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#618 O perdão divino: quem precisa dele?

April 23, 2019
Q

Estou lendo seu livro The Atonement (A expiação), da série Cambridge Elements, e tenho uma pergunta relacionada ao perdão divino.

Na seção 3.3.2.2.3, o senhor explica que ser “culpado” significa “passível de pena”. Encerra, então, a seção assim: “... alguém que outrora foi culpado pode, em virtude do perdão divino, não mais ser culpado, a despeito do fato indelével de que cometeu o pecado pelo qual foi condenado justamente. Como a pena, o perdão expia a culpa legal da pessoa, de modo que não seja mais condenada e passível de pena”.

(Daqui em diante, vou colocar a palavra “culpado” entre aspas0, quando pretender que ela seja entendida segundo aquela definição de “passível de pena”).  

Em seguida, na seção 3.3.3.4, o senhor concilia a misericórdia e a justiça divinas. Na página 95, o senhor diz: “… Cristo, enquanto nosso substituto e representante, assume a pena devida a todo pecado, de modo que as demandas da justiça divina retributiva sejam plenamente satisfeitas”.

Se Cristo levou sobre si a pena que nos era devida, sendo nosso substituto e representante, e tal pena plenamente satisfez as demandas da justiça divina retributiva, significa que não somos mais “passíveis de pena” e, portanto, não mais “culpados”. Contudo, voltando àquela seção 3.3.2.2.3, o senhor diz: “alguém que outrora foi culpado pode, em virtude do perdão divino, não mais ser culpado, a despeito do fato indelével de que cometeu o pecado”. Porém, não somos “culpados”, como acabei de mostrar! Se os cristãos já não são mais “culpados”, em virtude da pena substitutiva e representativa de Cristo, não precisamos do perdão divino para que não sejamos mais “culpados”. Assim, o que faz o perdão divino que já não o faz a pena substitutiva e representativa de Cristo?

Não penso que queiramos redefinir a palavra culpado e dizer algo como “o perdão divino remove nossos pecados, mesmo que nunca os tenhamos praticado”, pois isto parece depender de uma definição de culpado que o senhor combateu na seção 3.3.2.2.2 e .3, quando argumentou contra os oponentes de Garland (eles definem culpa como “simplesmente a propriedade ou fato de ter cometido o crime” (p. 85)).

Foi por isso que fiquei confuso quando li uma frase logo adiante na página 95 que dizia: “Com as demandas da justiça divina devidamente satisfeitas, Deus pode, por sua vez, perdoar-nos os nossos pecados”. Se a justiça divina é satisfeita e não somos mais “passíveis de pena” (“culpados”), obter o perdão divino parece supérfluo e desnecessário, uma vez que não temos nenhuma “culpa” a ser perdoada.

O que não estou vendo nisso tudo?

John

United States

Dr. Craig responde


A

O que você não está vendo, John, é minha abordagem mais completa destas questões em meu livro mais extenso Atonement and the Death of Christ (Expiação e a morte de Cristo), ainda não publicado, que teve de ser omitida desse livro tão abreviado breve para a série Elements.

Fausto Socino, como você bem sabe pelo livro da série Elements, igualmente argumentou, contra os reformadores, que o perdão e a satisfação são logicamente incompatíveis. Se Deus já foi satisfeito, não há nada a perdoar. Em seu novo livro sobre a expiação, Eleonore Stump repete esta mesma objeção sociniana em oposição a teorias que exigem a satisfação da justiça divina como base para o perdão divino.

Penso que Hugo Grócio, o jurista internacional do século XVII, respondeu corretamente a Socino neste quesito. A seguir vai minha descrição da resposta de Grócio a Socino, no capítulo VI de sua Defesa da fé católica acerca da satisfação de Cristo, contra Fausto Socino (1617).

Aqui, Grócio trata da alegação feita por Socino segundo a qual a satisfação pelos pecados e a remissão por esses mesmos pecados são logicamente incompatíveis. Grócio faz distinção entre a estrita execução de uma dívida ou pena e a satisfação pela mesma. Se uma dívida ou pena são quitadas pela execução da mesma coisa exigida, não há remissão dada pelo credor ou governante. Porém, quando se faz algo além do que se é obrigado a executar, “é necessário que algum ato do credor ou governante seja acrescentado, e tal ato é própria e comumente denominado remissão” (VI.11). Esta substituição pela execução estrita, quando aceita pelo credor ou governante, tem “um nome especial no direito, a saber, satisfação, que é, às vezes, contrastada com a execução no sentido mais estrito da palavra” (ibid.). No direito civil, a quitação de uma dívida sem qualquer tipo de execução é denominada “aceptilação”. “No entanto, em relação à pena, não há um nome próprio... sendo, porém, comumente denominada de graça, perdão, indulto ou abolição” (VI.13).

No caso da remissão de pecados, é remissão com satisfação antecedente. Socino erra ao pensar que as duas noções estão em conflito, pois toda satisfação é permitida, desde que haja oportunidade para remissão por parte do credor ou governante. O credor ou governante podem aceitar ou rejeitar o substituto para a execução estrita e, se aceitá-lo, já se dá como satisfatório. A alegação de Socino segundo a qual, “pela satisfação, a dívida é total e imediatamente extinta... não é verdadeira, a menos que a satisfação, contrariamente ao uso legal, seja tomada em referência à execução, por parte do devedor, da mesma coisa que era devida...” (VI.16). Porém, quando outro alguém executa no lugar do devedor e outra coisa é executada no lugar do que era devido, o credor ou governante deve agir para aceitar o substituto.

Grócio faz a interessante observação de que a virtude que Deus exibe ao remir os pecados não é a liberalidade, mas, sim, a clemência (VI.25). Deus perdoa pecados, assim como governantes perdoam crimes (VI.3). A beneficência divina nos foi mostrada em que, “quando Deus foi movido com grande ódio contra o pecado e poderia totalmente se recusar a nos poupar... pelo contrário, a fim de nos poupar, ele aceitou uma execução que não era obrigado a aceitar, mas também a elaborou segundo sua própria vontade... Assim, a clemência de Deus não é subvertida pela execução da pena, uma vez que a aceitação de tal execução, assim como sua elaboração, proveio somente da clemência” (VI.26).

A genialidade da teoria da substituição penal é que ela permite a plena satisfação das demandas da justiça divina retributiva, sem que elas sejam simplesmente varridas para debaixo do tapete, ao mesmo tempo que dá plena expressão ao amor de Deus para com os pecadores condenados. O que Deus, em sua misericórdia, abdica é a punição de pecadores em suas próprias pessoas; antes, em seu amor por elas, ele toma para si a pena delas. Como bem vislumbrou Grócio, a aceitação de um substituto para o que é devido exige, sim, uma dispensação especial por parte do credor ou juiz. Essa dispensação especial, conforme observa Grócio, é chamada perdão. É precisamente com base na satisfação vicária feita por Cristo em relação às demandas da justiça divina que um Deus perfeitamente justo pode, em sua misericórdia, oferecer-nos perdão, que nós, então, podemos aceitar ou rejeitar.

Vale notar também que, no sistema de justiça americano, indultos concedidos com base na inocência e na condenação injusta mostram que o perdão é plenamente compatível com a satisfação das demandas da justiça. Indultos em favor da justiça corretiva não implicam a culpa da pessoa envolvida ou sua incapacidade de satisfazer as demandas da justiça. Na verdade, muito pelo contrário. Além disso, a vasta maioria dos indultos é concedida após o pleno cumprimento da sentença criminal. O U.S. Office of the Pardon Attorney sequer permitirá pedidos de indulto presidencial até que cinco anos se tenham passado desde que a sentença do criminoso tenha sido plenamente cumprida. Um indulto, no caso, não implica que o indultado tenha sido incapaz de satisfazer às demandas da justiça. Ademais, ainda que o condenado não seja mais passível de pena, o indulto serve para lhe restaurar todos os direitos civis anulados pela condenação. Igualmente, o perdão divino serve para nos outorgar os plenos direitos e privilégios de um filho de Deus, como a adoção na família de Deus (Efésios 1.5), a herança no céu (1Pedro 1.4), a cidadania no reino de Deus (Filipenses 3.20), o acesso ao Pai (Romanos 5.2) e assim por diante (todos estes, por sinal, noções legais).

Porque Cristo levou sobre si a pena por nossos pecados, Deus pode ser tanto justo quanto justificador daquele que tem fé em Jesus (Romanos 3.26). Porque a justiça de Deus foi plenamente satisfeita, Deus pode nos perdoar com base no sacrifício de Cristo, sem prejuízo a sua justiça. Paulo diz: “E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões ... vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos;

tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz” (Colossenses 2.13-14). Perdão, neste sentido legal, baseia-se no fato de que a pena foi vicária e plenamente paga e, portanto, podemos ser perdoados.

- William Lane Craig