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O problema dos milagres: uma perspectiva histórica e filosófica

Summary

O ceticismo moderno em relação aos milagres evangélicos se afirmou pela negação da natureza milagrosa dos eventos. Logo em seguida, porém, a historicidade dos próprios eventos foi negada. Por trás deste ceticismo estava a concepção abrangente de um mundo-máquina newtoniano, os argumentos de Espinoza contra a possibilidade dos milagres e os argumentos de Hume contra a identificação dos milagres. Contrapostas a estes ataques estavam as defesas dos milagres escritas por Le Clerc, Clarke, Less, Paley, dentre outros. Avaliação do debate mostra que, contrariamente à concepção newtoniana, milagres não deveriam ser entendidos como violações das leis da natureza, mas como eventos naturalmente impossíveis. Contrariamente a Espinoza, a admissão de milagres não serviria para subverter a lei natural e a possibilidade de que um milagre é resultado de uma lei natural desconhecida fica minimizada quando os milagres são numerosos, diversos, memoráveis e singulares. Contrariamente a Hume, é forçado ou inválido afirmar que a experiência uniforme é aversa aos milagres.

"The Problem of Miracles: A Historical and Philosophical Perspective", em Gospel Perspectives VI, ed. David Wenham e Craig Blomberg. Sheffield: JSOT Press, 1986, pp. 9-40.

O colapso da crença em milagres no século XIX

São dois os passos a seguir para estabelecer que um milagre ocorreu, segundo Gottfried Less, professor de teologia em Gottinga, em sua obra Wahrheit der christlichen Religion (1758) [A verdade da religião cristã]: primeiro, é preciso determinar a historicidade do evento em si e, segundo, é preciso determinar o caráter milagroso do evento. [1] Durante o século seguinte, a viabilidade destes dois passos passou a ser encarada com ceticismo, o que levou ao colapso geral na teologia alemã da credibilidade das histórias de milagres dos evangelhos.

Negação da natureza milagrosa dos milagres dos evangelhos

O primeiro a ir embora foi o segundo passo. Os racionalistas alemães do fim do século XVII e começo do século XVIII estavam dispostos — sim, por vezes até ávidos — a aceitar a historicidade do evento em si, como pedido no passo um. Empenhavam-se, porém, em propor uma explicação puramente natural para o evento, solapando, portanto, o passo dois. Dado que eventos com causas sobrenaturais não ocorrem, deve justamente haver alguma explicação disponível do ponto de vista de causas meramente naturais. Assim, Karl Bahrdt, em sua obra Ausführung des Plans und Zwecks Jesu (1784-92) [A realização do plano e objetivo de Jesus], explica a multiplicação dos pães para os 5000 postulando uma despensa secreta de pães que Jesus e seus discípulos distribuíram à multidão; sua ressurreição de mortos era na verdade a reanimação de um coma, evitando, então, o sepultamento prematuro. Esta última explicação forneceu a chave para explicar a ressurreição do próprio Jesus. Já pelo fim do século XVIII, a hipótese do roubo, tão cara ao deísmo, aparentemente perdera quase todo a credibilidade, sendo necessária uma nova explicação. Isto o racionalismo alemão encontrou na teoria da morte aparente (Scheintod). De acordo com Bahrdt, a morte e ressureição de Jesus foram uma farsa tramada pelo próprio Jesus para convencer as pessoas de que ele era o Messias.

O decano da escola da explicação natural foi, no entanto, com toda certeza H. E. G. Paulus, professor de teologia em Heidelberg. Em suas obras Philologisch-kritischer und historischer Kommentar über das Neue Testament (1800-02) [Comentário filológico-crítico e histórico do Novo Testamento], Das Leben Jesu, als Grundlage einer reinen Geschichte des Urchristentums (1828) [A vida de Jesus como fundamento de uma simples história do cristianismo primitivo] e Exegetisches Handbuch über die drei ersten Evangelien (1830) [Manual exegético dos três primeiros evangelhos], ele aperfeiçoou a arte de explicar naturalisticamente os elementos milagrosos nos evangelhos, retendo ao mesmo tempo a adesão cuidadosa à letra do texto. Panteísta que aceitou o dito de Espinoza “Deus sive natura” [Deus ou natureza], Paulus rejeitava todos os milagres a priori. Embora insistisse firmemente que o ponto principal de sua Leben Jesu não era descartar os milagres, [2] é ainda assim verdade que ele se esforçou bastante para fazer exatamente isto, e é sobretudo por tal esforço que ele é lembrado. De acordo com Paulus, milagres não são o importante, mas, sim, o espírito de Jesus conforme visto em seu pensamento e ações. [3] É a pessoa de Jesus em seu caráter e coragem morais que é verdadeiramente milagrosa. “Das Wunderbare von Jesus ist er selbst” [O milagroso de Jesus é ele próprio]. [4] O verdadeiro sentido do cristianismo deve ser encontrado nos ensinamentos de Jesus, que, diz Paulus, são evidentemente verdadeiros, conforme demonstrado pela espiritualidade interior que contêm. De todo modo, milagres literais, mesmo que tivessem ocorrido, em nada contribuiriam para fundamentar a verdade cristã. “O ponto principal já é certo de antemão, que as mudanças mais inexplicáveis no curso da natureza não podem nem subverter nem provar nenhuma verdade espiritual, visto que não se pode ver a partir de nenhum evento da natureza por qual propósito espiritual algo, em vez de nada, deveria acontecer”. [5] Uma vez que a pessoa captou a verdade espiritual da pessoa e ensinamento de Jesus, os milagres se tornam de todo supérfluos. “A própria prova dos milagres sempre requer primeiramente, como lhe cabe bem, que as alegações devam ser dignas de Deus e não contrárias à razão. Se assim for o caso, um milagre não é mais necessário como prova delas”. [6] A rejeição a priori do milagroso por parte de Paulus talvez seja melhor vista em sua resposta à objeção: por que todo esse esforço para descartar o extraordinário como se fosse algo dentro da ordem da natureza? [7] Ele responde: para encontrar a explicação mais provável; e, acrescenta ele, a explicação mais provável é aquela em que se pode crer mais facilmente. Uma vez que, para pensadores do pós-iluminismo, os milagres deixaram de ser críveis, uma explicação natural seria sempre preferida. Quando Paulo diz ademais que a probabilidade sempre depende de um efeito poder ser derivado das causas disponíveis, [8] então, a natureza pressuposicional de seu antissobrenaturalismo fica clara. Agora a explicação mais provável é vista, por definição, como uma explicação puramente natural; daí seu empenho em descartar o milagroso.

É notável que Schleiermacher, o pai da teologia moderna, seguiu a direção de Paulo neste aspecto. Schleiermacher permaneceu racionalista com respeito à negação dos milagres e não atribuiu nenhuma importância religiosa à ressurreição de Jesus. Em suas preleções de 1832, Der Christus des Glaubens und der Jesus der Geschichte [O Cristo da fé e o Jesus da história], ele aceitou passivamente a teoria de Paulo da morte meramente aparente de Jesus, afirmando que é desimportante se a morte e ressurreição de Jesus foram reais ou aparentes. O próprio Schleiermacher cria que a ressurreição de Jesus foi apenas uma ressuscitação e que ele continuou a viver fisicamente com os discípulos por um período após o evento.

A negação da historicidade dos milagres dos evangelhos

Somente três anos após as preleções de Schleiermacher, entretanto, apareceu uma obra que desferiu o golpe de misericórdia na escola da explicação natural, além de servir para solapar o primeiro passo do procedimento de Less: Das Leben Jesu [A vida de Jesus], de David Friedrich Strauss. Em sua aplicação sistemática de explicações mitológicas ao Novo Testamento, a obra de Strauss evitou qualquer necessidade de aceitar a historicidade dos milagres dos evangelhos, sequer enquanto eventos. Strauss rejeitou as teorias da conspiração tipificadas pelo deísta Hermann Samuel Reimarus, dizendo ser características da abordagem simplista e ingênua do século XVIII a questões de crença religiosa. Em seu útil tratado Hermann Samuel Reimarus und seine Schutzschrift für die vernünftigen Verehrer Gottes (1861) [Hermann Samuel Reimarus e sua apologia aos adoradores racionais de Deus], Strauss descreve a atitude reducionista do século anterior em relação à religião revelada: “Todas as religiões positivas, sem exceção, são obras de logro: era esta a opinião que o século XVIII acalentava em seu coração, mesmo que nem sempre a pronunciasse com tanta franqueza quanto o fez Reimarus”. [9] Assim, quando quer que eventos milagrosos aparecessem nas Escrituras, eram simplesmente descartados como mentiras ou farsas perpetradas deliberadamente pelas pessoas envolvidas. Este tipo de explicação interpreta mal por inteiro a natureza do compromisso e devoção religiosos, acusa Strauss. Só o século XVIII poderia ter unido logro deliberado ao zelo religioso dos apóstolos, pois se tratavam de duas coisas incompatíveis. O século XIX considera conclusão inevitável que nenhuma religião historicamente permanente jamais foi fundada por meio do logro, mas que todas foram fundadas por pessoas que estavam mesmo convictas. O cristianismo, portanto, não pode ser desprezado como se fosse simplesmente uma farsa. Quando Reimarus diz que o cristianismo não é revelação divina, mas fraude humana, sabemos hoje que isto é um erro, que o cristianismo não é uma fraude. A rejeição da hipótese de Reimarus, contudo, não implica adotar a explicação dos sobrenaturalistas. O “Nein” de Reimarus à visão tradicional permanece “Nein”, mas seu “Ja” ao logro deve ceder a uma melhor resposta.

Essa resposta não devia ser encontrada na escola da explicação natural perfeitamente exemplificada por Paulus. O caráter elaborado e artificial de tantas dessas explicações era terrivelmente aparente e as explicações proferidas não eram mais críveis do que os milagres em si. Além disso, o sistema natural de interpretação, embora buscasse preservar a certeza histórica da narrativa, perdeu, todavia, sua verdade ideal. Por exemplo, se a transfiguração foi, como alegou Paulus, fenômeno ótico acidental e os dois homens foram ou imagens de um sonho ou simplesmente pessoas desconhecidas, qual então, pergunta Strauss, é a relevância da narrativa? Qual foi o motivo para preservar na memória da igreja uma história tão vazia de ideias e desprovida de inferência, baseada em uma ilusão? Strauss cria que a escola da explicação natural abandonara a substância para salvar a forma, ao passo que sua alternativa, ao renunciar a facticidade histórica da narrativa, resgataria e preservaria a ideia que nela permanece e que por si só constitui sua vitalidade e espírito.

Esta alternativa Strauss encontrou na interpretação mitológica dos evangelhos. De acordo com esta visão, os eventos milagrosos registrados nos evangelhos nunca ocorreram, mas são o produto de imaginação e lenda religiosas e, portanto, não requerem nenhuma explicação histórica, como supunham os sobrenaturalistas, deístas e racionalistas. Conquanto os predecessores de Strauss empregassem o conceito de mito para explicar elementos específicos nas narrativas escriturísticas, ele foi o primeiro a compor uma explicação generalizada da vida de Jesus utilizando a explicação mitológica como método hermenêutico principal. Segundo o próprio Strauss, até à época de seu escrito, mito fora aplicado às histórias da infância e ascensão da vida de Jesus, mas não à própria vida de Jesus, o que levou a uma abordagem em que “... a entrada à história evangélica se dava por meio do portal decorado do mito, e a saída lhe era semelhante, enquanto o espaço intermediário ainda era atravessado pelos caminhos tortuosos e árduos das interpretações naturais”. [10] Em Leben Jesu, Strauss buscou mostrar em detalhes como todos os eventos sobrenaturais nos evangelhos podem ser explicados como mito, lenda ou acréscimos redacionais.

Strauss alegava operar sem quaisquer pressupostos religiosos ou dogmáticos; atribuía sua neutralidade à influência de seus estudos filosóficos. Não obstante, é claro que Strauss operava, sim, com base em determinados pressupostos filosóficos (se não quisermos chamá-los de religiosos ou dogmáticos), como a impossibilidade de milagres. Enquanto panteísta reconhecido e, mais adiante em sua vida, materialista, Strauss partia, tal qual os racionalistas antes de si, do pressuposto segundo o qual milagres são em princípio impossíveis. Para Strauss, não se trata de pressuposto que requer prova; pelo contrário, afirmar que milagres são possíveis é pressuposto que requer prova. [11] Deus age imediatamente no universo apenas como um todo, mas não em qualquer parte específica; em qualquer parte específica, ele age apenas mediatamente por leis causais de todas as outras partes da natureza. Consequentemente, no que diz respeito à ressurreição, a interposição divina no curso regular da natureza é “irreconciliável com ideias ilustradas da relação de Deus com o mundo”. [12] Assim, qualquer explicação presumivelmente histórica de eventos milagrosos deve ser descartada na hora; “deveras, nenhuma noção justa da verdadeira natureza da história é possível sem uma percepção da inviolabilidade da cadeia de causas finitas e da impossibilidade de milagres”. [13] Portanto, embora Strauss rejeitasse a hermenêutica racionalista da explicação natural, sendo a favor da explicação mitológica, permaneceu racionalista em sua rejeição do milagroso.

A aplicação de Strauss da categoria de mito ao elemento milagroso nos evangelhos provou-se momento decisivo. De acordo com Schweitzer, em sua história do movimento da vida de Jesus Von Reimarus zu Wrede (1906) [De Reimarus a Wrede], o estudo crítico da vida de Jesus se enquadra em dois períodos com Strauss. “O interesse dominante no primeiro é a questão do milagre. Quais condições são possíveis entre um tratamento histórico e a aceitação de eventos sobrenaturais? Com o advento de Strauss, este problema encontrou uma solução, a saber, que estes eventos não possuem nenhum lugar legítimo na história, mas são simplesmente elementos míticos nas fontes”. [14] Já por meados da década de 1860, a questão dos milagres perdera toda sua importância, explica Schweitzer:

Isto não significa que o problema do milagre esteja resolvido. Do ponto de vista histórico, é realmente impossível resolvê-lo, visto que não somos capazes de reconstruir o processo pelo qual uma série de histórias de milagres surgiu ou pelo qual uma série de ocorrências históricas foi transformada em histórias de milagres, de modo que essas narrativas devem ficar com um ponto de interrogação contra si. O que se obteve foi apenas que a exclusão do milagre de nossa visão de história foi universalmente reconhecida como princípio da crítica, de tal maneira que o milagre não interessa mais ao historiador, positiva ou negativamente. Teólogos científicos da era presente que desejam mostrar sua “sensibilidade” pedem que não mais do que dois ou três milagrinhos lhes sejam deixados — nas histórias da infância talvez ou nas narrativas da ressurreição. E estes milagres são, ademais, tão científicos que têm no mínimo nenhuma relação com aqueles que estão no texto, mas ficam ali sem vida, miseráveis cãezinhos de brinquedo da crítica, picados pelas pulgas do racionalismo, insignificantes demais para causar qualquer dano à ciência histórica, em especial na medida em que seus donos honestamente pagam o preço por eles pela maneira como falam, escrevem e se silenciam acerca de Strauss. [15]

Até Strauss, geralmente se aceitava que os eventos em jogo de fato tinham ocorrido — tratava-se apenas de uma questão de explicar como tinham acontecido. Com Strauss, porém, os eventos milagrosos registrados nos evangelhos jamais aconteceram de verdade: as narrativas são contos a-históricos determinados por mito e lenda.

A obra de Strauss alterou completamente todo o tom e curso da teologia alemã. Ao rejeitar, por um lado, a teoria da conspiração de Reimarus e, por outro lado, a teoria da explicação natural de Paulus, e ao propor uma terceira explicação das narrativas evangélicas do ponto de vista de mito, lenda e redação, Strauss efetivamente dissolveu o dilema central do argumento da ortodoxia do século XVIII a favor dos milagres de Jesus: se é para negar os milagres, os apóstolos devem ser declarados como enganadores ou enganados, e nenhuma das duas opções é plausível. Os evangelistas passaram agora a ser vistos nem como enganadores nem como enganados; antes, posicionavam-se na extremidade de um longo processo em que os eventos originais foram amoldados por meio de influências mitológicas e lendárias. A dissolução do dilema ortodoxo não implicou logicamente que a visão sobrenaturalista fosse, portanto, falsa. Mas isto Strauss considerava não apenas ter mostrado por objeções inspiradas em Reimarus no que tange a contradições e incoerências nas narrativas, mas para si isto era meramente dado por definição em seus critérios para discernir motivos mitológicos, que eram, por sua vez, predicados na pressuposição a priori da impossibilidade de milagres. Qualquer evento que se colocasse fora da cadeia inviolável de causas e efeitos naturais era ipso facto a-histórico e, portanto, deveria ser explicado mitologicamente. Posteriormente, em Glaubenslehre [Doutrina], Strauss explica com algum pormenor die Auflösung des Wunderbegriffs [a dissolução do conceito de milagres], recontando os argumentos de Espinoza, Hume e Lessing para mostrar que o conceito agora se tornara obsoleto. [16] Foi este o legado que Strauss confiou a seus sucessores. A mesma suposição naturalista que guiou as investigações histórias de Strauss também determina, por exemplo, a obra influente de Rudolf Bultmann em nosso próprio século. [17] A abordagem de Bultmann ao Novo Testamento foi guiada, entre outros fatores, por dois pressupostos subjacentes: (1) a existência de um gnosticismo pré-cristão pleno e (2) a impossibilidade de milagres. Enquanto buscava apresentar indícios favoráveis a (1), simplesmente supunha (2). Assim como Strauss, parecia considerar a impossibilidade de milagres um pressuposto que não requer prova, e muitos estudiosos contemporâneos pareceram aceitar posição semelhante. Pesch afirma que a tarefa central da teologia dogmática hoje é mostrar como Jesus pode ser a figura central da revelação de Deus sem pressupor “um ‘modelo teísta-sobrenaturalista de revelação e mediação’, que não é mais aceitável ao nosso pensamento”. [18] Segundo Hans Frei, razões para rejeitar como se fossem a-históricos aqueles relatos que vão de encontro a nossa experiência geral de ocorrências naturais, históricas ou psicológicas “se tornaram explicação convencional dos critérios que constituem avaliação sem viés (“apressuposicional”) do que provavelmente aconteceu no passado e daquilo que não aconteceu”. [19] Uma perspectiva destas impossibilita sequer que os milagres evangélicos sejam considerados como eventos da história, tampouco que sejam assim estabelecidos.

O crisol do século XVIII

O ceticismo dos séculos passado e presente em relação a milagres adveio daquilo que Burns denominou “o grande debate acerca dos milagres” durante a controvérsia deísta do século XVII e, especialmente, do século XVIII. [20] Valeria a pena, portanto, retornar a este grande divisor a fim de redescobrir e avaliar os fundamentos racionais da rejeição do milagroso pela crítica contemporânea.

O mundo-máquina newtoniano

O contexto para o debate do século XVIII foi a cosmovisão disseminada do mecanismo newtoniano. Pela influência generalizada de Newton, a criação passara a ser considerada como um mundo-máquina regido por leis eternas e inexoráveis. De fato, pensava-se que este sistema complexo, de funcionamento harmonioso, constituía a mais óbvia prova de que Deus existe. Diderot escreveu:

Não é do metafísico que o ateísmo recebeu seu ataque mais vital [...] Se esta perigosa hipótese cambaleia no presente, a consequência é devida à física experimental. É somente nas obras de Newton, de Muschenbroeck, de Hartzoeker e de Nieuwentit que se encontraram provas satisfatórias de um reinado de inteligência soberana. Graças às obras destes grandes homens, o mundo não é mais um Deus; é uma máquina com suas rodas, seus cabos, suas roldanas, suas molas e seus pesos. [21]

Com tal imagem do mundo, não é de surpreender que milagres fossem caracterizados como violações das leis da natureza. Os mesmos indícios que apontavam para uma inteligência cósmica também serviam para promover a crença numa divindade que arquitetou a grande criação, mas que não tinha nenhum interesse pessoal nos assuntos mesquinhos dos homens. Simplesmente parecia incrível pensar que Deus interviria neste minúsculo planeta em favor de algumas pessoas vivendo na Judeia. Voltaire exemplificou esta atitude incrédula. Em artigo sobre milagres em seu Dicionário, ele afirma que milagre é, propriamente dito, algo admirável; portanto, “a estupenda ordem da natureza, a revolução de cem milhões de mundos ao redor de milhões de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, todas as coisas são milagres grandiosos e perpétuos”. [22] De acordo com o uso aceito, porém, “milagre é a violação de leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas”; [23] assim, é contraditório por si só. Como se diz, no entanto, Deus pode suspender estas leis, se assim o quiser. Por que, porém, ele desejaria desfigurar de tal maneira esta imensa máquina? Como se diz, em favor da humanidade. Mas não seria “a mais absurda de todas as extravagâncias imaginar que o infinito Ser Supremo, em favor de trezentas ou quatrocentas formiguinhas neste atomozinho de barro, perturbaria a operação do vasto maquinário que move o universo?”. [24] O Deus de Voltaire — na verdade, o Deus de todos os deístas — era o arquiteto cósmico que projetara e construíra a máquina, mas não estaria preocupado em interferir em assuntos humanos triviais. Desta perspectiva, milagres simplesmente se tornam incríveis.

Bento de Espinoza

O ataque filosófico a milagres, no entanto, antedatou Principia (1687) de Newton. Já em 1670, Bento de Espinoza, em Tractatus theologico-politicus, argumentara contra a possibilidade de milagres e seu valor probatório. [25] Ele tentou estabelecer quatro pontos: (1) nada acontece contrariamente à eterna e imutável ordem da natureza; (2) milagres não bastam para provar a existência de Deus; (3) “milagres” bíblicos são eventos naturais; e (4) a Bíblia frequentemente usa linguagem metafórica para eventos naturais, a ponto de parecerem milagrosos. Deixarei (3) e (4) para meus colegas em ciências bíblicas, mas as duas primeiras opiniões merecem exposição mais detida aqui. (1) Espinoza argumenta que tudo que Deus quer ou determina se caracteriza por necessidade e verdade eternas. Como não há nenhuma diferença entre o entendimento e a vontade divina, é o mesmo que falar que Deus conhece ou quer algo. Portanto, as leis da natureza fluem da necessidade e perfeição da natureza divina. Assim, caso ocorra algum evento contrário a estas leis, significaria que o entendimento e vontade divina estão em contradição com a natureza divina. Dizer que Deus faz algo contrário às leis da natureza é dizer que Deus faz algo contrário à sua própria natureza, o que é absurdo. Por isso, tudo que acontece flui necessariamente da eterna verdade e necessidade da natureza divina. O que se denomina milagre é meramente um evento que excede os limites do conhecimento humano acerca da lei natural. (2) Espinoza sustenta, na tradição racionalista, que a prova para a existência de Deus deve ser absolutamente certa. Se, porém, ocorressem eventos que subvertessem as leis da natureza, nada é certo e ficamos reduzidos ao ceticismo. Milagres são, portanto, contraproducentes; a maneira como estamos certos da existência de Deus é mediante a ordem imutável da natureza. Ao aceitar milagres, que quebram as leis da natureza, adverte Espinoza, criamos dúvidas sobre a existência de Deus e somos levados aos braços do ateísmo! E, de todo modo, um evento contrário às leis da natureza não garantiria a conclusão da existência de Deus: a existência de um ser menor com poder suficiente para produzir o efeito bastaria. Por último, milagre é simplesmente uma obra da natureza além da compreensão humana. Somente porque um evento não pode ser por nós explicado, com nosso conhecimento limitado das leis da natureza, não significa que Deus é a sua causa em qualquer sentido sobrenatural.

David Hume

Se Espinoza atacou a possibilidade da ocorrência de milagres, Hume atacou a possibilidade da identificação de milagres. Em seu ensaio “Dos milagres”, que constitui o décimo capítulo de sua Investigação, Hume desfere um ataque duplo contra a identificação de um milagre na forma de juízo hipotético do tipo “Mesmo que..., na verdade...”. [26] Isto é, na primeira porção do ensaio, ele argumenta contra a identificação de qualquer evento como milagre, ao mesmo tempo que faz algumas concessões; em seguida, na segunda metade, ele argumenta com base no que ele pensa ser de fato a situação. Podemos diferenciar as duas linhas de seu argumento referindo-se ao primeiro como seu argumento “em princípio” e ao segundo como seu argumento “de fato”. O sábio, assim inicia ele, torna sua crença proporcional aos indícios. Para decidir entre duas hipóteses, deve-se equilibrar os experimentos de uma em relação à outra, a fim de determinar qual é provavelmente verdadeira; caso os resultados sejam cem contra um a favor da primeira hipótese, é aposta bem segura de que a primeira seja correta. Quando os indícios tornam a conclusão praticamente certa, podemos, então, falar de uma “prova”, e o sábio dará fé plena a tal conclusão. Quando os indícios tornam uma conclusão apenas mais provável do que seu contrário, podemos falar de uma “probabilidade”, e o sábio aceitará a conclusão como verdadeira com grau de confiança proporcional à probabilidade. É assim com o testemunho humano. Pesam-se os relatos alheios de acordo com a sua conformidade aos resultados normais de observação e experiência; assim, quanto mais anormal for o fato relatado, menos crível é o testemunho. Pois bem, argumenta Hume, mesmo que admitamos que o testemunho de um milagre específico redunde em prova completa, é ainda em princípio impossível identificar o evento como milagre. Em oposição a essa prova se coloca uma prova igualmente completa — a saber, os indícios para as leis imutáveis da natureza — de que o evento em questão não se trata de milagre. “Milagre é violação das leis da natureza e, como a experiência firme e inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, pela própria natureza do fato, é tão plena quanto qualquer argumento a partir da experiência se possa imaginar”. [27] Assim, o testemunho da experiência uniforme da humanidade fica de um lado da balança contra o testemunho, em qualquer caso específico, de que uma transgressão daquela experiência tenha ocorrido. Por isso, coloca-se prova contra prova e a balança fica equilibrada igualmente. Uma vez que os indícios não se inclinam na outra direção, o sábio não pode crer em milagres com nenhum grau de confiança. Deveras, continua Hume, nenhum testemunho poderia estabelecer que um milagre aconteceu, a menos que a falsidade do testemunho fosse milagre ainda maior do que o fato que ele busca provar. E, mesmo assim, a força dos indícios seria apenas a diferença entre os dois.

Na realidade, porém, os indícios para milagres não redundam em prova completa. Aliás, os indícios são tão pobres que não redundam sequer em probabilidade. Logo, o peso decisivo recai do lado da balança que contém a prova completa para a regularidade da natureza, peso tão carregado que nenhum indício para um suposto milagre esperaria servir-lhe de contrapeso. Hume fornece quatro razões — catálogo das objeções deístas típicas aos milagres — do porquê, de fato, os indícios para milagres serem tão desprezíveis: (1) Nenhum milagre na história é atestado por número suficiente de homens de bom senso e educação, de integridade impecável de modo a excluir o logro, de tamanha posição e reputação que teriam muito a perder ao mentir, e de maneira pública o bastante. (2) As pessoas anseiam pelo milagroso e acreditarão em histórias absurdas, como a multidão de falsos milagres mostra. (3) Milagres apenas ocorrem entre povos bárbaros. (4) Todas as religiões têm seus próprios milagres e, portanto, anulam-se umas às outras por apoiarem doutrinas irreconciliáveis. Hume menciona três exemplos: a cura de Vespasiano de dois homens conforme relatada por Tácito, uma cura relatada pelo cardeal de Retz e as curas sobre o túmulo do abade de Paris. Os indícios para milagres, portanto, sequer começam a se aproximar à prova da inviolabilidade das leis da natureza. Hume conclui que milagres nunca podem ser o fundamento de qualquer sistema de religião.

A defesa dos milagres

Defensores ortodoxos não foram lassos em suas respostas às objeções de Espinoza e Hume, bem como à cosmovisão popular newtoniana em geral. Consideremos primeiramente algumas das respostas aos argumentos de Espinoza contra a impossibilidade de milagres e, em seguida, algumas das respostas à argumentação de Hume contra a identificação de milagres.

1. Resposta a Espinoza

Em Sentimens de quelques théologiens (1685) [Sentimentos de alguns teólogos], Jean Le Clerc buscou apresentar uma apologética do cristianismo que fosse invulnerável às críticas de Espinoza. Ele não somente tentou responder à crítica bíblica de Espinoza, mas também a suas objeções filosóficas. Contra estas, Le Clerc sustenta que os indícios empíricos para os milagres e a ressurreição de Cristo são mais claros e evidentemente verdadeiros do que o raciocínio abstrato de Espinoza. [28] O ponto central de Le Clerc pareceria ser que a coluna dessa especulação filosófica a priori simplesmente se quebra sob o peso dos indícios. Para Le Clerc, o argumento empírico tem primazia sobre o argumento especulativo. Ele também rebate os princípios específicos de Espinoza. Contra a alegação de que milagres são puramente eventos naturais, Le Clerc insiste que ninguém ficará convencido de que a ressurreição e ascensão de Jesus poderiam acontecer de maneira tão natural quanto o nascimento de um homem. Tampouco é convincente dizer que os milagres de Jesus poderiam ser o resultado de leis naturais desconhecidas, continua ele, pois por que, então, não são produzidos mais destes efeitos e como é que no mesmíssimo instante em que Jesus ordenou a um paralítico que andasse, “as leis da natureza (a nós desconhecidas) estavam preparadas e prontas para fazer que... o paralítico andasse”? [29] As duas considerações mostram que os fatos milagrosos do evangelho, que podem ser estabelecidos historicamente, são, sim, de origem divina.

Análise considerável foi trazida ao conceito de milagre por Samuel Clarke em suas preleções Boyle: A Discourse concerning the Unchangeable Obligations of Natural Religion and the Truth Christian Revelation (1705) [Discurso acerca das obrigações imutáveis da religião natural e da verdade da revelação cristã]. Ele indica que, para o poder de Deus, todos os eventos — milagrosos ou não — são iguais. Ademais, é possível que seres criados, incluindo anjos e demônios, tenham o poder de produzir qualquer evento, com a única exceção de creatio ex nihilo[30] Refletindo influência newtoniana, Clarke afirma que a matéria tem somente o poder de continuar em seu estado presente, ficar em repouso ou movimento. Tudo que é feito no mundo é feito ou por Deus ou por seres inteligentes criados. As chamadas forças naturais da matéria, como a gravidade, são, propriamente ditas, o efeito da ação de Deus na matéria a cada momento. A implicação disto é que o suposto "curso da natureza” se trata de ficção; o que discernimos como o curso da natureza não é nada além da vontade de Deus, produzindo determinados efeitos de maneira contínua e uniforme. [31] Assim, um milagre não é contra o curso da natureza, que na realidade não existe, a não ser à medida que se trata de evento incomum que Deus realiza. [32] Portanto, as “obras” regulares da natureza provam o ser e atributos de Deus, e milagres provam a interposição de Deus na ordem regular em que ele age. [33] Pois bem, a partir do milagre em si enquanto evento isolado, é impossível determinar se foi realizado imediatamente por Deus ou por um anjo ou por um espírito demoníaco. Clarke insiste que milagres feitos por espíritos demoníacos são milagres “verdadeiros e reais” que ocorrem porque Deus não refreia a ação do espírito demoníaco naquele instante. [34] O meio de distinguir entre milagres demoníacos e milagres operados mediata ou imediatamente por Deus é o contexto doutrinal em que o milagre ocorre:

Se a doutrina atestada por milagres for em si mesma ímpia ou manifestamente tenda a promover o vício, sem dúvida alguma os milagres... não são nem operados pelo próprio Deus nem por sua incumbência; pois nosso conhecimento natural dos atributos de Deus e da diferença necessária entre bem e mal é imensamente de maior força para provar que qualquer doutrina dessas seja falsa do que a capacidade de qualquer milagre no mundo prová-la verdadeira... [35]

Se a doutrina em si for neutra, mas outra pessoa realizar maiores milagres dentro de contexto de doutrina contrário à primeira, estes últimos devem ser aceitos como milagres de origem divina. [36] Assim, a definição teológica correta de milagre é a seguinte: “obra efetuada de maneira incomum ou diferente do método normal e regular da Providência, pela interposição do próprio Deus ou de algum agente superior ao homem, para a prova ou indício de alguma doutrina em particular ou para atestação da autoridade de alguma pessoa em particular”. [37] A relação entre doutrina e milagre é que milagre prova que um poder superior está envolvido e o contexto doutrina do milagre nos permite discernir a fonte do milagre como Deus ou Satanás. Assim, os milagres provam a doutrina, mas “... ao menos a indiferença da doutrina é condição ou circunstância necessária, sem a qual a doutrina não é capaz de ser provada por quaisquer milagres”. [38] Quando aplicado aos milagres de Jesus, este critério prova que Jesus era “um mestre enviado por Deus” e que ele tinha “uma incumbência divina”. [39]

No Traité de la vérité de la religion chrétienne (1730-88) [Tratado da verdade da religião cristã], Jacob Vernet também procura responder à objeção de que qualquer milagre seja impossível, por ser contrário à ordem da natureza. [40] Ele define milagre como “obra notável que está fora do curso normal da natureza e que é feita pela vontade do Deus todo-poderoso, de modo que suas testemunhas a consideram extraordinária e sobrenatural”. [41] Vernet não nega, como o faz Clarke, que exista um curso da natureza, mas insiste que o suposto curso ou ordem da natureza é, na verdade, composto de estados incidentais de eventos, e não de estados necessários ou essenciais. Dependem da vontade de Deus, e é apenas a constante e uniforme progressão do curso normal da natureza que nos leva a pensar que seja invariável. Deus não muda o curso da natureza completamente, mas pode fazer exceções às regras gerais quando o julga importante. Esses milagres servem para mostrar que o curso da natureza “não é o feito de necessidade cega, mas de uma Causa livre que o interrompe e suspende quando lhe apraz”. [42] Poder-se-ia também objetar que os milagres são o resultado de operação ainda não descoberta da própria natureza. [43] Vernet redargui que, quando os milagres são diversos e numerosos, esta possibilidade é minimizada, porque é pouco possível que todas essas operações desconhecidas e extraordinárias ocorram ao mesmo tempo. Talvez um único milagre isolado possa ser assim descartado, mas não uma série de milagres de diferentes tipos. Em La religion chrétienne prouvée par les faits (1740) [A religião cristã provada pelos fatos], de Claude François Houtteville, o abade argumenta contra Espinoza que milagres são possíveis. [44] Ele define milagre como “notável ação superior a todo poder finito” ou, mais vulgarmente, como “evento singular produzido fora da cadeia de causas naturais”. [45] Dada a existência de Deus, vê-se imediatamente que milagres são possíveis, pois um Ser perfeito que criou o mundo também o conserva em existência, e todas as leis de sua operação são dirigidas por sua mão soberana. Contra a acusação de Espinoza segundo a qual milagres são impossíveis, pois a lei natural é o decreto necessário da natureza de Deus e a natureza de Deus é imutável, Houtteville replica que a lei natural não é necessária, que Deus é livre para estabelecer quaisquer leis que quiser. Além disso, Deus pode mudar seus decretos quando assim desejar. E, mesmo que ele não o pudesse, milagres poderiam ser parto do plano e decreto eterno de Deus para o universo, tanto quanto leis naturais, de maneira que a ocorrência de um milagre de forma alguma representa uma mudança da ideia ou decreto por parte de Deus. Houtteville até sugere que milagres não sejam contrários à natureza, mas apenas àquilo que conhecemos da natureza. Da perspectiva de Deus, talvez se conformem com determinadas leis a nós desconhecidas.

A resposta ortodoxa às objeções de Espinoza foi, portanto, bastante multifacetada. As objeções de Hume também suscitaram respostas variadas.

2. Resposta a Hume

Embora tenha sido contra os ataques de Woolston a milagres que Thomas Sherlock escreveu Tryal of the Witnesses of the Resurrection of Jesus (1729) [Julgamento das testemunhas da ressurreição de Jesus], o parecer para Woolston apresenta um argumento contra milagres que antecipa o de Hume. O advogado de Woolston defende que, como a ressurreição viola o curso da natureza, nenhum testemunho humano poderia estabelecê-la, visto que tem todo o testemunho da natureza contra si. A isto Sherlock redargui: (1) Se o testemunho é aceito somente quando a questão é considerada possível de acordo com nossas concepções, muitos fatos naturais seriam excluídos. [46] Por exemplo, um homem que vive em clima quente jamais acreditaria, se fosse o caso, no testemunho alheio de que a água possa existir em estado sólido como gelo. [47] (2) A ressurreição é simplesmente uma questão de percepção sensorial. [48] Se encontrássemos um homem afirmando que já esteve morto, andaríamos suspeitos. Mas de quê? Não que ele esteja vivo agora, pois isto contradiz todos nossos sentidos, mas que ele já tenha estado morto. Diríamos, porém, que é impossível provar mediante testemunho humano que o homem morreu um ano atrás? Indícios deste tipo são aceitos em qualquer corte legal. Por outro lado, se víssemos um homem executado e, posteriormente, ouvíssemos que ele voltara à vida, suspeitaríamos não de sua morte, mas de seu retorno à vida. Diríamos, porém, que é impossível ao testemunho humano provar que alguém esteja vivo? A razão de nossa suspeita nestes casos não é porque a questão em si não admite ser provada por indícios, mas somente porque estamos mais inclinados a acreditar nos nossos próprios sentidos do que em relatos alheios que vão de encontro a nossas opiniões preconcebidas do que pode e não pode acontecer. Assim, considerada como fato, a ressurreição não requer nenhuma capacidade a mais nas testemunhas além da capacidade de distinguir entre um morto e um vivo. Sherlock admite que, nestes casos milagrosos, talvez requeiramos mais indícios do que o normal, mas é absurdo dizer que casos assim não permitam indícios. (3) A ressurreição não contradiz nem a justa razão nem as leis da natureza. [49] Sherlock toma uma terceira via daquela de Clarke e Vernet. O chamado curso da natureza advém dos preconceitos e imaginações dos homens. Nossos sentidos nos dizem o que o curso normal das coisas é, mas vamos além de nossos sentidos quando concluímos que não pode ser diferente. O curso uniforme das coisas vai contra a ressurreição, mas isto não a prova absolutamente impossível. O mesmo Poder que deu vida à matéria morta a princípio pode dá-la a um corpo morto novamente; esta façanha não é maior do que aquela.

Gottfried Less, em Wahrheit der christlichen Religion (1758), discute extensamente as objeções de Hume a milagres. Less define milagre como obra além do poder de todas as criaturas. [50]Obviamente, milagre só o é dentro de um contexto; a cura em si, por exemplo, não é necessariamente milagre, a menos que nenhum meio natural tenha sido empregado. Existem também dois tipos de milagres: (1) milagres de primeiro grau, que são operados pelo poder imediato de Deus e (2) milagres de segundo grau, que estão acima de qualquer poder humano, mas são operados por seres espirituais finitos, como anjos. Milagres de primeiro grau são incapazes de ser provados, pois jamais sabemos se um ser espiritual finito não estaria em operação. Por isso, pode-se provar que apenas milagres de segundo grau tenham ocorrido.

Assim entendidos, milagres são possíveis. [51] Como Deus é o Senhor da natureza e pode fazer que eventos aconteçam, segue que milagres são fisicamente possíveis. E, como milagres são parte do plano eterno de Deus para confirmar seu ensino, são também moralmente possíveis. Mas será que os milagres evangélicos ocorreram? Embora Hume desconte o testemunho dos apóstolos, por serem homens incultos, é claro que, para provar simplesmente que algo tenha acontecido (por exemplo, a cura de uma doença por pura ordem verbal), não é preciso ser nenhum acadêmico, mas simplesmente ter bons cinco sentidos e senso comum. De fato, as testemunhas do Novo Testamento cumprem até as condições de Hume para credibilidade de relatos de milagres. [52] Hume, portanto, deveria admitir a certeza histórica dos milagres evangélicos enquanto eventos.

Mas será que os eventos foram milagres? Less, então, dedica-se à refutação das objeções de Hume ao estabelecimento de milagres mediante testemunho histórico. [53] O argumento principal de Hume é que o testemunho de milagres tem a experiência do mundo e dos séculos contra si. Em resposta, Less argumenta: (1) Como a natureza é a ordem de Deus livremente desejada, milagre é justamente tão possível quanto qualquer evento. Logo, é justamente tão crível quanto qualquer evento. (2) Testemunho de um evento não pode ser refutado por experiências e observações. Do contrário, nunca seríamos justificados em crer em coisa alguma fora de nossa experiência presente; nenhuma nova descoberta seria possível. (3) Não há nenhuma contradição entre os milagres cristãos e a experiência. Milagres são eventos distintos (contraria) da experiência em geral, mas não eventos contraditórios (contradictoria) à experiência em geral. [54] A contradição ao testemunho de que, sob o reinado de Tibério César, Jesus ressuscitou algumas pessoas dentre os mortos e ele mesmo ressuscitou três dias após sua morte deve necessariamente estar em oposição exata a esta afirmação, a saber, que Jesus jamais ressuscitou ninguém dentre os mortos e que ele mesmo jamais ressuscitou. Esta última afirmação tem de ser provada para destruir o testemunho evangélico. É pouco suficiente alegar que a experiência em geral diz que mortos não ressuscitam, pois com isto o testemunho cristão está de pleno acordo. Somente quando se prova que exatamente o oposto é verdadeiro, pode-se dizer que o testemunho cristão contradiz a experiência. As outras objeções de Hume são facilmente descartadas: (1) Nenhum milagre tem número suficiente de testemunhas. Isto é falso com relação aos milagres evangélicos, pois foram realizados publicamente. (2) As pessoas tendem a crer e relatar histórias milagrosas sem escrutínio adequado. Isto apenas mostra que nosso escrutínio de tais histórias deve ser cauteloso e cuidadoso. (3) Milagres se originam entre povos ignorantes e bárbaros. Não se pode dizer isto para descrever os milagres de Jesus, que aconteceram na civilização romana, na capital dos judeus. (4) Todas as religiões têm seus milagres. Isto, na realidade, não é verdade, pois nenhuma outra religião diz provar seus ensinos por meio de milagres e não existem milagres religiosos fora dos milagres judaico-cristãos. Less, em seguida, examina em detalhe considerável os milagres que, segundo Hume alega, têm paridade com os milagres cristãos, particularmente os milagres sobre o túmulo do abade de Paris. [55] Em todos estes casos, os indícios de que milagres tenham ocorrido nunca se aproximam do padrão dos indícios para os milagres evangélicos. Logo, nenhuma das objeções de Hume consegue subverter os indícios para os milagres evangélicos.

A View of the Evidences of Christianity (1794) [Exame das provas do cristianismo], de William Paley, é essencialmente uma investigação erudita dos indícios históricos a favor do cristianismo a partir de milagres, sendo que as considerações preliminares de Paley à sua investigação têm como objetivo uma refutação generalizada das objeções de Hume. Paley deixa claro desde o começo que pressupõe a existência de Deus provada pelo argumento teleológico. [56] Dada a existência de Deus, milagres não são incríveis. [57] Por que se deveria pensar que é incrível que Deus quisesse se revelar no mundo natural ao homem e como isto se daria sem envolver um elemento milagroso? Qualquer improbabilidade antecedente em milagres oferecidos em apoio à revelação não é tal que o testemunho histórico sólido não a possa superar. Isto, diz Paley, basta para responder à “objeção moderna a milagres”, que ele posteriormente identifica com aquela de David Hume. [58] A pressuposição do argumento de Hume, continua ele, é que “... é contrário à experiência que um milagre seja verdadeiro, mas não é contrário à experiência que o testemunho seja falso”. [59] Como Less, Paley defende que se pode dizer que a narrativa de um fato é contrária à experiência somente se, ao estar no momento e local em questão, nós víssemos que o suposto evento de fato não aconteceu. O que Hume realmente quer dizer com “contrário à experiência” é simplesmente a ausência de experiências semelhantes. (Dizer que um milagre é contrário à experiência universal é, evidentemente, forçado.) Neste caso, porém, a improbabilidade oriunda da nossa ausência de experiências semelhantes é igual à probabilidade de que, dada a verdade do evento, deveríamos também ter experiências semelhantes. Suponha, contudo, que o cristianismo tenha sido inaugurado com milagres; qual probabilidade existiria, então, para que nós, hoje, também tivéssemos tais experiências? ‘É claro que qualquer probabilidade deste tipo é desprezível; consequentemente, qualquer improbabilidade oriunda de nossa ausência de tal experiência também é desprezível. Milagre não é como um experimento científico capaz de ser incluído em uma lei e repetido, pois, assim, não seria contrário à natureza enquanto tal e deixaria de ser milagre. A objeção ao milagre a partir da ausência de experiências semelhantes pressupõe ou (1) que o curso da natureza é invariável ou (2) que, se pode ser variado, tais variações devem ser frequentes e gerais. Se, porém, o curso da natureza for a agência de um Ser inteligente, não deveríamos esperar que ele interrompa sua ordem designada só raramente, em ocasiões de grande importância? Quanto à causa do milagre, é simplesmente a volição da divindade, de cuja existência e poder temos prova independente. Quanto a determinar se um milagre de fato ocorreu, Paley considera justa a explicação da questão conforme Hume: o que, em determinado caso, é mais provável, que o milagre seja verdadeiro ou que o testemunho seja falso? Ao dizê-lo, porém, acrescenta Paley, não devemos tirar o milagre do contexto teísta e histórico em que ocorreu, nem tampouco podemos ignorar a questão de como surgiram os indícios e o testemunho. O real problema com o ceticismo de Hume fica claro quando o aplicamos a um caso paradigmático: suponha que doze homens, que sei serem honestos e razoáveis, afirmassem que viram pessoalmente um evento milagroso em que foi impossível que tenham sido ludibriados; além disso, o governador os chamou para um inquérito e lhes disse que, se não confessassem a impostura, seriam pendurados em uma forca; e todos caminharam para a morte, em vez de dizer que estavam mentindo. Segundo Hume, eu ainda assim não deveria acreditar neles. Tal incredulidade, porém, diz Paley, não seria defendida por nenhum cético no mundo.

Paley sustenta contra o argumento “de fato” de Hume que nenhum paralelo aos milagres evangélicos existe na história. [60] Paley examina detidamente os três exemplos de Hume e conclui que é despropositado comparar estes casos com os indícios para os milagres dos evangelhos. [61] Em nenhum daqueles casos é inequívoco que um milagre tenha ocorrido. Mesmo em outros exemplos sem explicação, ainda é verdade que não existe nenhum indício de que as testemunhas tenham passado suas vidas em labuta, perigo e sofrimento, experimentados voluntariamente para atestar a verdade dos relatos que transmitiam. Portanto, a circunstância da histórica evangélica é sem paralelo.

Os argumentos de Espinoza para a impossibilidade de milagres e os argumentos de Hume contra a identificação de milagres foram, pois, contestados a partir de diversos pontos de vista. É digno de nota que praticamente todos os pensadores cristãos pressupunham a existência de Deus em seus argumentos. Não se tratava de uma discussão de teísmo versus ateísmo, mas de teísmo cristão versus deísmo. Neste sentido, não buscaram fundar um sistema de religião baseado em milagres; antes, defendiam que, dada a existência de Deus, milagres são possíveis e nenhuma barreira a priori existe para a descoberta de milagres reais com base no testemunho histórico.

Avaliação do debate

Lei natural e milagres

Vale lembrar que a cosmovisão que formou o contexto da controvérsia deísta era um modelo do universo como mundo-máquina newtoniano, limitando até as mãos de Deus. Uma visão tão rígida da lei natural é, no entanto, insustentável. Lei natural é entendida hoje essencialmente como descrição, e não prescrição. Isto não significa que não pode servir como base para predição, pois ela assim o faz; porém, nossa formulação de uma lei natural jamais é tão certa a ponto de estar além da reformulação sob a força de fatos observados. Assim, não se pode excluir um evento simplesmente porque não concorda com o padrão regular de eventos. O avanço da física moderna por cima do mundo-máquina newtoniano não significa que a lei natural não existe, mas que nossa formulação a seu respeito não é absolutamente final. Afinal, mesmo a física quântica não pretende afirmar que matéria e energia não possuem certas propriedades, de modo que tudo e qualquer coisa possam acontecer; mesmo a indeterminação ocorre dentro de limites estatísticos e diz respeito apenas ao nível microscópico. No nível macroscópico, prevalecem leis naturais firmes. [62] O conhecimento destas propriedades e leis, todavia, deriva-se e baseia-se na experiência. As leis da natureza não são, portanto, “leis” no sentido rígido e prescritivo, mas generalizações indutivas.

Aparentemente, isto traria algum consolo ao crente moderno em milagres, pois agora ele pode argumentar que não se pode descartar a priori o fato de que determinado evento ocorreu que não se conforma à lei natural conhecida, visto que nossa formulação da lei natural nunca é final e, por isso, deve dar conta do fato em questão. Parece-me, contudo, que, conquanto esta compreensão mais descritiva da lei natural reabra a porta da possibilidade a alguns eventos anômalos no mundo, não ajuda muito a resolver a questão dos milagres. A vantagem obtida é que não se pode descartar a ocorrência de determinado evento a priori, mas os indícios a seu favor devem ser ponderados. O defensor de milagres, então, ao menos adquiriu voz ativa. Ainda assim, opera-se sob o pressuposto, aparentemente, de que, mesmo que o evento realmente tenha ido de encontro à lei natural, seria impossível que ele tivesse ocorrido. O defensor de milagres apela para o fato de que nossas leis naturais são apenas generalizações indutivas e, portanto, jamais incontestáveis, a fim de conquistar aceitação para seu evento anômalo; porém, presumivelmente, se uma mente onisciente soubesse com certeza as formulações precisas das leis naturais que descrevem nosso universo, ele saberia a priori se o evento era ou não era realmente possível, uma vez que uma verdadeira lei da natureza não poderia ser violada.

Como argumenta Bilynskyj, quer se adote uma teoria de regularidade da lei natural (segundo a qual leis são simplesmente descritivas de eventos e não possuem nenhuma qualidade modal especial), quer uma teoria necessitária (segundo a qual leis naturais não são puramente descritivas de eventos, mas possuem um tipo especial de modalidade que determina necessidade/possibilidade nômica), ainda assim, enquanto se concebem leis naturais como generalizações indutivas universais, a noção de “violação de uma lei da natureza” é incoerente. [63] Isto porque, pela teoria da regularidade, uma vez que uma lei é descrição generalizada de tudo que ocorrer, segue que um evento que ocorrer não pode violar uma lei. E, pela teoria necessitária, uma vez que leis são generalizações universais que afirmam o que é fisicamente necessário, a violação de uma lei não pode ocorrer, se for para a generalização permanecer verdadeiramente universal. Enquanto leis são concebidas como generalizações universais, é logicamente impossível haver uma violação de uma verdadeira lei da natureza.

Suponha que se tente resgatar a noção de “violação” ao introduzir na lei certas condições ceteris paribus, por exemplo, que a lei se sustenta somente se (1) não existe nenhuma outra força natural causalmente relevante interferindo ou (2) não existe nenhuma outra força natural ou sobrenatural causalmente relevante interferindo. Pois bem, obviamente, (1) não fará nenhuma mágica, pois, mesmo que não houvesse nenhuma força natural interferindo, os eventos preditos pela lei talvez não ocorressem, porque Deus interferiria. Consequentemente, a suposta lei, enquanto generalização supostamente universal, não seria verdadeira e, assim, uma lei da natureza não seria violada, caso Deus interferisse. Mas, se, conforme (2) sugere, incluirmos forças sobrenaturais entre condições ceteris paribus, é igualmente impossível violar a lei. Agora, a afirmação da lei em si inclui a condição de que aquilo que a lei prediz ocorrerá somente se Deus não intervir, de tal maneira que, se ele o fizer, a lei não será violada. Consequentemente, enquanto se interpretam as leis naturais como generalizações universais sobre eventos, é incoerente falar de milagres como “violações” de tais leis.

O desfecho da discussão de Bilynskyj é que ou leis naturais não deveriam ser interpretadas como generalizações universais sobre eventos ou que milagres não deveriam ser caracterizados como violações das leis da natureza. Ele opta pela primeira alternativa, defendendo que leis da natureza dizem realmente respeito às propriedades disposicionais de coisas com base nas espécies de coisas que elas são. [64] Ele observa que a maioria das leis hoje, quando tomadas como generalizações universais, é literalmente inverdadeira. Devem incluir certas cláusulas ceteris paribus sobre condições que raramente ou talvez nunca se mantenham, de modo que leis se tornam condicionais subjuntivas em relação ao que ocorreria sob determinadas condições idealizadas. Isto significa, porém, que leis são verdadeiras hipóteses sem nenhuma aplicação ao mundo real. Ademais, se leis são meramente generalizações descritivas, elas na verdade não explicam nada; em vez de dizer por que alguns eventos ocorrem, elas servem apenas para nos dizer como as coisas são. Bilynskyj, portanto, propõe que leis naturais deveriam ser formuladas como afirmações singulares acerca de certos tipos de coisas e suas propriedades disposicionais: coisas do tipo A têm uma disposição para manifestar a qualidade F em condições C, em virtude de serem de natureza N[65] Leis podem ser afirmadas, entretanto, como disposições universais — por exemplo, “todo potássio tem a disposição de inflamar quando exposto ao oxigênio”. Por este entendimento, afirmar que um evento é fisicamente impossível não significa dizer que se trata de violação de uma lei da natureza, uma vez que leis disposicionais não são violadas quando o comportamento predisposto não ocorre; antes, um evento F não é produzido em tempo t pelas potências (disposições) dos agentes naturais que são causalmente relevantes a F em t[66] Da mesma forma, milagre é ato de Deus fisicamente impossível e religiosamente significativo. [67] Na versão de Bilynskyj da forma apropriada das leis naturais, então, milagres vêm a ser fisicamente impossíveis, mas, ainda assim, não vêm a ser violações destas leis.

Simpatizo muito com o entendimento de Bilynskyj acerca da lei natural e impossibilidade física. A fim de não criar obstáculos desnecessários, contudo, o defensor de milagres talvez se pergunte se não seria possível reter a teoria necessitária convencional de leis naturais como generalizações universais, enquanto se rejeita a antiga caracterização de milagres como “violações das leis da natureza”, favorecendo, antes, a caracterização de milagres como “eventos que ficam fora da capacidade produtiva da natureza”. Isto é, por que não se pode adotar uma teoria necessitária da lei natural segundo a qual leis contêm condições ceteris paribus excludentes da interferência de forças tanto naturais quanto sobrenaturais e sustentar que milagre não é, portanto, violação de uma lei da natureza, mas evento que não pode ser explicado totalmente com referência a forças naturais relevantes? Leis naturais não são violadas por tais eventos, pois afirmam o que ocorrerá somente se Deus não intervir; não obstante, os eventos são ainda naturalmente impossíveis, porque as forças causais naturais relevantes não bastam para produzir o evento. As objeções de Bilynskyj a este ponto de vista não parecem insuperáveis. [68] Ele pensa que, por este ponto de vista, fica difícil distinguir entre milagres e a providência geral de Deus, uma vez que, de acordo com esta última doutrina, todo evento tem, em certo sentido, uma causa sobrenatural. Este receio não parece intransponível, no entanto, pois seria possível interpretar a providência de Deus da forma como Bilynskyj o faz — como a conservação divina de (e, pode-se acrescentar, cooperação com) todas as causas e efeitos secundários em existência —, enquanto se reserva apenas sua atividade causal imediata e cooperadora no mundo à inclusão nas condições ceteris paribus de uma lei. Bilynskyj também objeta que a impossibilidade física do milagre é a razão por que lhe atribuímos causação sobrenatural, e não vice-versa. Definir impossibilidade física do ponto de vista da causação sobrenatural frustra a motivação para manter o conceito de impossibilidade física, para começo de conversa. Minha sugestão, pois, não é definir impossibilidade física do ponto de vista da causação sobrenatural, mas, como o faz o próprio Bilynskyj, do ponto de vista do que não pode ser produzido totalmente por causas naturais. Pode-se argumentar que algum evento E não é violação de uma lei natural, mas que E é naturalmente impossível. Logo, requer causa sobrenatural. Parece-me, portanto, que, mesmo pela teoria necessitária da lei natural, podemos nos livrar da noção incoerente de “violação das leis da natureza” e reter o conceito do naturalmente impossível como a caracterização apropriada do milagre.

Assim, ainda que se tenha ganhado uma vantagem inicial pela interpretação das leis naturais como descritivas, e não prescritivas, tal vantagem se esvai, a menos que se abandone a caracterização incoerente de milagre como “violação de uma lei da natureza” e se adote, por sua vez, a noção de evento que é naturalmente impossível. Pois bem, a questão a ser feita é como um evento poderia ocorrer, estando fora da capacidade produtiva de causas naturais. Parece-me em vão responder com Clarke que a matéria não tem nenhuma propriedade e que o padrão de eventos é simplesmente o agir de Deus com coerência, pois, contrariamente à afirmação dele, a física mantém, sim, que a matéria possui certas propriedades e que certas forças, como gravidade e eletromagnetismo, são forças operantes reais no mundo. Bilynskyj aponta que a visão de Clarke acarreta um ocasionalismo radical, segundo o qual fogo na verdade não queima, nem água extingue, o que vai fortemente de encontro ao senso comum. [69] Tampouco parece útil responder com Sherlock e Houtteville que a natureza talvez contenha em si mesma o poder de produzir eventos contrários à sua operação normal, pois isto não pareceria ser o caso quando as propriedades de matéria e energia são conhecidas o bastante para descartar em grau razoavelmente alto de certeza a ocorrência do evento em questão. Ademais, embora isto talvez assegure a possibilidade do evento, de modo a permitir investigação histórica, ao mesmo tempo reduz o evento a um capricho da natureza, o resultado de puro acaso, e não um ato de Deus. Parece mais razoável concordar com a ciência moderna que eventos como a multiplicação dos pães para os 5000, a purificação do leproso e a ressurreição de Jesus realmente ficam fora da capacidade das causas naturais.

Aceitando-se isto, o que, então, foi provado? Tudo que o cientista pode de forma concebível ter o direito de dizer é que um evento desses é naturalmente impossível. Com esta conclusão o defensor de milagres pode prontamente concordar. Não devemos confundir as esferas de possibilidade lógica e natural. Será que a ocorrência de um milagre é logicamente impossível? Não, pois um evento assim não envolve nenhuma contradição lógica. Será que a ocorrência é naturalmente impossível? Sim, pois não pode ser produzida por causas naturais; sim, trata-se de uma tautologia, uma vez que ficar fora da capacidade produtiva de causas naturais é ser naturalmente impossível.

Fica ainda esta questão: o que poderia de forma concebível fazer dos milagres não apenas logicamente possível, mas real e historicamente possíveis? É óbvio que a resposta é o Deus pessoal do teísmo. Se existe um Deus pessoal, ele serve como a causa transcendente para produzir eventos no universo que são incapazes de ser produzidos por causas dentro do universo (ou seja, eventos que são naturalmente impossíveis). É a este Deus pessoal e transcendente que os defensores ortodoxos de milagres recorreram. Dado um Deus que conserva o mundo em existência momento a momento (Vernet, Houtteville), que é onipotente (Clarke) e livre para agir como quiser (Vernet, Less), os pensadores ortodoxos parecem ser totalmente justificados em afirmar que milagres são realmente possíveis. A questão é se, dado um Deus assim, milagres são possíveis, e a resposta parece ser, obviamente, sim. Deve-se lembrar que mesmo seus oponentes deístas não contestaram a existência de Deus, e Clarke e Paley propuseram defesas elaboradas do teísmo. Mais do que isto: se a existência de um Deus assim é sequer possível, deve-se, pois, estar aberto à possibilidade histórica de milagres. Somente o ateu pode negar a possibilidade histórica de milagres, pois até o agnóstico deve admitir que, se é possível que um Deus transcendente e pessoal exista, é, então, igualmente possível que Ele tenha agido no mundo. Consequentemente, parece que os protagonistas ortodoxos no debate clássico argumentaram, em linhas gerais, de forma correta contra os oponentes newtonianos e que sua resposta só foi reforçada pela compreensão contemporânea da lei natural.

Espinoza

1. Primeira objeção

Em relação às objeções de Espinoza a milagres, os pensadores ortodoxos parecem ter mais uma vez argumentado de forma convincente. Atentando para sua primeira objeção — de que nada acontece contrariamente à ordem eterna e imutável da natureza —, deve-se lembrar que o sistema de Espinoza é panteístico, no qual Deus e natureza são termos intercambiáveis. Quando temos isto em mente, não é nem um pouco surpreendente que ele tenha argumentado contra milagres com base na ordem imutável da natureza, pois, não havendo nenhuma distinção ontológica entre Deus e o mundo, violação das leis da natureza é violação do ser de Deus. Mas, é claro, a questão não é se milagres são possíveis em fundamento panteístico, mas se eles são possíveis em fundamento teístico. Se Deus é pessoal e ontologicamente distinto do mundo, parece não haver nenhuma razão para que sequer uma total alteração das leis da natureza viesse a afetar de alguma maneira o ser de Deus. Pareceria não haver nenhuma razão para que Deus não pudesse ter estabelecido um conjunto diferente de leis para este universo, nem para que ele não pudesse agora mudá-las. Vernet argumentou corretamente contra Espinoza que as leis da natureza são desejadas livremente por Deus e, portanto, são sujeitas a mudança. Contrariamente a Espinoza, as propriedades da matéria e energia não fluem do ser de Deus com necessidade inexorável, mas são o resultado de sua escolha. Consequentemente, ele não viola sua própria natureza, caso escolha produzir um evento no mundo que não é o resultado das causas imanentes em operação no universo. Houtteville e Less também argumentaram contra Espinoza que, se Deus quisesse desde a eternidade produzir um milagre em algum instante no tempo, não há nenhuma mudança em Deus, quer em seu ser, quer em seus decretos. Assim, a objeção de Espinoza a milagres com base na imutabilidade da natureza depende do sistema do panteísmo.

2. Segunda objeção

A segunda objeção de Espinoza, relembrando, foi que milagres não bastam para provar a existência de Deus. Assim formulada, a objeção não encontrou nenhum amparo nas apologias da maioria dos pensadores ortodoxos, pois praticamente todos eles empregaram milagres não como prova da existência de Deus, mas como prova de sua ação no mundo. Portanto, a objeção foi, estritamente falando, irrelevante. O raciocínio corroborante de Espinoza, no entanto, era pertinente aos argumentos deles. Seu ponto principal parece ter sido que a prova da existência de Deus deve ser absolutamente certa. Uma vez, portanto, que concluamos a existência de Deus com base nas leis imutáveis da natureza, tudo que as impugne nos fará duvidar da existência de Deus. Subjacente a este raciocínio estariam dois pressupostos: (1) a prova da existência de Deus deve ser demonstrativamente certa e (2) a existência de Deus é inferida das leis naturais. Os pensadores cristãos negaram os dois pressupostos. O primeiro se baseia no racionalismo de Espinoza, que o impede de reconhecer a coerência de um argumento, a menos que ele consiga afixar seu quod erat demonstrandum na conclusão do argumento. Seus oponentes de mentalidade mais empírica, porém, não viam nenhuma razão para pensar que um argumento não demonstrativo dedutivamente não pudesse fornecer garantia suficiente para o teísmo. Paley, por exemplo, tentou oferecer indícios empíricos esmagadores em sua Natural Theology [Teologia natural] a favor de Deus, arquiteto do universo; embora não atingisse certeza demonstrativa, o objetivo do argumento era tornar mais plausível crer em Deus do que o contrário. A derrocada do racionalismo espinozista parece ser testemunho suficiente de que as gerações subsequentes não partilharam do interesse de Espinoza por certeza geométrica. O segundo pressuposto, por sua vez, não seria relevante a alguém que defendesse a existência de Deus por outros meios. Por exemplo, Clarke, conquanto tivesse o mesmo interesse em certeza demonstrativa, tal qual Espinoza, baseou seu teísmo em argumentos cosmológicos e ontológicos. Portanto, mesmo que fosse verdadeira, a objeção de que milagres transformassem a lei natural em incerta não iria de encontro a Clarke.

A objeção, porém, é realmente verdadeira? Espinoza parecia pensar que a admissão de um milagre genuíno serviria para subverter a lei natural excluída pelo milagre. Caso se retenha o antigo conceito de milagre como “violação”, isto é com certeza verdade. Se, porém, abandonamos esta noção, como sugeri, a favor do naturalmente impossível, podemos ver que Clarke e Paley estavam corretos ao argumentar que milagre não serve para revogar a regularidade da natureza em geral; apenas mostra a intervenção de Deus naquele ponto no nexo causal natural. Como argumentou Swinburne, a lei natural não é abolida por causa de uma exceção; o contraexemplo deve ocorrer repetidamente, sempre que as condições para si estejam presentes. [70] Se um evento ocorre, sendo ele contrário a uma lei da natureza, e temos razões para crer que tal evento não ocorreria novamente em circunstâncias semelhantes, a lei em questão não será abandonada. Pode-se considerar que um evento anômalo é repetível, caso outra formulação da lei natural melhor explique o evento em questão e caso não seja mais complexa do que a lei original. Se houver qualquer dúvida, o cientista poderá conduzir experimentos para determinar qual formulação da lei se provará mais exitosa na predição de fenômenos futuros. Igualmente, haveria boa razão para considerar determinado evento como contraexemplo irrepetível de uma lei, se a lei reformulada fosse muito mais complicada do que a original, sem produzir novas predições melhores ou ao predizer malogradamente fenômenos futuros onde a formulação original predisse com êxito. Se a formulação original continua exitosa na predição de todos os novos fenômenos, à proporção que os dados se acumulam, ao passo que nenhuma reformulação se dá melhor na predição dos fenômenos e na explicação do evento em questão, o evento deve ser considerado como contraexemplo irrepetível da lei. Logo, evento milagroso não serviria para desestabilizar a lei natural:

Temos até certo ponto bons indícios a respeito do que são as leis da natureza, sendo algumas delas tão bem estabelecidas e dando conta de tantos dados que quaisquer modificações a elas que sugerissem dar conta do contraexemplo ímpar seriam tão desajeitadas e forçadas que desestabilizariam a estrutura inteira da ciência. Em casos assim, os indícios são fortes no sentido de que, se o suposto contraexemplo ocorreu, foi violação das leis da natureza. [71]

Infelizmente, Swinburne retém o conceito de milagre como violação, o que invalidaria seu argumento; porém, se concebemos milagre como evento naturalmente impossível, ele toca diretamente no ponto ao raciocinar que a admissão de evento assim não levaria ao abandono de uma lei natural. O receio de Espinoza, portanto, de que milagres destruiriam leis naturais parece injustificado. De fato, o argumento de Espinoza, se levado a sério, provar-se-ia verdadeiro impedimento à ciência, pois, pelos seus princípios, nem mesmo contraexemplos repetíveis de uma lei natural seriam permitidos, visto que eles impugnariam a presente lei natural. Em outras palavras, Espinoza supõe que temos a formulação final das leis naturais a nós conhecidas. Ainda que ele admita que pode haver leis naturais desconhecidas, ele não pode permitir a revisão de leis desconhecidas. Uma posição assim, porém, é anticientífica. Caso a posição de Espinoza fosse ajustada para admitir a possível revisão de uma lei natural por contraexemplos repetíveis, qualquer argumento a favor de milagres baseado naquelas leis partilharia, obviamente, da incerteza de nossa formulação. Se, todavia, estivéssemos confiantes de que uma formulação específica de uma lei fosse genuinamente descritiva da realidade, a ocorrência de um evento mostrado pela lei como se fosse naturalmente impossível não poderia subverter esta lei. Em vez de nos afastar de Deus, uma situação destas poderia nos levar a ver a mão de Deus no evento, pois não haveria nenhuma outra maneira para que ele fosse produzido. E foi esta precisamente a posição dos defensores ortodoxos de milagres.

A polêmica secundária de Espinoza, de que milagre não precisa provar a existência de Deus, mas somente a existência de um ser menor, não foi eficaz contra a maioria dos defensores de milagres, pura e simplesmente porque não buscavam provar a existência de Deus. Já tendo provado ou pressuposto a existência de Deus, eles empregaram milagres sobretudo para provar que o teísmo cristão era verdadeiro. Por outro lado, os protagonistas no debate clássico sobre milagres estavam muitíssimo interessados na possibilidade de milagres demoníacos e no modo de identificar um milagre verdadeiramente divino. Sua resposta ao problema se trata de uma das contribuições mais importantes e duradouras à discussão acerca de milagres. Argumentaram que o contexto doutrinal do milagre deixa claro se ele é verdadeiramente de Deus. Portanto, chamavam atenção para o contexto em que ocorreu o milagre como fundamento da interpretação de tal milagre. Isto é de extrema importância, pois milagre sem contexto é inerentemente ambíguo. No caso dos milagres e ressurreição de Jesus, porém, o contexto é religiosamente significativo: ocorrem no contexto e como clímax da vida, ensino e declaração pessoal de autoridade incomparáveis de Jesus, servindo como sinais da chegada do Reino. Eis aqui um contexto de eventos que, conforme Paley corretamente enfatizou, é único na história da humanidade. Ele nos deve, portanto, fazer parar para refletir, ao passo que uma anomalia científica isolada dê ocasião apenas à curiosidade. Desta forma, o contexto religioso do milagre nos fornece a sua interpretação apropriada.

O interesse de Espinoza em seres divinos menores, tais como anjos e demônios, provavelmente não incomodaria muitas mentes do século XX. Seria muito estranho mesmo se um ateu admitisse que os milagres e ressurreição de Jesus fossem eventos históricos e milagrosos e, ainda assim, afirmasse que talvez simplesmente um anjo os tenha realizado. Entende-se normalmente que seres espirituais finitos existem apenas dentro de uma estrutura teísta mais ampla, de modo que inferir diretamente que Deus é responsável por tais eventos não pareceria a muitos inferência injustificada. Desta maneira, portanto, contrariamente à alegação de Espinoza, milagres considerados dentro de seu contexto religioso poderiam, ao que parece, prover justificação adequada para o teísmo cristão.

O último ponto secundário de Espinoza, de que milagres talvez sejam simplesmente o efeito de causa desconhecida na natureza, não vai exatamente de encontro à possibilidade da ocorrência de milagres, mas sim à identificação da ocorrência de milagres. Admitindo-se que milagres são possíveis, como é que podemos saber quando um deles ocorreu? Trata-se, naturalmente, de um problema espinhoso demais e, sem dúvida, boa parte de nossa reserva contra supostos milagres advém da suspeita subjacente de que o evento é, de alguma maneira, explicável naturalmente, embora não saibamos como. O problema foi formulado de modo convincente em tempos modernos por Antony Flew:

Protagonistas do sobrenatural, bem como oponentes, tomam por certo que todos nós possuímos algum modo natural (em oposição a revelado) de saber que e onde as potencialidades da natureza sem assistência (em oposição à sobrenatureza postulada) são mais restritas do que as potencialidades que, de fato, vemos como realizadas ou realizáveis no universo ao nosso redor.

Trata-se de pressuposto muito antigo e aparentemente muito fácil e tentador... Não obstante, o pressuposto é completamente injustificado. Simplesmente não temos e não poderíamos ter nenhum critério natural (em oposição a revelado) que nos permita dizer, quando deparamos com algo que se descobre ter realmente acontecido, que aqui temos uma façanha que a natureza, abandonada a seus próprios mecanismos sem ajuda, jamais poderia englobar. O cientista natural, confrontado com alguma ocorrência incoerente com a proposição que, segundo se cria anteriormente, expressava uma lei da natureza, não pode encontrar nesta perturbadora incoerência absolutamente nenhum fundamento para proclamar que a lei específica da natureza foi anulada sobrenaturalmente. [72]

A resposta de Sherlock e Houtteville, de que uma lei desconhecida da natureza pode ser o meio divino de agir é com certeza inadequada, pois acontecer igualmente que o evento em questão não seja nenhum ato de Deus, mas produto de causas completamente naturais, mais desconhecidas. Le Clerc e Vernet deram uma tacada melhor: quando os milagres ocorrem precisamente em ocasião momentosa (digamos, a lepra de um homem desaparecer ao Jesus dizer as palavras: “Sê limpo”) e não ocorrem regularmente na história e quando os milagres em questão são diversos e numerosos, a chance de que sejam o resultado de propriedades naturais desconhecidas parece desprezível. Se os milagres fossem causados naturalmente, seria de esperar que ocorressem repetidamente e não por coincidência justamente nos momentos certos no ministério de Jesus. E, embora milagre isolado possa ser descartado como o efeito de operação desconhecida da natureza, Vernet parece estar correto ao considerar mínima esta possibilidade, quando todo o escopo dos milagres de Jesus é examinado.

Uma última observação acerca do raciocínio de Espinoza deve ser feita. A objeção não advém, como no caso de Hume, da natureza da investigação histórica; antes, poderia ser exigida pelas próprias testemunhas dos milagres e aparições da ressurreição de Jesus. Neste caso, a objeção perde toda sua persuasão: será que conseguimos imaginar, digamos, Tomé, o cético, quando confrontado com o Jesus ressurreto, considerando seriamente se alguma causa natural desconhecida teria vindo a produzir o que ele experimentava? Chega-se a um ponto em que a coluna do ceticismo é quebrada pela pura realidade de uma maravilha diante de nós. De todo modo, se o próprio Jesus tivesse sido confrontado com esse tipo de ceticismo, ele não o teria atribuído à dureza do coração de seu oponente? Ao mostrar a credibilidade histórica dos relatos evangélicos dos milagres de Jesus, se isto fosse possível, um defensor de milagres talvez simplesmente deixe que a questão de sua natureza milagrosa seja resolvida entre o ouvinte e Deus. Talvez Pascal estivesse certo ao entender que Deus deu provas claras o suficiente para quem tem o coração aberto, mas vagas o suficiente para não forçar quem tem o coração fechado.

Hume

1. O argumento “em princípio”

O argumento “em princípio” de Hume contra a identificação de milagres, por sua vez, parece forçado ou equivocado. [73] Dizer que a experiência uniforme vai contra milagres significa pressupor implicitamente que os milagres em questão não ocorreram. Do contrário, não se poderia dizer que a experiência é verdadeiramente uniforme. Assim, dizer que a experiência uniforme se opõe a milagres é forçado. Se, contudo, afrouxamos o termo “uniforme” para que signifique simplesmente “geral” ou “comum”, o argumento fica sem coerência. Pois, então, não é mais incompatível que a experiência geral seja que milagres não ocorrem e que os milagres evangélicos ocorreram. Hume parece confundir as esferas da ciência e história: a experiência geral da humanidade nos permitiu formular determinadas leis que descrevem o universo físico. Que mortos não ressuscitam é, por exemplo, padrão geralmente observado em nossa experiência. No máximo, porém, isto mostra apenas que a ressurreição é naturalmente impossível — é uma questão de ciência —, mas não prova que tal evento naturalmente impossível nunca ocorreu — é uma questão de história. Como Less e Paley indicaram, o testemunho na história para o padrão geral de eventos não pode subverter o bom testemunho para algum evento específico. Já que não são contradictoria, não podem sequer ser pesados na mesma balança. Portanto, o argumento de Hume, se não é meramente forçado, fundamenta-se numa espécie de erro categórico.

Além disse, conforme argumentou Sherlock, uma vez que milagre é tanto questão de percepção sensorial quanto qualquer outro evento, ele é, em princípio, provável pelo testemunho histórico da mesma maneira que evento não-milagroso. Enquanto história, estão exatamente no mesmo nível. É contrário à metodologia histórica correta suprimir testemunhos específicos em deferência ao testemunho geral. No caso da ressurreição, por exemplo, se o testemunho que temos no Novo Testamento torna provável que o sepulcro de Jesus foi realmente achado vazio no primeiro dia da semana por algumas de suas discípulas e que, posteriormente, ele apareceu a seus discípulos de maneira não-alucinatória, é metodologia histórica ruim argumentar que este testemunho deva ser de algum modo falso porque os indícios históricos mostram que todos os demais homens sempre permaneceram mortos em seus túmulos. Tampouco se pode argumentar que o testemunho deva ser falso porque um evento desses é naturalmente impossível, pois pode muito bem calhar que a história prove que evento naturalmente impossível de fato ocorreu. Como Paley afirmou, o argumento de Hume poderia nos conduzir a situações em que seríamos levados a negar o testemunho das mais confiáveis testemunhas de um evento, por causa de considerações gerais, situação que resulta em ceticismo irrealista. De fato, conforme Sherlock e Less argumentaram corretamente, isto se aplicaria a eventos não-milagrosos também. Existem tantos tipos de eventos que constituem o material de livros populares sobre mistérios sem explicação (tais quais levitação, pessoas que desaparecem, combustões humanas espontâneas e assim por diante) que não são esclarecidos cientificamente, mas que, julgando por sua natureza despropositada, ocorrência esporádica e falta de qualquer contexto religioso, provavelmente não são milagres. Seria tolice da parte do historiador negar a ocorrência de tais eventos diante de bons indícios de testemunhas oculares no sentido contrário, só porque não se encaixam com leis naturais conhecidas. Ainda assim, o princípio de Hume exigiria que o historiador dissesse que estes eventos jamais aconteceram de verdade. O fato é que o historiador parece, em certos casos, ser capaz de determinar a facticidade de um evento histórico sem saber como ou se ele está de acordo com leis naturais.

Por último, poder-se-ia advertir contra o argumento “em princípio” de Hume que, se a existência de Deus é possível, então, conforme argumentou Paley, ele talvez tenha escolhido se revelar decisivamente na história em algum instante e que não há nenhuma probabilidade de que experimentemos os mesmos eventos hoje. Por isso, a ocorrência daqueles eventos singularmente no passado não pode ser descartada só porque tais eventos não são experimentados em outros momentos. Desde que a existência de Deus seja possível, é igualmente possível que ele tenha agido singularmente em algum instante na história — e, neste caso, a questão se transforma simplesmente na possibilidade da ocorrência ou não de tal evento. Trata-se, pois, de questão de indícios, e não de princípio, como sustentou Hume.

Antony Flew, embora reconhecesse o fracasso do argumento de Hume, buscou reformular uma versão exitosa do argumento contra a identificação de milagres:

... é apenas e precisamente ao presumir que as leis que se aplicam hoje se aplicavam no passado e ao empregar como cânones todo nosso conhecimento — ou conhecimento presumido — daquilo que é provável ou improvável, possível ou impossível, que podemos interpretar racionalmente o resíduo do passado como indício e, daí, construir nossa explicação do que realmente aconteceu. Neste contexto, impossível é o fisicamente, em vez de logicamente, impossível. E “impossibilidade física” é, como com certeza o deve ser, definida do ponto de vista da incoerência com uma lei verdadeira da natureza.

... nosso único fundamento para caracterizar uma ocorrência relatada como milagrosa é ao mesmo tempo razão suficiente para chamá-la de fisicamente impossível. [74]

Pois bem, esta objeção parece na verdade incoerente com o ponto final da segunda objeção de Espinoza contra milagres, que Flew também buscou defender. Naquele caso, vale lembrar, afirmou-se que nosso conhecimento da natureza é tão incompleto que jamais podemos considerar qualquer evento que seja como milagroso, uma vez que poderia se tratar do efeito de lei desconhecida da natureza. Isto nos forçaria a adotar atitude totalmente aberta à possibilidade de qualquer evento determinado, pois praticamente qualquer coisa seria possível na natureza. Jamais estaríamos habilitados a dizer que um evento é naturalmente impossível. Ora, a objeção de Hume afirma exatamente o oposto, a saber, que nosso conhecimento da lei natural é tão incompleto que não podemos apenas determinar quais eventos seriam naturalmente impossíveis, mas conseguimos impô-lo no passado para expurgar tais eventos da memória. As duas posições são incompatíveis. Flew, portanto, pareceu criar para si um dilema: eventos naturalmente impossíveis podem ser especificados ou não. Se sim, sua ocorrência poderia ser identificada como milagre. Se não, devemos estar abertos para que qualquer coisa aconteça na história. Flew não pode ter as duas coisas ao mesmo tempo: ele não pode se alinhar tanto a Espinoza quanto a Hume. Pois então, argumentei que eventos naturalmente impossíveis podem às vezes ser especificados e que evento como a multiplicação de Jesus dos pães para os 5000 deveria ser considerada como naturalmente impossível. Isto significaria, então, conforme alega Flew, que deve ser considerada a priori como a-histórica? De forma alguma; Flew fez uma identificação injustificável entre possibilidade natural (ou, em seus termos, física) e possibilidade real e histórica. Aqui se pressupõe que eventos naturalmente impossíveis não podem ocorrer ou, em outras palavras, que milagres não podem acontecer, o que é forçado, visto que se trata precisamente do ponto a ser provado. O argumento de Flew na realidade se resume à afirmação de que, para estudar história, deve-se pressupor a impossibilidade de milagres. A esta questão nos voltamos agora.

Em tempos recentes, o debate clássico acerca da identificação de milagres continuou na disputa sobre princípios de metodologia histórica. Afirma-se que o método histórico é inerentemente restrito a eventos não-milagrosos; por exemplo, D. E. Nineham declara:

É da essência do método e critérios do historiador moderno que eles sejam aplicáveis apenas a fenômenos puramente humanos, e a fenômenos humanos de caráter normal, isto é, não-milagroso, não-singular. Segue-se que qualquer imagem de Jesus que se demonstrasse coerentemente ao investigador histórica pelo uso destes critérios deve a priori ser de uma figura puramente humana e deve ser limitada por sua morte. [75]

Com que fundamento se pode dizer que o método histórico se aplica somente a fenômenos não-milagrosos? De acordo com Carl Becker, é porque o método pressupõe que o passado não é dessemelhante a nossa experiência presente:

História se baseia em testemunho, mas o valor qualitativo do testemunho é determinado, em última análise, pela experiência testada e aceita... o historiador sabe bem que não é jamais permitido a nenhuma dose de testemunho estabelecer como realidade passada algo que não pode ser fundamentado na realidade presente... Em todos os casos, o testemunho deve ter caráter perfeito — o que não dá em nada...

Devemos ter um passado que é produto de todo o presente. Com fontes que dizem que não o foi assim, não teremos nada a fazer; ainda melhor, nós os faremos dizer que o foi assim. [76]

O relativismo histórico de Becker lhe permite remodelar o passado com impunidade, de modo a fazê-lo concordar com nossa experiência do presente. A consequência é que milagres devem ser expurgados pelo historiador, pois estes não são encontrados na experiência de sua própria geração. [77] Por esta perspectiva, historiadores devem adotar como princípio metodológico uma espécie de “naturalismo histórico” que exclua o sobrenatural.

Este ponto de vista é simplesmente uma reafirmação do princípio de analogia de Ernst Troeltsch. [78] De acordo com Troeltsch, um dos princípios historiográficos mais básicos é que o passado não difere essencialmente do presente. Embora eventos do passado não sejam, obviamente, os mesmos eventos que aqueles do presente, devem ser os mesmos em espécie, caso a investigação histórica queira ser possível. Troeltsch percebeu que este princípio era incompatível com eventos milagrosos e que qualquer história escrita a partir dele será cética em relação à historicidade dos eventos dos evangelhos.

Pannenberg, entretanto, argumentou de forma convincente que o princípio de analogia de Troeltsch não pode ser empregado legitimamente para banir da esfera da história todos os eventos não-análogos. [79] Propriamente definida, analogia significa que, em situação incerta, os fatos devem ser entendidos do ponto de vista da experiência conhecida; porém, Troeltsch elevou o princípio para constringir todos os eventos passados a eventos puramente naturais. Mas o fato de que um evento rompa com todas as analogias não pode ser usado para questionar sua historicidade. Quando, por exemplo, mitos, lendas, ilusões e coisas parecidas são descartados como se fossem a-históricos, não é porque sejam incomuns, mas porque são análogos a formas presentes de consciência que não têm nenhum referente objetivo. Quando se diz que um evento ocorreu para o qual não exista nenhuma analogia, sua realidade não pode ser descartada automaticamente; para fazê-lo, deveríamos exigir uma analogia a alguma forma conhecida de consciência sem referente objetivo que bastaria para explicar a situação. Pannenberg derrubou, portanto, o princípio de analogia de Troeltsch, de tal maneira que não é a ausência de uma analogia que mostra que um evento é a-histórico, mas a presença de analogia positiva a formas de pensamento conhecidas que mostra que um evento supostamente milagroso é a-histórico. Assim, ele afirmou alhures que, caso se mostrasse que as tradições pascais são essencialmente construções secundárias análogas a modelos religiosos comparativos comuns, caso se mostrasse que as aparições pascais correspondem completamente ao modelo de alucinações e caso se avaliasse a tradição do sepulcro vazio como lenda posterior, a ressurreição seria sujeita a avaliação como se fosse a-histórica. [80] Deste modo, a falta de analogia para apresentar a experiência nada diz a favor ou contra a historicidade do evento. A formulação do princípio de analogia de Troeltsch busca espremer o passado no molde do presente sem oferecer nenhuma justificativa ao fazê-lo. Como protestou Richard Niebuhr, o princípio de Troeltsch realmente destrói o raciocínio histórico genuíno, uma vez que o historiador deve estar aberto à singularidade dos eventos do passado e não pode excluir a priori a possibilidade de eventos como a ressurreição simplesmente porque não se conforma à sua experiência presente. [81] A formulação do princípio por Pannenberg, todavia, preserva a natureza análoga do passado com o presente ou o conhecido, tornando plausível a investigação da história, sem, então, sacrificar a integridade do passado ou distorcê-lo.

Isto significa que parece não haver nenhuma objeção filosófica em princípio para estabelecer a ocorrência de milagres mediante pesquisa histórica. De acordo com Pannenberg, a interpretação teológica da história será testada positivamente por “sua habilidade de levar em conta todos os detalhes históricos conhecidos” e negativamente pela “prova de que, sem suas alegações específicas, as informações acessíveis não seriam de forma alguma ou o seriam apenas incompletamente explicáveis”. [82] Com mais exatidão, Bilynskyj propõe quatro critérios para identificar que algum evento E seja milagre: (1) os indícios para a ocorrência de E são pelo menos tão bons quanto os indícios para outros eventos aceitáveis, porém incomuns, igualmente distantes no espaço e tempo a partir do ponto de investigação; (2) a descrição das naturezas e/ou poderes dos fatores naturais causalmente relevantes necessários para explicar E seria desajeitada e forçada; (3) não existem indícios para uma ou mais das causas naturais que poderiam produzir E, exceto para a falta de explicação do próprio E; e (4) existe alguma justificação para uma explicação sobrenatural de E, além da falta de explicação de E. [83] O historiador deveria primeiramente talvez, como princípio metodológico, buscar causas naturais dos eventos sob investigação; porém, quando não se pode encontrar nenhum causa natural que plausivelmente dê conta dos dados e uma hipótese sobrenatural se apresenta como parte do contexto histórico em que os eventos ocorreram, não pareceria ilícito preferir a explicação sobrenatural.

2. Argumentos “de fato”

Se, pois, parece não haver nenhum argumento “em princípio” contra o estabelecimento de milagres mediante o método histórico, o que se pode dizer com respeito aos quatro argumentos “de fato” de Hume contra milagres? Todos os argumentos de Hume são vigorosos; porém, permanece o fato de que essas considerações gerais não podem ser usadas para se pronunciar sobre a historicidade de nenhum milagre específico. Servem apenas para nos deixar cautelosos na nossa investigação. O quarto ponto de Hume procura, sim, excluir qualquer investigação ao alegar que os milagres de diversas religiões se anulam mutuamente. Less, Campbell e Paley argumentaram de modo bastante convincente, todavia, contra seus três exemplos específicos de supostos milagres, mas o espaço limitado requer que eu apenas recomende ao leitor suas extensas discussões. Seja como for, continua ainda a questão empírica da possibilidade que um milagre favorável à afirmação anticristã seja igualmente ou melhor atestado do que os milagres e a ressurreição de Jesus. Não há como resolver esta questão sem uma investigação aprofundada.

Conclusão

Parece-me, portanto, que a lição a ser aprendida a partir do debate clássico acerca dos milagres — lição reforçada pelo pensamento científico e filosófico contemporâneo — é que a pressuposição da impossibilidade de milagres não deveria, contrariamente ao pressuposto da crítica bíblica do século XIX e da maior parte do século XX, desempenhar nenhum papel na determinação da historicidade de nenhum evento. Mesmo que muitos estudiosos ainda operem com este pressuposto, parece agora haver o reconhecimento crescente de que tal pressuposição é ilegítima. A pressuposição contra a possibilidade de milagres sobrevive na teologia apenas como resquício de uma era deísta passada e deveria ser de uma vez por todas abandonada. [84]

  • [1]

    Gottfried Less, Wahrheit der christlichen Religion, 4. ed. (Gottinga & Bremen: Georg Ludewig Forster, 1776) 260-62.

  • [2]

    Heinrich Eberhard Gottlob Paulus, Das Leben Jesu, als Grundlage einer reinen Geschichte des Urchristentums, 2 vols. (Heidelberg: C. F. Winter, 1826) 2.2, xi.

  • [3]

    Ibid., 2.2, xlv.

  • [4]

    Ibid., 2.2, xi.

  • [5]

    Ibid.

  • [6]

    Ibid., 2.2, xlv.

  • [7]

    Ibid., 1, 283-84.

  • [8]

    Ibid., 1, 284.

  • [9]

    David Friedrich Strauss, Hermann Samuel Reimarus und seine Schutzschrift für die vernünftigen Verehrer Gottes (Leipzig: F. A. Brockhaus, 1862) 271.

  • [10]

    Idem, The Life of Jesus Critically Examined, trad. George Eliot, ed. com introdução de Peter C. Hodgson (Londres: SCM, 1973) 64.

  • [11]

    Ibid., 80.

  • [12]

    Ibid., 736.

  • [13]

    Ibid., 75.

  • [14]

    Albert Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus, 3. ed., trad. W. Montgomery (Londres: Adam & Charles Black, 1954) 10.

  • [15]

    Ibid., 110-11.

  • [16]

    David Friedrich Strauss, Die christliche Glaubenslehre in ihrer geschichtlichen Entwicklung und im Kämpfe mit der modernen Wissenschaft (Tubinga: C. F. Osiander, 1840) 224-53.

  • [17]

    Rudolf Bultmann, 'New Testament and Mythology', em Kerygma and Myth, 2 vols., ed. Hans-Werner Bartsch, trad. R. E. Fuller (Londres: SPCK, 1953) 2, 1-44. O pressuposto a priori de Bultmann da história e do universo como sistema fechado fica evidente de maneira especial em idem, 'Bultmann Replies to his Critics', em ibid., 1, 197. Segundo Niebuhr, Bultmann reteve acriticamente a ideia do século XIX de natureza e história como sistema fechado (Richard R. Niebuhr, Resurrection and Historical Reason [Nova Iorque: Charles Scribner's Sons, 1957, 160-61]).

  • [18]

    Rudolf Pesch, 'Die Entstehung des Glaubens an den Auferstandenen', ThQ 153 (1973) 227.

  • [19]

    Hans Frei, The Eclipse of the Biblical Narrative: A Study in Eighteenth and Nineteenth Century Hermeneutics (New Haven: Yale University Press, 1974) 240.

  • [20]

    Três úteis discussões deste debate são John S. Lawton, Miracles and Revelation (Nova Iorque: Association Press, 1959); R. M. Burns, The Great Debate on Miracles (Londres: Associated University Presses, 1981); Colin Brown, Miracles and the Critical Mind (Grand Rapids: Eerdmans, 1984).

  • [21]

    Denis Diderot, 'Philosophical Thoughts', em Diderot's Early Philosophical Works, trad. Margaret Jourdain (Chicago: Open Court, 1916) pensée 18.

  • [22]

    Marie François Arrouet de Voltaire, Dictionnaire philosophique (Paris: Garnler, 1967) s.v. 'Miracles' [publicado em português com o título Dicionário filosófico, em diversas edições].

  • [23]

    Ibid.

  • [24]

    Ibid.

  • [25]

    Bento de Espinoza, Tractatus theologico-politicus 6 [publicado em português com o título Tratado teológico-político ou Tratado político, em diversas edições].

  • [26]

    David Hume, 'An Enquiry concerning Human Understanding', em Enquiries concerning Human Understanding and concerning the Principles of Morals, ed. L. A. Selby-Bigge, 3. ed. rev. P. H. Nidditch (Oxford: Clarendon Press, 1975) 10.1, 90; 10.11, 92 (pp. 114, 116) [publicado em português com o título Investigação sobre o entendimento humano, em diversas edições]. Para extensa discussão deste ensaio, ver Burns, Debate, 131-75. É notável que Burns não veja a natureza hipotética do argumento de Hume, de modo que sua exposição tende a se enquadrar em duas metades desconexas, com ênfase demasiada na segunda parte. O mesmo descuido afeta a discussão de Brown, Miracles, 79-100.

  • [27]

    Hume, 'Enquiry', 10.11, 101 (p. 131).

  • [28]

    Jean Le Clerc, Five Letters Concerning the Inspiration of the Holy Scriptures (Londres: 1690) 235. Sentimens foi traduzido em inglês com este título.

  • [29]

    Ibid., 235-36.

  • [30]

    Samuel Clarke, A Discourse concerning the Unchangeable Obligations of Natural Religion and the Truth and Certainty of the Christian Revelation (Londres: W. Botham, 1706) 351-52.

  • [31]

    Ibid., 354-55.

  • [32]

    Ibid., 356-57.

  • [33]

    Ibid., 359.

  • [34]

    Ibid., 361.

  • [35]

    Ibid., 362-63. Observe que Clarke não exclui arbitrariamente determinadas doutrinas como se fossem incapazes de ser provadas, mas pressupõe o que já argumentou acerca da ética e teologia natural. Cf. ibid., 369-70.

  • [36]

    Ibid., 363-64.

  • [37]

    Ibid., 367.

  • [38]

    lbid., 368-69.

  • [39]

    Ibid., 368. A exposição anterior deixa óbvio quão grosseira é a distorção da visão de Clarke apresentada por Burns, Debate, 96-103, que atribui a Clarke um “evidencialismo extremo” pelo qual milagres dissociados de seu contexto doutrinal são prova do cristianismo. Na realidade, Clarke está em uníssono com a resposta ortodoxa típica ao deísmo. Seguindo Burns em sua interpretação errônea de Clarke está Brown, Miracles, 56-57.

  • [40]

    J. Alph. Turretin, Traité de la vérité de la religion chrétienne, 2. ed., 7 vols., trad. J. Vernet (Geneva: Henri-Albert Gosse, 1745-55) 5, 235. Vernet traduziu o primeiro volume, escrito por Turretin em latim, e continuou a acrescentar diversos volumes próprios. Vernet tem em mente especialmente Espinoza neste caso.

  • [41]

    Ibid., 5, 2-3.

  • [42]

    Ibid., 5, 24.

  • [43]

    Ibid., 5, 272.

  • [44]

    Claude François Houtteville, La religion chrétienne prouvée par les faits, 3 vols. (Paris: Mercler & Boudet, 1740) 1, 32-50.

  • [45]

    Ibid., 1, 33.

  • [46]

    Thomas Sherlock, The Tryal of the Witnesses of the Resurrection of Jesus (Londres: J. Roberts, 1729) 60.

  • [47]

    Mencionado originalmente por John Locke, An Essay concerning Human Understanding, 4.15, 5 [publicado em português com o título Ensaio acerca do entendimento humano, em diversas edições], e adotado por Hume em nota de rodapé de seu ensaio sobre milagres, este exemplo foi considerado o calcanhar de Aquiles do argumento de Hume, pois este teve de admitir que, pelos seus princípios, o homem nos trópicos de fato não deveria crer no testemunho de viajantes quanto ao gelo.

  • [48]

    Sherlock, Tryal, 60-62.

  • [49]

    Ibid., 63-64.

  • [50]

    Less, Wahrheit, 243.

  • [51]

    Ibid., 254-60.

  • [52]

    Ibid., 280-84.

  • [53]

    Ibid., 366-75.

  • [54]

    Campbell, em Dissertation On Miracles (1762), desenvolve o mesmo argumento: “Os dois mil exemplos previamente conhecidos e o único caso atestado, na medida em que se relacionam com diferentes fatos, embora de natureza contrária, não são contraditórios. Não existe nenhuma incoerência em acreditar em ambos” (George Campbell, The Works of George Campbell, 6 vols. [Londres: Thomas Tegg, 1840] 1, 23).

  • [55]

    Less, Wahrheit, 471-549; ver também a discussão em Campbell, Dissertation, 88-116.

  • [56]

    William Paley, A View of the Evidences of Christianity, 2 vols., 5. ed. (Londres: R. Faulder, 1796; reimpr. Westmead: Gregg International Publishers, 1970) 1, 2-3. Cf. 2, 409. Para a exposição clássica de Paley do argumento teleológico, ver Natural Theology (1802).

  • [57]

    Idem, Evidences, 1, 3- 15,

  • [58]

    Ibid., 1, 5,7.

  • [59]

    Ibid., 1, 6.

  • [60]

    Ibid., 1, 329-83.

  • [61]

    Ibid., 1, 369-83.

  • [62]

    Mesmo em relação a leis quânticas, pode-se falar plausivelmente de eventos que são naturalmente impossíveis. Ver Mary Hesse, 'Miracles and the Laws of Nature’, em Miracles, ed. C. F. D. Moule (Londres: Mowbray, 1965) 38.

  • [63]

    Stephen S. Bilynskyj, 'God, Nature, and the Concept of Miracle' (tese de doutorado, Universidade de Notre Dame, 1982) 10-42.

  • [64]

    Ibid., 46-53.

  • [65]

    Ibid., 117.

  • [66]

    Ibid., 138.

  • [67]

    Ibid., 146.

  • [68]

    Ibid., 43-44.

  • [69]

    Ibid., 86-97; para crítica mais detalhada, ver 97-101.

  • [70]

    R. G. Swinburne, 'Miracles', PQ 18 (1968) 321.

  • [71]

    Ibid., 323.

  • [72]

    Encyclopedia of Philosophy, s.v. 'Miracles', por Antony Flew.

  • [73]

    Para crítica pungente ao raciocínio de Hume, ver George I. Mavrodes, 'Testimony and the Resurrection', artigo apresentado em 'Christianity Challenges the University', Dallas, Texas, 7 a 10 de fevereiro de 1985. Ele indica que as proposições “milagres não são comuns no mundo” e “Jesus realizou milagres” não são alternativas epistemológicas, de modo que os indícios para cada uma delas podem resultar em prova completa e uma pessoa racional pode acreditar simultaneamente em cada uma delas. Obviamente, “não existem milagres no mundo” é alternativa epistemológica a “Jesus realizou milagres”, mas não temos nenhum fundamento para supor que a primeira delas seja verdadeira. Minha falta de experiência com um milagre em primeira mão não serve para tornar provável a declaração universal, pois não existe nenhuma probabilidade de que eu mesmo deva experimentar um milagre. Em seu comentário ao artigo de Mavrodes, Antony Flew reconheceu a deficiência do argumento de Hume, mas levou adiante a objeção de seu artigo de Encyclopedia of Philosophy discutido abaixo quanto ao naturalismo histórico.

  • [74]

    Encyclopedia of Philosophy, s.v. 'Miracles'.

  • [75]

    D. E. Nineham, 'Some Reflections on the Present Position with regard to The Jesus of History', CQR 166 (1965) 6-7.

  • [76]

    Carl Becker, 'Detachment and the Writing of History', em Detachment and the Writing of History, ed. Phil L. Snyder (Ithaca: Cornell University Press, 1958; Westport, Conn.: Green, 1972) 12-13.

  • [77]

    Ibid., 14. Para crítica incisiva ao relativismo histórico e ao seu dito de que “o passado é o produto do presente”, ver Maurice Mandelbaum, The Problem of Historical Knowledge (Nova Iorque: Harper & Row, 1967).

  • [78]

    Ernst Troeltsch, 'Über historische und dogmatische Methode in der Theologie', em idem, Gesammelte Schriften (Tubinga: J. C. B. Mohr, 1913) 2, 729-53. Cf. o princípio de uniformidade de Bradley (F. H. Bradley, The Presuppositions of Critical History, ed. Lionel Rubinoff [Chicago: J. M. Dent & Sons, 1968], 100) e sua crítica por parte de R. G. Collingwood, The Idea of History, ed. T. M. Know (Oxford: University Press, 1956) 139.

  • [79]

    Wolfhart Pannenberg, 'Redemptive Event and History', em idem, Basic Questions in Theology, 2 vols., trad. G. H. Kehm (Filadélfia: Fortress, 1970) 1, 40-50.

  • [80]

    Idem, citado em James M. Robinson, 'Revelation as Word and History', em New Frontiers in Theology, ed. James M. Robinson & John B. Cobb, Jr. (Nova Iorque: Harper & Row, 1967) 3, 33.

  • [81]

    Niebuhr, Resurrection, 170.

  • [82]

    Pannenberg, 'Redemptive Event and History', 1, 78.

  • [83]

    Bilynskyj, 'Miracles', 222.

  • [84]

    Partes desta pesquisa foram realizadas nas universidades de Cambridge e Munique com bolsa da Fundação Alexander von Humboldt. Para descrição mais detalhada e meticulosamente documentada, ver, de minha autoria, The Historical Argument for the Resurrection of Jesus during the Deist Controversy (Toronto: Edwin Mellen, 1986).