreditar na existência de um criador pessoal do universo que é sem começo, sem causa, atemporal, não-espacial, sem mudanças, imaterial e imensamente poderoso.

  • [1]

    Al-Gazali, Kitab al-Iqtisad fi’l-I’tiqad, citado em S. de Beaurecueil, “Gazzali et S. Thomas d’Aquin: Essai sur la preuve de l’existence de Dieu proposée dans l’Iqtisad et sa comparaison avec les ‘voies’ thomistes”, Bulletin de l’Institut français d’archéologie orientale 46 (1947): 203.

  • [2]

    Christopher Isham, “Creation of the Universe as a Quantum Process”, p. 378.

  • [3]

    Audrey Mithani e Alexander Vilenkin, “Did the universe have a beginning?”, (20 de abril de 2012), p. 5. Para um vídeo acessível, ver , em que Vilenkin conclui que “não há no momento modelos que forneçam um modelo satisfatório de um universo sem começo”.

  • [4]

    A. Vilenkin, citado em Lisa Grossman, “Why physicists can't avoid a creation event”, New Scientist (11 de janeiro de 2012). Disponível em: .

  • [5]

    Aron C. Wall, “The Generalized Second Law implies a Quantum Singularity Theorem”, arXiv: 1010.5513v3 [gr-qc] 24 (janeiro de 2013), p. 38, .