Cosmologia: uma religião para ateus?
Summary
No premiado filme “A Teoria de Tudo”, o jovem Stephen Hawking se apresenta a sua futura esposa, Jane, como estudante de cosmologia. Quando ela pergunta o que isso quer dizer, ele responde: “É uma espécie de religião para ateus inteligentes”. Neste artigo, o doutor Craig examina criticamente esta afirmação, conforme exposta no filme.
No premiado filme “A Teoria de Tudo”, Stephen Hawking se apresenta a sua futura esposa, Jane, descrevendo-se como cosmólogo. Quando Jane pergunta o que isso quer dizer, ele responde: “É uma espécie de religião para ateus inteligentes”.
A observação é tanto provocante quanto reveladora. É claro que a cosmologia não é literalmente uma religião. Trata-se de um ramo da astrofísica que estuda a estrutura em grande escala do universo. Pois bem, se alguém é naturalista, isto é, alguém que acredita que tudo o que existe é o espaço-tempo e seu conteúdo, então, em certo sentido, alguém que estuda o universo estuda a realidade última. É a este mesmo projeto que se dedica o teólogo, exceto pelo fato de que, para o teólogo, a realidade última é Deus, e não o universo. O teólogo tem uma visão mais ampla e abrangente da realidade do que o tem o naturalista, pois crê numa realidade que transcende o universo. O universo é uma realidade subordinada, criada por Deus. Para cosmólogos teístas — como George Ellis, talvez o maior cosmólogo vivo do mundo, que também é retratado no filme —, a cosmologia não é, pois, uma espécie de religião, mas o estudo de uma realidade subordinada. Para o naturalista, porém, é fácil enxergar como a cosmologia poderia virar quase religiosa.
Ora, a cosmologia se divide em duas subdisciplinas, que mais uma vez têm paralelos intrigantes na teologia. A primeira subdisciplina é a cosmogonia, que se trata do estudo da origem do universo. Paralelamente está o locus, categoria ou doutrina teológica da criação, particularmente creatio originans ou criação originadora. A teologia cristã sustenta que Deus criou o universo do nada algum tempo finito atrás. Logo, o universo não é eterno no passado, mas teve um começo.
A segunda subdisciplina da cosmologia é a escatologia, que se trata do estudo do destino futuro do universo. Quem entre vocês tiver familiaridade com teologia reconhecerá de imediato que o termo, na verdade, foi pego emprestado da teologia. Mais uma vez, a escatologia teológica tem escopo mais amplo do que a escatologia física. Pois, enquanto a escatologia física estuda o destino futuro do universo, dadas as condições presentes e as leis da natureza, a escatologia teológica também inclui temas mais abrangentes, como o estado da alma após a morte, a ressurreição, os novos céus e a nova terra e céu e inferno. Mais uma vez, podemos enxergar como o cosmólogo naturalista que estuda cosmogonia e escatologia física talvez pense estar envolvido em um tipo de atividade religiosa.
Embora a escatologia física faça uma rápida aparição no filme “A Teoria de Tudo”, é a cosmologia que domina. O filme se concentra em duas teorias cosmogônicas que Hawking defende: a primeira é o modelo padrão do Big Bang com base inteiramente na Teoria Geral da Relatividade; a segunda é a chamada proposta “sem limite”, que Hawking desenvolveu em colaboração com James Hartle da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, com base na incorporação da física quântica no modelo padrão com o fim de produzir uma teoria quântica da gravidade. O filme explora as supostas implicações teológicas das duas teorias.
Para entender melhor essas supostas implicações, devo falar um pouco sobre essas duas abordagens à cosmogonia. Primeiro, o modelo padrão relativista geral. Antes da década de 1920, os cientistas sempre supuseram que o universo era estacionário e eterno. Tremores do terremoto iminente prestes a derrubar esta cosmologia tradicional se sentiram pela primeira vez em 1917, quando Albert Einstein fez uma aplicação cosmológica de sua recém-descoberta teoria gravitacional, a Teoria Geral da Relatividade (TG). Para sua decepção, Einstein descobriu que sua TG não permitiria um modelo eterno e estático do universo, a menos que ele manipulasse as equações a fim de compensar o efeito gravitacional da matéria. Durante a década de 1920, o matemático russo Alexander Friedmann e o astrônomo belga Georges Lemaître decidiram levar as equações de Einstein ao pé da letra e, consequentemente, formularam independentemente um do outro modelos de um universo em expansão.
Em 1929, o astrônomo americano Edwin Hubble, por meio de incansáveis observações no Observatório do Monte Wilson, fez uma sensacional descoberta que validou a teoria de Friedmann e Lemaître. Ele descobriu que a luz de galáxias distantes parecia ser mais vermelha do que se esperava. Era muito mais plausível que este “deslocamento vermelho” na luz fosse devido ao alongamento das ondas de luz, à proporção que as galáxias se afastam de nós. Toda vez que Hubble mirava seu telescópio no céu noturno, observava o mesmo deslocamento vermelho na luz das galáxias. Parecia que estamos no centro de uma explosão cósmica e todas as outras galáxias fogem de nós a velocidades fantásticas!
Pois bem, de acordo com o modelo de Friedmann-Lemaître, não estamos, na verdade, no centro do universo. Antes, um observador em qualquer galáxia olhará e perceberá as outras galáxias como se estivessem se afastando de si mesmo. Isso porque, de acordo com a teoria, é, na verdade, o próprio espaço que está em expansão. As galáxias estão de fato em repouso no espaço, mas recuam umas das outras à medida que o próprio espaço se expande.
O modelo de Friedmann-Lemaître veio, então, a ser conhecido como a teoria do Big Bang ou Grande Expansão. O nome, porém, pode gerar equívocos. Pensar na expansão do universo como uma espécie de explosão pode nos fazer pensar equivocadamente que as galáxias estão se movendo e entrando em espaço vazio pré-existente a partir de um ponto central. Seria uma total falha de compreensão do modelo. A teoria é muito mais radical do que isso.
Ao rastrear a expansão do espaço de volta no tempo, tudo se aproxima cada vez mais. Eventualmente, a distância entre dois pontos quaisquer no espaço se torna zero. Mais perto do que isso, impossível! Naquele ponto, então, atingiu-se o limite de espaço e tempo. Espaço e tempo não podem ser recuados mais ainda. É literalmente o começo de espaço e tempo.
Para visualizar melhor, podemos retratar nosso espaço tridimensional como um disco bidimensional que encolhe à medida que se recua no tempo (Fig. 1).
Fig. 1. Representação geométrica do espaço-tempo. O disco bidimensional representa nosso espaço tridimensional. A dimensão vertical representa o tempo. À medida que se recua no tempo, o espaço encolhe até a distância entre dois pontos quaisquer ser zero. Espaço-tempo, portanto, representa a geometria de um cone. O ponto do cone é o limite de espaço e tempo.
Tradução de términos:
Time = Tempo
Space = Espaço
Initial Cosmological Singularity = Singularidade cósmica inicial
Eventualmente, a distância entre dois pontos quaisquer no espaço se torna zero. Assim, o espaço-tempo pode ser representado geometricamente como um cone. Significativo é que, embora um cone possa se estender indefinidamente em uma direção, ele possui um ponto de fronteira na outra direção. Como esta direção representa o tempo e o ponto de fronteira se encontra no passado, o modelo implica que o tempo passado é finito e teve um começo.
Como o espaço-tempo é a esfera em que toda matéria e energia existem, o começo do espaço-tempo também é o começo de toda matéria e energia. É o começo do universo.
Observe que não há absolutamente nada antes do limite inicial de espaço-tempo. Não nos equivoquemos com palavras, no entanto. Quando os cosmólogos dizem: “Não existe nada antes do limite inicial”, não querem dizer que existe uma situação anterior a ele, tratando-se de um estado de inexistência. Seria como tratar nada como se fosse algo! Pelo contrário, querem dizer que, no ponto de fronteira, é falso dizer que “existe algo antes deste ponto”.
O modelo padrão do Big Bang prevê, pois, um começo absoluto do universo. No filme, o modelo padrão é descrito na seguinte conversa entre Hawking e Jane:
Stephen: ... se Einstein está certo, se a Relatividade Geral está correta, o universo está em expansão, não é?
Jane: Sim.
Stephen: Então, se o tempo fosse revertido, o universo ficaria menor.
Jane: Faz sentido...
Stephen: Então, e se eu reverter o processo o máximo possível para ver o que acontece no começo do próprio tempo?
Jane: O começo do próprio tempo?
Stephen: O universo, enquanto fica cada vez mais pequeno, cada vez mais denso, cada vez mais quente, à medida que...
Jane: ... Rebobinamos o tempo?
...
Stephen: ... Não pare rebobinar! Você tem que voltar até o começo do tempo... Não pare de rebobinar... até chegar a... uma singularidade de espaço-tempo.
O modelo padrão, então, previu uma singularidade inicial. Havia suspeitas, contudo, de que, uma vez que o universo real não é perfeitamente semelhante ao modelo ideal de Friedmann e Lemaître, sua previsão de um começo singular do universo, enfim, fracassaria. Talvez a distribuição de matéria e energia no universo real não é homogênea o suficiente para que o universo encolha até uma singularidade. Em 1970, porém, Hawking, em colaboração com Roger Penrose, provou que a suposição de uma homogeneidade inicial era irrelevante. Os teoremas da singularidade de Hawking-Penrose mostraram que, desde que o universo seja regido pela RG [Relatividade Geral], nosso passado deve incluir uma singularidade inicial.
Ora, tal conclusão é profundamente inquietante a todo que pondera a seu respeito. Pois não se pode suprimir a seguinte pergunta: por que o universo veio a existir? Sir Arthur Eddington, ao contemplar o começo do universo, opinou que a expansão do universo era tão absurda e incrível que “sinto quase como uma indignação que alguém deva crer nisso — exceto eu mesmo”. [1] Ele, enfim, sentiu-se forçado a concluir: “O começo parece apresentar dificuldades insuperáveis, a menos que concordemos em observá-lo como algo francamente sobrenatural”. [2]
Em cena excluída da edição final do filme, Jane e Hawking refletem sobre as implicações dos teoremas da singularidade de Hawking-Penrose:
Jane: Não é incrível? Isso é poético...
Stephen: Pois é, é a teoria do buraco negro.
Jane: ... o tempo começou, em algum momento... houve um momento da criação...
Stephen: ...sim...
Jane: ... É obra de Deus!
Stephen: Acho que você deve saber que as equações são minhas... mas... bem colocado!
O modelo padrão do Big Bang prevê, então, um começo absoluto do universo. Se o modelo está correto, temos confirmação científica incrível da doutrina teológica da criação a partir do nada.
O modelo padrão está, então, correto, ou — o que é mais importante — ele está correto ao prever um começo do universo? A despeito de sua confirmação empírica, o modelo padrão do Big Bang precisará ser modificado de diversas maneiras. O modelo é baseado, como vimos, na Teoria Geral da Relatividade de Einstein. Mas a teoria de Einstein pára quando o espaço é encolhido em proporções subatômicas. Precisaremos introduzir a física quântica nesse ponto, e ninguém sabe exatamente como se deve fazê-lo.
O segundo modelo cosmogônico mencionado no filme é apena uma tentativa de casar a física quântica com a Relatividade Geral a fim de elaborar uma teoria quântica da gravidade que nos permitirá descrever o universo inicial. A chamada proposta “sem limite” desenvolvida por Stephen Hawking em colaboração de James Hartle (que, estranhamente, nunca é mencionado no filme) é conhecida como o modelo de Hartle-Hawking.
O modelo de Hartle-Hawking elimina a singularidade inicial ao transformar a geometria cônica do espaço-tempo clássico numa geometria curvada e regular, sem uma extremidade, de tal maneira que espaço-tempo se pareça com uma peteca de badminton (Fig. 2).
Fig. 2: O modelo de gravidade quântica. Na versão de Hartle-Hawking, o espaço-tempo é “arredondado” antes do tempo de Planck; por isso, embora o passado seja finito, não há nenhuma extremidade ou ponto de fronteira.
Tradução de términos:
Time = Tempo
Space = Espaço
10-43 Sec = 10-43 segundos
Isso se consegue por meio da introdução de números imaginários como Ö-1 para a variável de tempo nas equações gravitacionais de Einstein, que efetivamente elimina a singularidade. As leis da física, portanto, não param em nenhum ponto, permitindo descrição completa do espaço-tempo.
Em sua obra de divulgação de sua teoria, o campeão de vendas Uma breve história do tempo, Hawking revela um interesse teológico explícito. Ele admite que, pelo modelo padrão, pode-se legitimamente identificar a singularidade do Big Bang como o instante em que Deus criou o universo. [3] De fato, ele acha que inúmeras tentativas de evitar o Big Bang foram provavelmente motivadas pelo sentimento de que um começo do tempo “tem sabor de intervenção divina”. [4] Ele enxerga seu novo modelo como preferível ao modelo padrão, pois não haveria nenhuma extremidade de espaço-tempo em que “se deveria recorrer a Deus ou alguma nova lei”. [5] Hawking vê implicações teológicas profundas no novo modelo:
A ideia de que espaço e tempo formem uma superfície fechada sem limite ... tem implicações profundas para o papel de Deus nos acontecimentos do universo.... Desde que o universo tenha tido um começo, poderíamos supor que teve um criador. Se o universo, porém, é completamente encerrado em si mesmo, sem nenhum limite ou extremidade, ele não teria nem começo nem fim. Qual seria o lugar, então, de um criador? [6]
Hawking não nega a existência de Deus, mas pensa que seu modelo elimina a necessidade de um criador do universo.
No filme, as implicações teológicas do modelo de Hartle-Hawking surgem numa conversa entre Jane, Stephen e o amigo do casal, Jonathan:
Jane: Stephen mudou 180 graus. A grande nova ideia é que o universo não tem nenhum limite mesmo. Nenhum limite... nenhum começo...
Jonathan: Ah, não… Hum… Entendi… Eu (solta uma risada desajeitada), eu pensei que... hum... você tivesse provado que o universo tinha um começo e, portanto, a necessidade de um criador? Erro meu.
Stephen: Não... meu.
Jane: Stephen está em busca de uma única teoria que explique todas as forças no universo. Por isso, Deus deve morrer.
Jonathan: Hum... por que Deus deve morrer? Eu não consigo entender.
Jane: Os dois grandes pilares da física são a teoria quântica — as leis que regem os minúsculos elétrons, partículas e assim por diante — e a Relatividade Geral...
Jonathan: Ah, sim! Einstein!
Jane: … a teoria de Einstein — as leis que regem os enormes planetas e assim por diante. Mas os quantos e a relatividade...
Jonathan: ... não me diga … são diferentes!
Jane: ... Sequer jogam segundo as mesmas regras. Se o mundo fosse como arroz com feijão, aí ficaria fácil: é só rastrear um começo preciso, como Stephen fez uma vez. Um momento de criação... Aleluia, Deus vive. Se alguém acrescenta macarrão ao cardápio, tudo fica meio… fora de controle. Tudo vira uma bagunça terrível.
Jonathan: Caramba.
Jane: Deus voltou à lista das espécies ameaçadas.
Jonathan: (risos) Pois é, mas acho que ele vai superar tudo isso.
Como Jonathan percebeu corretamente, as implicações teológicas que Hawking busca tirar de seu modelo são muitíssimo suspeitas. Não existe sequer uma razão para o porquê de Deus não poder ter criado um universo descrito pelo modelo de Hartle-Hawking. Quando conversei com James Hartle em seu gabinete na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, ele não viu absolutamente nenhuma implicação teológica no modelo.
De fato, ao postular um tempo finito (imaginário) em superfície fechada antes do tempo de Planck, em vez de um tempo infinito em superfície aberta, tal modelo na realidade parece favorecer, e não invalidar, o fato de que tempo e o universo tiveram um começo. Essa teoria, se bem-sucedida, nos permitiria modelar o começo do universo sem uma singularidade inicial envolvendo densidade, temperatura, pressão infinitas, e assim por diante. Como, no entanto, indica o físico John Barrow, da Universidade de Cambridge, “esse tipo de universo quântico nem sempre existiu; vem a existir bem quando as cosmologias clássicas o fariam, mas não se inicia num Big Bang em que quantidades físicas são infinitas...”. [7] Barrow aponta que tais modelos são “muitas vezes descritos como se fornecessem um quadro de ‘criação a partir do nada’”, com a única ressalva de que, no caso, “não há nenhum ponto definido ... de criação”. [8]
O equívoco crucial de Hawking é sua suposição de que ter um começo implica ter um ponto de começo. Paradoxos gregos antigos sobre iniciar e parar há muito nos ensinam o contrário. Imagine que uma bala de canhão tenha um último instante em que está em repouso antes de ser atirada de uma arma. No caso, não existe nenhum ponto em que a bala de canhão comece a se mover pela primeira vez. Pois, em qualquer momento após seu instante final de repouso, haverá instante anterior em que já estava em movimento, ad infinitum. Todavia, ninguém diria que a bala de canhão não tenha uma trajetória finita e uma causa para o começo de seu movimento.
Ter um começo não implica ter um ponto de começo. O tempo começa a existir de qualquer forma para qualquer intervalo temporal finito que for escolhido, e há apenas um número finito de intervalos temporais iguais anteriores a isso. Essa condição se cumpre no modelo de Hartle-Hawking, bem como no modelo padrão.
Além disso, está longe do óbvio que, em qualquer interpretação realista do modelo de modelo de Hartle-Hawking, não haja de fato um ponto de começo. Usando o artifício matemático do tempo imaginário, Hawking consegue redescrever o universo de tal maneira que ele não tenha singularidade inicial. Hawking admite: “Somente se conseguíssemos conceber o universo do ponto de vista do tempo imaginário, não haveria singularidades ... Quando se volta para o tempo real em que vivemos, todavia, ainda parecerá haver singularidades”. [9] O modelo de Hawking é, portanto, um modo de re-descrever um universo com um ponto de começo singular, de tal maneira que aquela singularidade se transforma para ser eliminada. Assim, modelos de gravidade quântica, como o modelo padrão, implicam o começo do universo.
Em seu livro posterior The Grand Design [O grande projeto], escrito com Leonard Mlodinow, [10] o próprio Hawking parece endossar essa interpretação de seu modelo. Escrevem o seguinte:
Suponha que o começo do universo tenha sido como o Pólo Sul da terra, com graus de latitude desempenhando o papel do tempo. À medida que se deslocasse para o norte, os círculos de latitude constante, representando o tamanho do universo, expandiriam. O universo se iniciaria como um ponto do Pólo Sul, mas o Pólo Sul é como qualquer outro ponto. Perguntar o que acontece antes do começo do universo seria uma questão sem sentido, pois não há nada ao sul do Pólo Sul. Neste quadro, o espaço-tempo não tem limite — as mesmas leis da natureza valem no Pólo Sul, assim como em outros lugares (pp. 134-135).
Esta passagem é intrigante por representar uma interpretação bem diferente do modelo em relação ao que vimos em Uma breve história do tempo.
Explico. Em seu modelo, Hawking emprega números imaginários (como Ö-1) para a variável do tempo em suas equações a fim de se livrar da singularidade cosmológica inicial, que é o limite do espaço-tempo no modelo padrão do Big Bang. O segmento inicial do espaço-tempo, em vez de terminar em um ponto (como um cone), é “arredondado” (como uma peteca de badminton). O “Pólo Sul” dessa superfície arredondada é como qualquer outro ponto na superfície (daí a ideia de que é “sem limite”). Uma vez que o “tempo imaginário” se comporta como uma dimensão do espaço, Hawking interpretou seu universo “sem limite” como se “apenas existisse”.
Em The Grand Design, porém, o Pólo Sul é interpretado como se representasse o ponto de começo tanto para o tempo quanto para o universo. Hawking permite que os círculos de latitude desempenhem o papel do tempo, que tem um ponto de começo no Pólo Sul. Quando Hawking fala do “problema do tempo com um começo”, refere-se à “velha objeção ao universo com um começo” (p. 135), objeção que seu modelo remove. Qual seria, então, a velha objeção? A objeção, diz ele, é a pergunta: “o que aconteceu antes do começo do universo?”. Hawking está certo de que a pergunta não faz sentido segundo seu modelo; ele deixa, porém, de mencionar que a questão é igualmente sem sentido segundo o modelo padrão do Big Bang, uma vez que não existe nada anterior à singularidade cosmológica inicial. Nos dois modelos, o universo tem um começo temporal absoluto, de modo que não faz sentido perguntar o que aconteceu antes.
Antes, a pergunta real é esta: por que o universo começou a existir? O modelo de Hartle-Hawking não trata da questão. Por quê? No modelo sem limite, a física apenas começa no “Pólo Sul”. Não existe física do não-ser. Além disso, não há nada no modelo que implique que aquele ponto veio a existir sem uma causa. De fato, a ideia de que o ser poderia surgir sem uma causa a partir do não-ser parece metafisicamente absurda.
Assim, tanto o modelo padrão quanto o modelo da gravidade quântica de Hartle-Hawking se unem ao prever a finitude do passado e o começo do universo. As inferências de Hawking acerca das implicações teológicas do modelo se baseiam em erros filosóficos. É lamentável que um cientista tão talentoso tenha se equivocado com esses erros filosóficos. Os dois modelos estão, portanto, em perfeito acordo com a doutrina judaico-cristã da criação a partir do nada.
Mencionei que a escatologia física faz raras aparições no filme “A Teoria de Tudo”. Aparece somente na penúltima e comovente cena do filme. Hawking é indagado: “Você disse que não crê em Deus. Você tem uma filosofia de vida que o ajude?”. Ele responde recorrendo à religião da cosmologia:
É claro que somos apenas uma raça avançada de primatas em um planeta insignificante, orbitando ao redor de uma estrela muito mediana, no subúrbio mais periférico de uma entre centenas de bilhões de galáxias. Mas, desde o alvorecer da civilização, as pessoas anseiam por entender a ordem subjacente ao mundo. Deve haver algo muito especial sobre as condições limítrofes do universo. Mas o que pode ser mais especial do que o fato de que não há limite? E não deveria haver limite à empreitada humana. Somos todos diferentes. Por pior que a vida pareça, sempre existe algo que você pode fazer e se dar bem nisso. Enquanto há vida, há esperança.
Isso mesmo. Palmas para a coragem e perseverança desse homem incrível diante de obstáculos quase impossíveis. Porém, mesmo que fosse verdade que, enquanto há vida, há esperança, a lição da escatologia física é que, na ausência de Deus, um dia não haverá vida e, portanto, não haverá esperança. Já no século XIX, os cientistas perceberam que a aplicação da Segunda Lei da Termodinâmica ao universo como um todo implicava uma sombria conclusão escatológica: dado tempo suficiente, o universo, enfim, sofrerá “morte térmica”. A astrônoma Beatrice Tinsley, da Universidade Yale, descreveu o destino de um universo em expansão com estas palavras:
Se o universo tem uma baixa densidade, sua morte será fria. Ele se expandirá para sempre em velocidade cada vez mais lenta. As galáxias transformarão todo seu gás em estrelas, e as estrelas se consumirão. Nosso próprio sol se tornará um resíduo frio e morto, sendo levado entre os cadáveres de outras estrelas numa Via Láctea cada vez mais isolada. [11]
A física de partículas elementares sugere que, dali em diante, os prótons decairão em elétrons e pósitrons, de modo que o espaço estará preenchido por um gás rarefeito tão disperso que a distância entre um elétron e um pósitron será aproximadamente o tamanho da presente galáxia. No devido tempo, todos os buracos negros evaporarão completamente e toda a matéria no universo em contínua expansão será reduzida a gás de baixa densidade com partículas elementares e radiação. Não há esperança de retorno dessa queda no esquecimento. O universo se tornará inevitavelmente cada vez mais frio, sombrio, difuso e morto.
Reflexão sobre essa conclusão escatológica levou alguns filósofos a questionar o sentido da própria vida. Em passagem famosa, o filósofo britânico Bertrand Russell lamentou:
Que o homem é o produto de causas que não tinham previsto o fim que alcançavam; que sua origem, crescimento, suas esperanças e temores, seus amores e crenças não são nada além do resultado de colocações acidentais de átomos; que nenhum fervor, nenhum heroísmo, nenhuma intensidade de pensamento e sentimento é capaz de preservar a vida de alguém além do túmulo; que todas as labutas dos séculos, toda a devoção, toda a inspiração, toda clareza meridiana do gênio humano estão destinadas à extinção na vasta morte do sistema solar, e que todo templo da realização do Homem deve inevitavelmente queimar sob os escombros de um universo em ruínas — todas estas coisas, se não estão bem acima de qualquer contestação, são todavia praticamente tão certas que nenhuma filosofia que as rejeita pode esperar que continue em pé. Somente no cadafalso destas verdades, somente no firme fundamento do desespero inabalável, pode a habitação da alma, doravante, ser construída em segurança. [12]
A aguçada mente filosófica de Russell viu mais claramente do que Hawking as implicações corretas de um cosmo sem Deus.
Russell, contudo, não sabia dos indícios para um começo do universo e, portanto, da necessidade de um criador cósmico. Quando lhe foi pedido para explicar a existência do universo, Russell respondeu: “O universo simplesmente existe, e isto é tudo”. Esta resposta é compreensível segundo a visão einsteiniana de um universo eterno, mas se prova inadequada quando confrontada com o fato do começo temporal do universo. Este começo aponta além do universo, para seu fundamento em um criador transcendente. Se tal criador do universo existe mesmo, Ele oferece a melhor esperança de libertação das sombrias implicações da escatologia física.
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[1]
Arthur Eddington, The Expanding Universe (Nova Iorque: Macmillan, 1933), p. 124.
Arthur Eddington, The Expanding Universe (Nova Iorque: Macmillan, 1933), p. 124.
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[2]
Ibid., p. 178.
Ibid., p. 178.
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[3]
Stephen Hawking, A Brief History of Time (Nova Iorque: Bantam Books, 1988), 9 [publicado em português com o título Uma breve história do tempo (Rio de Janeiro: Rocco, 1988)].
Stephen Hawking, A Brief History of Time (Nova Iorque: Bantam Books, 1988), 9 [publicado em português com o título Uma breve história do tempo (Rio de Janeiro: Rocco, 1988)].
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[4]
Ibid., 46.
Ibid., 46.
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[5]
Ibid., 136.
Ibid., 136.
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[6]
Ibid., 140-141.
Ibid., 140-141.
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[7]
John D. Barrow, Theories of Everything (Oxford: Clarendon Press, 1991), p. 68.
John D. Barrow, Theories of Everything (Oxford: Clarendon Press, 1991), p. 68.
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[8]
Ibid., pp. 67-68.
Ibid., pp. 67-68.
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[9]
Hawking, Brief History of Time, pp. 138-139.
Hawking, Brief History of Time, pp. 138-139.
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[10]
Publicado em português com o título O grande projeto (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011).
Publicado em português com o título O grande projeto (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011).
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[11]
Tinsley, “Big Bang”, p. 105.
Tinsley, “Big Bang”, p. 105.
-
[12]
Bertrand Russell, “A Free Man’s Worship”.
Bertrand Russell, “A Free Man’s Worship”.