A existência de Deus e o começo do universo
Summary
O argumento cosmológico kalam, ao mostrar que o universo começou a existir, demonstra que o mundo não é um ser necessário e, portanto, não é autoexplicativo com respeito à sua existência. Dois argumentos filosóficos e duas confirmações científicas são apresentadas a favor do começo do universo. Uma vez que tudo o que começa a existir tem uma causa, deve haver uma causa transcendente do universo.
Fonte: "The Existence of God and the Beginning of the Universe", Truth: A Journal of Modern Thought / An International, Inter-Disciplinary Journal of Christian Thought 3 (1991): 85-96.
Introdução
“A primeira pergunta que deveria ser feita”, escreveu G. W. Leibniz, é “por que existe algo, em vez de nada?”. [1]Esta pergunta parece conter uma profunda força existencial, sentida por alguns dos maiores pensadores da humanidade. De acordo com Aristóteles, a filosofia começa com um sentido de encanto com o mundo e a pergunta mais profunda que um homem pode fazer diz respeito à origem do universo. [2] Em sua biografia de Ludwig Wittgenstein, Norman Malcolm relata que Wittgenstein contou que, às vezes, tinha certa experiência que poderia ser melhor descrita ao dizer que, “quando a tenho, encanto-me com a existência do mundo. Fico, então, inclinado a usar frases como ‘Como é extraordinário que algo exista!’”. [3] Da mesma forma, um filósofo contemporâneo observa: “... minha mente com frequência parece cambalear sob a imensa importância que esta pergunta tem para mim. Que algo sequer exista me parece uma questão que causa o mais profundo assombro”. [4]
Por que existe algo, em vez de nada? Leibniz respondeu a esta pergunta argumentando que algo existe em vez de nada porque existe um ser necessário que traz consigo a razão para sua existência e é a razão suficiente para a existência de todo ser contingente. [5]
Embora Leibniz (seguido por alguns filósofos contemporâneos) considerasse a não-existência de um ser necessário algo logicamente impossível, uma explicação mais modesta da necessidade da existência do ponto de vista do que ele chama “necessidade factual” foi dada por John Hick: um ser necessário é um ser eterno, incausado, indestrutível e incorruptível. [6] Leibniz, evidentemente, identificou o ser necessário como Deus. Seus críticos, no entanto, objetaram à sua identificação, argumentando que ao próprio universo material poderia ser conferida a posição de ser necessário. “Por que”, indagou David Hume, “o universo material não pode ser o Ser necessário existente, de acordo com a pretensa explicação da necessidade?”. [7] É esta a posição típica do ateu. Ateus não se sentem obrigados a adotar a visão segundo a qual o universo veio à existência a partir do nada, por nenhum motivo qualquer; antes, consideram o próprio universo como uma espécie de ser factualmente necessário: o universo é eterno, incausado, indestrutível e incorruptível. Como formulou Russell com muita clareza, “... o universo simplesmente está aí, e isto é tudo”. [8] Será que o argumento de Leibniz nos deixa, então, em impasse racional, ou será que não existiriam alguns outros recursos disponíveis para esclarecer o enigma da existência do mundo? Parece-me que existem, sim. Valerá lembrar que uma propriedade essencial de um ser necessário é eternidade. Se, portanto, viesse a se tornar plausível que o universo tenha começado a existir e, logo, não é eterno, seria possível até essa medida ao menos demonstrar a superioridade do teísmo enquanto cosmovisão racional.
Pois bem, existe uma forma do argumento cosmológico, muito negligenciada hoje, mas de grande importância histórica, que visa precisamente à demonstração de que o universo tenha tido um começo. [9] Com origem nas tentativas de teólogos cristãos de refutar a doutrina grega da eternidade da matéria, esse argumento evoluiu para formulações sofisticadas por teólogos medievais judeus e muçulmanos, que, por sua vez, transmitiram-nas de volta ao ocidente latino. O argumento, portanto, possui amplo apelo inter-religioso, tendo já sido defendido por muçulmanos, judeus e cristãos, tanto católicos quantos protestantes.
O argumento, que cunhei de argumento cosmológico kalam, pode ser exposto como segue:
1. Tudo o que começa a existir tem um começo para sua existência.
2. O universo começou a existir.
2.1 Argumento baseado na impossibilidade de um infinito real.
2.11 Um infinito real não pode existir.
2.12 Um regresso de eventos temporal infinito é um infinito real.
2.13 Logo, um regresso de eventos temporal infinito não pode existir.
2.2 Argumento baseado na impossibilidade da formação de um infinito real por adição sucessiva.
2.21 Um conjunto formado por adição sucessiva não pode ser realmente infinito.
2.22 A série temporal de eventos passados é um conjunto formado por adição sucessiva.
2.23 Logo, a série temporal de eventos passados não pode ser realmente infinita.
3. Logo, o universo tem uma causa para sua existência.
Examinemos mais detidamente este argumento.
Defesa do argumento cosmológico kalam
Segunda premissa
Obviamente, a premissa crucial neste argumento é (2), e os dois argumentos independentes são propostos a favor dela. Atentemos primeiramente, então, a um exame dos argumentos favoráveis.
Primeiro argumento favorável
A fim de entender (2.1), precisamos entender a diferença entre um infinito potencial e um infinito real. Grosso modo, um infinito potencial é um conjunto que aumenta rumo ao limite da infinidade, mas nunca chega lá. Um conjunto assim é realmente indefinido, e não infinito. O símbolo deste tipo de infinidade, usado em cálculo, é ∞. Infinito real é um conjunto em que o número de elementos realmente é infinito. O conjunto não cresce rumo à infinidade; já é infinito, “completo”. O símbolo deste tipo de infinidade, usado em teoria dos conjuntos para designar conjuntos que têm número infinito de elementos, tais como {1, 2, 3, ...}, é À0. Ora, (2.11) entende não que um número potencialmente infinito de coisas não possa existir, mas que um número realmente infinito de coisas não possa existir. Pois, se um número realmente infinito de coisas pudesse existir, surgiriam todos os tipos de absurdos.
Talvez a melhor maneira de internalizar a verdade de (2.11) seja por meio de uma ilustração. Permita-me usar uma das minhas favoritas, o Hotel de Hilbert, produto da mente do grande matemático alemão David Hilbert. Imaginemos um hotel com um número finito de quartos. Suponha ainda que todos os quartos estejam ocupados. Quando um novo hóspede chega à procura de um quarto, o gerente pede desculpas, dizendo: “Peço desculpas, mas todos os quartos estão ocupados”. Agora, imaginemos um hotel com um número infinito de quartos e suponha novamente que todos os quartos estejam ocupados. Não há nem sequer um quarto vago em todo o hotel infinito. Agora, suponha que um novo hóspede apareça e peça um quarto. “Mas é claro!”, diz o gerente, que imediatamente desloca a pessoa que se hospedava no quarto 1 para o quarto 2, a pessoa no quarto 2 para o quarto 3, a pessoa no quarto 3 para o quarto 4, e assim por diante, até o infinito. Em consequência destas mudanças de quarto, o quarto 1 agora está vago e o novo hóspede, agradecido, pode entrar nele. Mas lembre-se: antes dele chegar, todos os quartos já estavam ocupados! O que é mais curioso, segundo os matemáticos, é que agora não há mais pessoas no hotel do que havia antes: o número é justamente infinito. Como é que isso acontece? O gerente acabou de colocar o nome do novo hóspede na lista e de lhe entregar a chave. Como, então, não existe uma pessoa a mais do que antes no hotel? A situação fica cada vez mais estranha. Suponha que uma infinidade de novos hóspedes aparecesse na recepção à procura de um quarto. “Claro, claro!”, diz o gerente, que passa a deslocar a pessoa que se hospedava no quarto 1 para o quarto 2, a pessoa no quarto 2 para o quarto 4, a pessoa no quarto 3 para o quarto 6, e assim por diante, sempre colocando o ocupante anterior no quarto cujo número seja o dobro de seu quarto anterior. Consequentemente, todos os quartos de número ímpar ficam vagos e a infinidade de novos hóspedes pode ser acomodada facilmente. Ainda assim, antes de chegarem, todos os quartos já estavam ocupados! Mais uma vez, é muito estranho que o número de hóspedes no hotel seja o mesmo de antes após a infinidade de novos hóspedes se acomodar ali, embora houvesse o mesmo número de novos hóspedes que de antigos. De fato, o gerente poderia repetir o processo infinitas vezes e, ainda assim, jamais haveria uma única pessoa a mais no hotel do que antes.
O Hotel de Hilbert é muito mais estranho do que o matemático alemão suspeitava. Suponha que alguns hóspedes comecem a sair do hotel. Suponha que o hóspede do quarto 1 vá embora. Agora não existe uma pessoa a menos no hotel? Não segundo os matemáticos — mas é só perguntar à moça que arruma as camas! Suponha que os hóspedes nos quartos de número 1, 3, 5, ... vão embora. No caso, um número infinito de pessoas deixou o hotel, mas, segundo os matemáticos, não há menos pessoas no hotel — mas não queira perguntar nada à moça da lavanderia! De fato, a cada dois hóspedes, um poderia sair, e, mesmo repetindo este processo infinitas vezes, não haveria menos pessoas no hotel. Suponha, no entanto, que as pessoas nos quartos de número 4, 5, 6, ... tenham saído. Numa tacada só, o hotel estaria praticamente vazio, a lista de hóspedes, reduzida a três nomes, e o infinito, convertido em finito. Mesmo assim, ainda seria verdade que o mesmo número de hóspedes tenha saído desta vez em comparação com o momento em que os hóspedes dos quartos de número 1, 3, 5, ... saíram. Será que alguém acredita sinceramente que um hotel assim possa existir na realidade? Absurdos desse tipo ilustram a impossibilidade da existência de um número de coisas realmente infinito.
Isso nos leva a (2.12). A verdade da premissa parece bastante óbvia. Se o universo nunca começou a existir, então, antes do evento presente, existiu um número realmente infinito de eventos anteriores. Assim, uma série de eventos sem começo no tempo implica a existência de um número de coisas realmente infinito, a saber, eventos passados.
Dada a verdade de (2.11) e (2.12), a conclusão (2.13) segue logicamente. A série de eventos passados deve ser finita e ter um começo, mas, como o universo não é distinto da série de eventos, segue que o universo começou a existir.
A esta altura, deve valer a pena considerar diversas objeções que podem ser colocadas contra este argumento. Primeiramente, consideremos objeções a (2.11). Wallace Matson questiona que a premissa deva significar que um número de coisas realmente infinito seja logicamente impossível; porém, é fácil mostrar que um conjunto desses é logicamente possível. Por exemplo, a série de números negativos {... -3, -2, -1} é um conjunto realmente infinito sem nenhum primeiro elemento. [10] O erro de Matson aqui está em pensar que (2.11) signifique afirmar a impossibilidade lógica de um número de coisas realmente infinito. O que a premissa expressa é a impossibilidade concreta ou factual de um infinito real. Para ilustrar a diferença entre uma possibilidade real e uma possibilidade lógica: não existe nenhuma impossibilidade lógica que alguém venha a existir sem uma causa, mas tal circunstância pode muito bem ser realmente ou metafisicamente impossível. Do mesmo modo, (2.11) afirma que os absurdos acarretados pela existência concreta de um infinito real mostram que tal existência seja metafisicamente impossível. Consequentemente, pode-se conceber que, na esfera conceitual da matemática, é possível falar coerentemente, dados certos axiomas e convenções, em conjuntos infinitos de números, mas isto de forma alguma implica que um número de coisas realmente infinito seja realmente possível. Pode-se também observar que a escola matemática do intuicionismo nega que sequer a série de números seja realmente infinita (consideram-na apenas potencialmente infinita), de tal maneira que apelar a séries de números como exemplos de infinitos reais é procedimento discutível.
J. L. Mackie, já falecido, também objetou a (2.11), afirmando que os absurdos são resolvidos ao observar que, para grupos infinitos, o axioma “o todo é maior que sua parte” não se sustenta, como ocorre com grupos finitos. [11] Igualmente, Quentin Smith comenta que, uma vez que entendamos que um conjunto infinito tem um subconjunto próprio que possui o mesmo número de elementos que o próprio conjunto, as situações supostamente absurdas se tornam “perfeitamente críveis”. [12] Na minha opinião, porém, é precisamente esta característica da teoria de conjuntos infinitos que, quando traduzida para a esfera do real, produz resultados perfeitamente incríveis — por exemplo, o Hotel de Hilbert. Além disso, nem todos os absurdos advêm da negação do axioma de Euclides por parte da teoria de conjuntos infinitos: os absurdos ilustrados pelos hóspedes saindo do hotel advêm dos resultados contraditórios quando as operações inversas de subtração ou divisão são feitas usando números transfinitos. No caso, o argumento contra um conjunto de coisas realmente infinito é decisivo.
Por fim, pode-se notar a objeção de Sorabji, que sustenta que ilustrações como o Hotel de Hilbert não envolvam nenhum absurdo. Para entender o que está errado com o argumento kalam, ele nos pede para visualizar duas colunas paralelas que comecem no mesmo ponto e se estendam na distância infinita — uma coluna de anos passados e a outra de dias passados. O sentido em que a coluna de dias passados não é maior que a coluna de anos passados, diz Sorabji, é que a coluna de dias não “ressaltará” além da extremidade da outra coluna, visto que nenhuma delas tem uma extremidade. Pois bem, no caso do Hotel de Hilbert, existe a tentação de pensar que algum hóspede infeliz na extremidade cairá para fora no espaço. Mas não há extremidade: a linha de hóspedes não ressaltará além da extremidade da linha de quartos. Uma vez que se entenda isso, o resultado é simplesmente uma verdade explicável — mesmo que surpreendente e estimulante — sobre a infinidade. [13] Ora, Sorabji com certeza está correto, como vimos, que o Hotel de Hilbert ilustra uma verdade explicável acerca da natureza do infinito real. Se um número de coisas realmente infinito pudesse existir, um Hotel de Hilbert seria possível. Sorabji, porém, parece não conseguir entender o cerne do paradoxo: pessoalmente não tenho nenhuma tentação de pensar em pessoas caindo para fora na extremidade do hotel, pois não existe nenhum, mas tenho dificuldade de acreditar que um hotel em que todos os quartos estejam ocupados possa acomodar mais hóspedes. Obviamente, a linha de hóspedes não ressaltará além da linha de quartos, mas, se todos esses quartos infinitos já têm hóspedes, será que deslocar esses hóspedes realmente criará quartos vazios? Acho a ilustração do próprio Sorabji das colunas de anos e dias passados não pouco preocupante: se dividirmos as colunas em segmentos de um metro de comprimento e marcarmos uma coluna como os anos e a outra como os dias, uma coluna será tão comprida quanto a outra, mas ainda assim para cada segmento de um metro de comprimento na coluna de anos se encontrarão 365 segmentos de igual comprimento na coluna de dias! Estas conclusões paradoxais podem ser evitadas somente se tais conjuntos realmente infinitos puderem existir apenas na imaginação, e não na realidade. De todo modo, a ilustração do Hotel de Hilbert não se esgota lidando apenas com o acréscimo de novos hóspedes, pois a subtração de hóspedes resulta em absurdos ainda mais impraticáveis. A análise de Sorabji nada diz para resolvê-los. Assim, parece-me que as objeções à premissa (2.11) são menos plausíveis do que a própria premissa.
Com relação a (2.12), a objeção mais frequente é que o passado deve ser considerado como um infinito potencial somente, e não um infinito real. Era esta a posição de Tomás de Aquino versus Boaventura, e o filósofo contemporâneo Charles Hartshorne parece ficar do lado de Tomás nesta questão. [14] Tal posição, no entanto, é insustentável. O futuro é potencialmente infinito, uma vez que não existe, mas o passado é real de uma maneira que o futuro não o é, como fica evidente pelo fato de que temos rastos do passado no presente, mas nenhum rasto do futuro. Consequentemente, se a série de eventos passados nunca começou a existir, deve ter havido um número realmente infinito de eventos passados.
As objeções a qualquer uma das duas premissas parecem, assim, menos convincentes do que as próprias premissas. Em conjunto, implicam que o universo começou a existir. Por isso, concluo que este argumento fornece bons motivos para aceitar a verdade da premissa (2) de que o universo começou a existir.
Segundo argumento favorável
O segundo argumento (2.2) a favor do começo do universo se baseia na impossibilidade da formação de um infinito real por adição sucessiva. Este argumento se distingue do primeiro porque não nega a possibilidade da existência de um infinito real, mas a possibilidade de que seja formado por adição sucessiva.
A premissa (2.21) é o passo crucial no argumento. Não se pode formar um conjunto realmente infinito de coisas ao adicionar sucessivamente um elemento após o outro. Uma vez que se pode sempre adicionar um a mais antes de chegar à infinidade, é impossível atingir a infinidade real. Às vezes, isso é chamado de a impossibilidade de “contar até a infinidade” ou “atravessar o infinito”. É importante entender que esta impossibilidade não tem nada a ver com a quantidade de tempo disponível: faz parte da natureza da infinidade não poder ser formada assim.
Pois então, há quem possa dizer que, conquanto um conjunto infinito não possa ser formado começando em um ponto e lhe adicionando elementos, um conjunto infinito poderia ser formado nunca começando, mas terminando em um ponto, isto é, começando em um ponto após ter adicionado um elemento atrás do outro desde a eternidade. Este método, porém, parece ainda mais incrível do que o primeiro. Se não se pode contar até a infinidade, como é possível fazer contagem regressiva a partir da infinidade? Se não se pode atravessar o infinito deslocando-se em uma direção, como é possível atravessá-lo simplesmente se deslocando na direção oposta?
Deveras, a ideia de uma série sem começo terminando no presente parece absurda. Para dar apenas uma ilustração, suponha que conheçamos um homem que alega estar contando desde a eternidade e já está acabando: ..., -3, -2, -1, 0. Poderíamos perguntar: por que ele não terminou de contar ontem ou anteontem ou no ano passado? Até então, um tempo infinito já passara, de modo que já deveria ter terminado à época. Assim, em nenhum ponto no passado infinito conseguiríamos encontrar o homem a terminar sua contagem regressiva, pois até aquele ponto já deveria ter acabado! De fato, não importa o quanto voltemos no passado, jamais encontraremos o homem sequer contando, pois em qualquer ponto que atinjamos ele já terá terminado. Se, porém, em nenhum ponto no passado o encontramos contando, isto contradiz a hipótese de que ele está contando desde a eternidade, o que ilustra o fato de que a formação de um infinito atual por adição sucessiva é igualmente impossível, quer se desloque para ou a partir da infinidade.
A premissa (2.22) pressupõe uma visão dinâmica do tempo, segundo a qual eventos são realizados de forma serial, um após o outro. A série de eventos não é uma espécie de linha do mundo subsistente atemporalmente que aparece sucessivamente na consciência. Antes, o devir é real e essencial ao processo temporal. Pois bem, esta visão do tempo não fica livre de adversários, mas considerar suas objeções neste artigo nos levaria muito além do proposto. [15] Neste texto, devemos nos contentar com o fato de que estamos argumentando em fundamento comum com nossas intuições convencionais de devir temporal e em consonância com um bom número de filósofos contemporâneos do tempo e espaço.
Dada a verdade de (2.21) e (2.22), a conclusão (2.23) segue logicamente. Se o universo não começou a existir um tempo finito atrás, o momento presente nunca poderia chegar. Mas, obviamente, ele chegou. Logo, sabemos que o universo é finito no passado e começou a existir.
Mais uma vez, valeria a pena considerar diversas objeções propostas contra este raciocínio. Contra (2.21), Mackie objeta que o argumento pressupõe ilicitamente um ponto de partida infinitamente distante no passado e, em seguida, declara impossível viajar daquele ponto até hoje. Mas, em passado infinito, não haveria ponto de partida, nem tampouco um que fosse infinitamente distante. Não obstante, a partir de qualquer ponto no passado infinito, existe apenas uma distância finita até o presente. [16] Parece-me, pois, que a alegação de Mackie de que o argumento pressupõe um ponto de partida infinitamente distante é completamente infundada. O caráter sem começo da série serve apenas para acentuar a dificuldade de que seja formada por adição sucessiva. O fato de que não haja nenhum começo, sequer um que seja infinitamente distante, torna o problema mais e não menos incômodo. E o argumento de que, a partir de qualquer momento no passado infinito, exista apenas uma distância temporal finita até o presente pode ser descartado por sua irrelevância. A questão não é como qualquer porção finita da série temporal possa ser formada, mas como toda a série infinita possa ser formada. Se Mackie pensa que, porque todo segmento da série pode ser formado por adição sucessiva, a série inteira possa ser formada assim, ele está pura e simplesmente cometendo a falácia da composição.
Sorabji igualmente objeta que a razão por que é impossível fazer contagem regressiva a partir da infinidade é que contar envolve por natureza adotar um número de partida, que não está disponível neste caso. Mas completar um lapso infinito de anos não envolve nenhum ano de partida e é, portanto, possível. [17] Esta resposta é evidentemente inadequada, pois, como vimos, os anos de um passado infinito poderiam ser enumerados pelos números negativos, e neste caso uma infinidade de anos completada implicaria, de fato, uma contagem regressiva sem começo a partir da infinidade. Sorabji prevê esta réplica, no entanto, e afirma que tal contagem regressiva reversa é possível em princípio e, por isso, nenhuma barreira lógica aparece para o transcorrer de uma infinidade de anos passados. Mais uma vez, porém, a questão que proponho não é se existe uma contradição lógica nessa noção, mas se tal contagem regressiva não é metafisicamente absurda. Vimos que tal contagem regressiva deveria em qualquer ponto já ter sido completada. Sorabji, contudo, está novamente preparado com uma resposta: dizer que a contagem regressiva deveria em qualquer ponto já ter acabado confunde contar uma infinidade de números com contar todos os números. Em qualquer ponto no passado, o contador eterno já terá contado uma infinidade de números negativos, mas isso não implica que ele terá contado todos os números negativos. Não penso que o argumento cometa esse suposto equívoco, o que pode ficar claro examinando a razão por que nosso contador eterno é presumivelmente capaz de completar uma contagem de números negativos terminando no zero. Para justificar a possibilidade dessa façanha intuitivamente impossível, o oponente do argumento apela para o chamado princípio da correspondência usado em teoria dos conjuntos para determinar se dois conjuntos são equivalentes (isto é, têm o mesmo número de elementos) ao combinar os elementos de um conjunto com os elementos do outro conjunto e vice-versa. Com base nesse princípio, o oponente argumenta que, uma vez que o contador viveu, digamos, um número infinito de anos e uma vez que o conjunto de anos passados pode ser colocado em correspondência individual com o conjunto de números negativos, segue que, ao contar um número por ano, um contador eterno completaria uma contagem regressiva dos números negativos até o ano presente. Se perguntássemos por que o contador não terminaria ano que vem ou em cem anos, o oponente responderia que, antes do ano presente, um número infinito de anos já terá passado, de tal maneira que, pelo princípio da correspondência, todos os números deveriam ter sidos contados até agora. Tal raciocínio, porém, explode nas mãos do próprio oponente: como vimos, por essa explicação, o contador deveria em qualquer ponto no passado já ter terminado de contar todos os números, visto que existe uma correspondência individual entre os anos do passado e os números negativos. Assim, não há nenhum equívoco entre contar uma infinidade de números e contar todos os números. A esta altura, irrompe um absurdo ainda maior: suponha que houvesse outro contador que contasse em ritmo de um número negativo por dia. De acordo com o princípio da correspondência, que subjaz à teoria dos conjuntos infinitos e à aritmética transfinita, os nossos dois contadores eternos terminarão suas contagens regressivas no mesmo momento, mesmo que um esteja contando em ritmo 365 vezes mais rápido do que o outro! Será que alguém consegue acreditar que situações assim realmente aconteceriam na realidade, em vez de representarem o resultado de um jogo imaginário realizado em esfera puramente conceitual conforme as convenções e axiomas lógicos adotados?
Quanto à premissa (2.22), muitos pensadores objetaram que não precisamos considerar que o passado seja uma série infinita sem começo com um fim no presente. Popper, por exemplo, admite que o conjunto de todos os eventos passados é realmente infinito, mas sustenta que a série de eventos passados é potencialmente infinita. Isso pode ser visto começando no presente e enumerando os eventos regressivamente, formando, assim, um infinito potencial. Por isso, o problema da formação de um infinito real por adição sucessiva não aparece. [18] Igualmente, Swinburne devaneia que seja duvidoso que uma série infinita completada sem nenhum começo, mas com um fim, faça sentido, mas propõe resolver o problema começando no presente e regressando ao passado, de tal maneira que a série de eventos passados não tivesse fim e, portanto, não fosse um infinito completado. [19] Esta objeção, contudo, evidentemente confunde o regresso mental da contagem com o progresso real da própria série temporal de eventos. Enumerar a série a partir do presente regressivamente apenas mostra que, se existe um número infinito de eventos passados, como é possível que esse conjunto infinito de eventos venha a ser formado por adição sucessiva? O modo como concebemos mentalmente a série não afeta de forma alguma o caráter ontológico da própria série enquanto série sem nenhum começo, mas com um fim — ou, em outras palavras, enquanto um infinito real completado por adição sucessiva.
Novamente, então, as objeções a (2.21) e (2.22) parecem menos plausíveis do que as próprias premissas. Em conjunto, implicam (2.23), ou que o universo começou a existir.
Primeira confirmação científica
Esses argumentos puramente filosóficos a favor do começo do universo receberam notável confirmação a partir de descobertas em astronomia e astrofísica durante este século. Tais confirmações podem ser resumidas sob dois títulos: a confirmação a partir da expansão do universo e a confirmação a partir das propriedades termodinâmicas do universo.
Em relação ao primeiro, a descoberta de Hubble em 1929 do desvio para o vermelho na luz das galáxias distantes deu início a uma revolução na astronomia de importância talvez tão grande quanto a revolução copernicana. Antes desse tempo, concebia-se que o universo como um todo fosse estático, mas a conclusão surpreendente à qual Hubble foi levado foi que o desvio para o vermelho se deve ao fato de que o universo de fato está em expansão. A implicação espantosa do fato é que, ao rastrear a expansão de volta no tempo, o universo se torna cada vez mais denso até que atinja um ponto de densidade infinita a partir do qual o universo começou a expandir. O resultado da descoberta de Hubble foi que, em algum ponto no passado finito — provavelmente cerca de 15 bilhões de anos atrás —, todo o universo conhecido se contraiu em um único ponto matemático que marcou a origem do universo. Essa explosão inicial veio a ser conhecida como o “Big Bang” ou “grande expansão”. Quatro dos astrônomos mais destacados do mundo descreveram esse evento com as seguintes palavras:
O universo começou a partir de um estado de densidade infinita... Espaço e tempo foram criados nesse evento e igualmente o foi toda a matéria no universo. Não é relevante perguntar o que aconteceu antes do Big Bang; é como perguntar o que está ao norte do Pólo Norte. Do mesmo modo, não é sensato perguntar onde o Big Bang ocorreu. O ponto do universo não era um objeto isolado no espaço; era o universo inteiro e, portanto, a única resposta pode ser que o Big Bang aconteceu em todos lugares. [20]
Esse evento que marcou o começo do universo torna-se ainda mais incrível quando se reflete no fato de que um estado de “densidade infinita” é sinônimo de “nada”. Não pode haver nenhum objeto que possua densidade infinita, pois, se tivesse qualquer tamanho, poderia ainda ser muito mais denso. Por isso, como o astrônomo de Cambridge Fred Hoyle indica, a teoria do Big Bang requer a criação da matéria a partir do nada. Isso se dá porque, à medida que se volta no tempo, atinge-se um ponto em que, nas palavras de Boyle, o universo “encolheu para absolutamente nada”. [21] Assim, o que o modelo do universo segundo o Big Bang parece requerer é que o universo tenha começado a existir e tenha sido criado a partir do nada.
Há teóricos que tentam evitar o começo absoluto do universo subentendido pela teoria do Big Bang especulando que o universo pode passar por uma série infinita de expansões e contrações. Existem, no entanto, bons motivos para duvidar da adequação de um modelo tão oscilante do universo: (i) o modelo oscilante parece ser fisicamente impossível. Apesar de toda a discussão sobre tais modelos, o fato parece ser que são possíveis apenas teórica, mas não fisicamente. Como a já falecida professora Tinsley de Yale explica, em modelos oscilantes, “embora a matemática diga que o universo oscile, não existe nenhuma física conhecida para reverter o colapso e impulsionar de volta uma nova expansão. A física parece dizer que esses modelos começam a partir do Big Bang, expandem-se, comprimem-se e então acabam”. [22] Para que o modelo oscilante esteja correto, aparentemente as leis conhecidas da física teriam de ser revisadas. (ii) O modelo oscilante parece ser insustentável do ponto de vista da observação. Dois fatos da astronomia observacional parecem ir de encontro ao modelo oscilante. Primeiro, a homogeneidade observada da distribuição da matéria por todo o universo parece inexplicável pelo modelo oscilante. Durante a fase de contração em tal modelo, buracos-negros começam a engolir a matéria circundante, o que resulta em distribuição não-homogênea da matéria. Não existe nenhum mecanismo conhecido, porém, para corrigir essas faltas de homogeneidade durante a fase de expansão subsequente. Assim, a homogeneidade da matéria observada pelo universo ficaria sem explicação. Segundo, a densidade do universo parece ser insuficiente para a recontração do universo. Para que o modelo oscilante seja sequer possível, é necessário que o universo seja denso o suficiente, de modo que a gravidade consiga superar a força da expansão e recomponha novamente o conjunto do universo. De acordo com as melhores estimativas, todavia, caso se levem em conta tanto a matéria luminosa quanto a matéria não-luminosa (encontrada em auréolas galácticas), bem como qualquer possível contribuição de partículas de neutrino à massa total, o universo ainda é apenas cerca de metade do necessário para recontração. [23] Além disso, pesquisa recente sobre o cálculo da velocidade e desaceleração da expansão confirma que o universo expande em, por assim dizer, “velocidade escape” e, portanto, não recontrairá. Conforme Sandage e Tammann, “somos, pois, forçados a determinar que... parece inevitável que o universo se expandirá para sempre”; concluem, então, que “o universo ocorreu apenas uma vez”. [24]
Segunda confirmação científica
Como se não bastasse, existe uma segunda confirmação científica do começo do universo com base nas propriedades termodinâmicas de diversos modelos cosmológicos. De acordo com a segunda lei da termodinâmica, processos que ocorrem em sistema fechado sempre tendem a um estado de equilíbrio. Pois bem, nosso interesse está em quais implicações isto tem quando a lei é aplicada ao universo como um todo. O universo é sistema fechado gigantesco, uma vez que ele é tudo o que há e nenhuma energia lhe é introduzida de fora. A segunda lei parece implicar que, dado tempo suficiente, o universo atingirá um estado de equilíbrio termodinâmico, conhecido como sua “morte térmica”. Esta morte pode ser quente ou fria, dependendo se o universo se expandirá para sempre ou em algum momento recontrairá. Por um lado, se a densidade do universo for grande o bastante para superar a força da expansão, o universo recontrairá em uma bola de fogo calorosa. À medida que o universo contrai, as estrelas queimam mais rapidamente até enfim explodir ou evaporar. À medida que o universo fica mais denso, os buracos-negros enfim se aglutinam em um buraco-negro gigantesco de mesma extensão do universo, do qual ele jamais ressurgirá. Por outro lado, se a densidade do universo for insuficiente para deter a expansão, como parece mais provável, as galáxias transformarão todo seu gás em estrelas e as estrelas se esgotarão. Em 1030 anos, o universo consistirá em 90% de estrelas mortas, 9% de buracos-negros supermaciços e 1% de matéria atômica. A física de partículas elementares sugere que, dali em diante, prótons decairão em elétrons e pósitrons, de modo que o espaço será preenchido com gás tão rarefeito que a distância entre um elétron e um pósitron será aproximadamente do tamanho da presente galáxia. Em 10100 anos, segundo creem alguns cientistas, os próprios buracos-negros dissiparão em radiação e partículas elementares. No fim, toda a matéria no universo negro, frio e sempre em expansão será reduzida a um gás ultrarrarefeito de partículas elementares e radiação. O equilíbrio prevalecerá em tudo isso e o universo inteiro estará em seu estado final, do qual nenhuma mudança ocorrerá.
Ora, a pergunta que não quer calar é esta: se, dado tempo suficiente, o universo atingirá a morte térmica, por que não está agora em estado de morte térmica, se já existe há um tempo infinito? Se o universo não começou a existir, já deveria estar em estado de equilíbrio. Há teóricos que sugeriram que o universo foge à morte térmica final oscilando da eternidade passada para a eternidade futura. Vimos, porém, que um modelo assim parece ser insustentável do ponto de vista físico e observacional. Mesmo abrindo mão dessas considerações e supondo que o universo realmente oscile, o fato é que as propriedades termodinâmicas desse modelo subentendem o começo do universo, o que seus proponentes procuram evitar. As propriedades termodinâmicas de um modelo oscilante são tais que o universo expande mais e mais a cada ciclo sucessivo. Por isso, ao traçar a expansão de volta no tempo, elas ficam cada vez menores. Como uma equipe científica explica, “o efeito da produção de entropia será aumentar a escala cósmica, ciclo após ciclo... Assim, ao olhar de volta no tempo, cada ciclo gerou menos entropia, teve tempo cíclico menor e teve fator de expansão cíclica menor do que o ciclo seguinte”. [25] Novikov e Zeldovich do Instituto de Matemática Aplicada da Academia de Ciências da União Soviética, concluem, então, que “o modelo multicíclico tem futuro infinito, mas apenas um passado finito”. [26] Como indica outro escritor, o modelo oscilante do universo, portanto, requer uma origem do universo antes do menor ciclo. [27]
Em qualquer situação que se escolha para o futuro do universo, a termodinâmica subentende que o universo começou a existir. Conforme o físico P. C. W. Davies, o universo deve ter sido criado um tempo finito atrás e está no processo de perda gradual de força. Antes da criação, o universo simplesmente não existia. Logo, conclui Davies, mesmo que não gostemos, devemos concluir que a energia do universo estava de alguma forma simplesmente “implantada” na criação também como condição inicial. [28]
Temos, pois, tanto o argumento filosófico quanto a confirmação científica para o começo do universo. Com base nisto, penso que temos plena justificava para concluir a verdade da premissa (2), de que o universo começou a existir.
Primeira premissa
A premissa (1) me ocorre como relativamente incontroversa. Baseia-se na intuição metafísica de que algo não pode surgir do nada. Por isso, qualquer argumento a favor do princípio pode ser menos óbvio do que o próprio princípio. Até mesmo o grande cético David Hume admitiu que nunca afirmara uma proposição tão absurda como “algo veio à existência sem uma causa”; apenas negava que fosse possível provar o princípio causal obviamente verdadeiro. [29] Com relação ao universo, se originalmente não havia nada — nem Deus, nem espaço, nem tempo —, como é possível que o universo tenha vindo a existir? A verdade do princípio ex nihilo nihil fit é tão óbvia que penso termos justificativa para descartar uma defesa elaborada da primeira premissa do argumento.
Não obstante, há pensadores que, empenhados em evitar o teísmo implícito na premissa dentro do presente contexto, sentiram-se levados a negar sua verdade. Para evitar suas implicações teístas, Davies apresenta um cenário que, confessa ele, “não deveria ser levado muito a sério”, mas que lhe exerce forte atração. [30] Ele se refere a uma teoria quântica da gravidade segundo a qual o próprio espaço-tempo poderia vir a existir incausado a partir de absolutamente nada. Embora admita que não haja “ainda nenhuma teoria de gravidade quântica que seja satisfatória”, tal teoria “permitiria que o espaço-tempo fosse criado e destruído espontaneamente e incausado, do mesmo modo como partículas são criadas e destruídas espontaneamente e incausadas. A teoria implicaria certa probabilidade matematicamente determinada segundo a qual, por exemplo, uma bolha de espaço apareceria onde nenhuma existira antes. Assim, o espaço-tempo poderia surgir do nada como consequência de uma transição quântica sem causa”. [31]
Pois bem, de fato, a produção de par de partículas não provê nenhuma analogia a esse radical devir ex nihilo, como Davies parece subentender. Esse fenômeno quântico, ainda que uma exceção ao princípio de que todo evento tem uma causa, não provê nenhuma analogia ao fato de algo vir à existência a partir do nada. Embora os físicos falem desta questão como criação e aniquilação de par de partículas, tais termos levam a mal-entendidos filosóficos, pois tudo o que realmente ocorre é a conversão da energia em matéria e vice-versa. Como Davies admite, “os processos aqui descritos não representam a criação de matéria a partir do nada, mas a conversão de energia pré-existente em forma material”. [32] Assim, Davies confunde seu leitor quando afirma que “partículas... podem aparecer do nada sem causação específica” ou “todavia o mundo de física quântica rotineiramente produz algo por nada”. [33] Pelo contrário, o mundo da física quântica nunca produz algo por nada.
Considerando a questão em seus próprios méritos, a gravidade quântica é tão mal-entendida que o período anterior a 10-43 segundos, que essa teoria espera descrever, foi comparado por um trocista às regiões em mapas dos cartógrafos antigos marcadas com “aqui vivem dragões”: pode facilmente ser preenchido com todos os tipos de fantasias. Deveras, parece não haver nenhuma boa razão para pensar que tal teoria viesse a envolver o tipo de devir espontâneo ex nihilo sugerido por Davies. A teoria quântica da gravidade teria o objetivo de propor uma teoria de gravitação com base na troca de partículas (grávitons), e não na geometria do espaço, o que pode, então, ligar-se a uma Teoria da Grande Unificação que une todas as forças da natureza em estado supersimétrico em que uma força fundamental e um único tipo de partícula existe. Parece não haver nada nisso que sugira a possibilidade do devir espontâneo ex nihilo.
Na verdade, não é de modo algum claro se a explicação de Davies é sequer inteligível. O que se pretende dizer, por exemplo, com a afirmação de que existe uma probabilidade matemática de que nada gerasse uma região de espaço-tempo “onde nenhuma existira antes”? Não pode significar que, dado tempo o suficiente, uma região do espaço-tempo viria à existência em determinado lugar, visto que nem lugar nem tempo existem sem o espaço-tempo. A noção de alguma probabilidade para que algo surja do nada parece, portanto, incoerente.
Recordo-me nesse sentido de algumas considerações feitas por A. N. Prior acerca de um argumento apresentado por Jonathan Edwards contra a ideia de algo vir à existência incausado. Isto seria impossível, diz Edwards, pois seria, então, inexplicável por que justamente nada nem coisa alguma possam ou venham a existir sem causa. Não é possível responder que apenas coisas de certa natureza vêm à existência incausadas, uma vez que, antes de sua existência, não têm nenhuma natureza que controle seu aparecimento. Prior fez uma aplicação do raciocínio de Edwards comentando a respeito da postulação do modelo de estado constante sobre a criação ininterrupta de átomos de hidrogênio ex nihilo:
Não faz parte da teoria de Hoyle que esse processo seja sem causa, mas quero ser mais definido a esse respeito e dizer que, se ele é sem causa, o que se alega acontecer é fantástico e incrível. Se é possível que objetos — objetos agora que realmente são objetos, “substâncias dotadas de capacidades” — comecem a existir sem uma causa, é incrível que todos eles venham a ser objetos do mesmo tipo, a saber, átomos de hidrogênio. A natureza peculiar de átomos de hidrogênio não pode porventura ser o que torna esse começo da existência possível a eles, mas não a objetos de qualquer outro tipo; pois átomos de hidrogênio não têm essa natureza até que estejam presentes para tê-la, isto é, até que o começo de sua existência já tenha ocorrido. É o argumento de Edwards, na verdade; e, no caso, parece totalmente convincente... [34]
Ora, no caso em jogo, se originalmente absolutamente nada existia, por que seria o espaço-tempo a surgir espontaneamente do vazio, em vez de, digamos, átomos de hidrogênio ou mesmo coelhos? Como é possível discutir a probabilidade de que qualquer coisa em particular venha a existir a partir do nada?
Davies, em certa ocasião, parece responder como se as leis da física fossem o fator controlador que determina o que pode saltar à existência incausado: “Mas e as leis? Elas devem estar presentes, para começo de conversa, a fim de que o universo possa vir a existir. A física quântica tem de existir (em certo sentido), a fim de que uma transição quântica possa gerar o cosmo, antes de mais nada”. [35] Pois bem, isso soa muitíssimo peculiar. Davies parece atribuir às próprias leis da natureza uma espécie de condição ontológica e causal, a tal ponto que restrinjam o devir espontâneo. Isso, porém, parece equivocado: as leis da física não causam ou restringem por si sós coisa alguma; tratam-se simplesmente de descrições proposicionais de determinada forma e de generalidade daquilo que de fato se passa no universo. E a questão que Edwards traz à tona é por que, se houvesse absolutamente nada, seria verdade que uma coisa qualquer, e não outra, devesse vir a existir incausada? É fútil dizer que de algum modo diz respeito à natureza do espaço-tempo fazer isso, porque, se não houvesse absolutamente nada, não haveria nenhuma natureza para determinar que o espaço-tempo devesse vir a existir.
Ainda mais fundamental, entretanto, é que aquilo que Davies contempla se tratar com toda certeza de disparate metafísico. Conquanto seu cenário seja proposto como teoria científica, alguém deveria ter ousadia o bastante para dizer que o imperador está sem roupas. As condições necessárias e suficientes para a aparição do espaço-tempo ou existiram ou não; se sim, não é verdade que nada existia; se não, pareceria ontologicamente impossível que o ser surgisse do não-ser absoluto. Chamar esse salto espontâneo à existência a partir da inexistência de “transição quântica” ou atribuí-lo à “gravidade quântica” nada explica; de fato, segundo a proposta, não existe explicação. Simplesmente acontece.
Parece-me, pois, que Davies não propôs nenhum fundamento plausível para negar a verdade da primeira premissa do argumento cosmológico. Que tudo o que começa a existir tem uma causa parece se tratar de uma verdade ontologicamente necessária, uma verdade constantemente confirmada em nossa experiência.
Conclusão
Dada a verdade das premissas (1) e (2), segue logicamente que (3), o universo tem uma causa para sua existência. Na realidade, penso que se pode argumentar plausivelmente que a causa do universo deve ser um criador pessoal. Pois de que outra maneira um efeito temporal poderia surgir de uma causa eterna? Se a causa fosse simplesmente um conjunto de operações mecânicas de condições necessárias e suficientes que existissem desde a eternidade, por que o efeito não existiria também desde a eternidade? Por exemplo, se a causa para que a água esteja congelada é a temperatura abaixo de zero grau, então, se a temperatura estivesse abaixo de zero desde a eternidade, qualquer água presente estaria congelada desde a eternidade. A única forma de haver uma causa eterna, mas efeito temporal, parece ser se a causa é um agente pessoal que escolhe livremente criar um efeito no tempo. Por exemplo, um homem sentado desde a eternidade talvez queira se levantar; consequentemente, um efeito temporal talvez surja de um agente que existe eternamente. De fato, o agente talvez queira desde a eternidade criar um efeito temporal, de modo que nenhuma mudança no agente precisa ser concebida. Assim, somos levados não simplesmente à causa primeira do universo, mas ao seu criador pessoal.
Resumo e conclusão
Para concluir, vimos com base tanto no argumento filosófico quanto na confirmação científica que é plausível que o universo tenha começado a existir. Dado o princípio intuitivamente óbvio de que tudo o que começa a existir tem uma causa para sua existência, fomos levados a concluir que o universo tem uma causa para sua existência. Com base em nosso argumento, essa causa teria de ser incausada, eterna, imutável, atemporal e imaterial. Além disso, teria de ser um agente pessoal que escolhe livremente criar um efeito no tempo. Logo, com base no argumento cosmológico kalam, concluo que é racional crer que Deus existe.
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[1]
G. W. Leibniz, "The Principles of Nature and of Grace, Based on Reason", em Leibniz Selections, ed. Philip P. Wiener, The Modern Student's Library (Nova Iorque: Charles Scribner's Sons, 1951), p. 527.
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[2]
Aristóteles, Metafísica Lambda. l. 982b10-15.
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[3]
Norman Malcolm, Ludwig Wittgenstein: A Memoir (Londres: Oxford University Press, 1958), p. 70.
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[4]
J. J. C. Smart, "The Existence of God", Church Quarterly Review 156 (1955): 194.
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[5]
G. W. Leibniz, Theodicy: Essays on the Goodness of God, the Freedom of Man, and the Origin of Evil, trad. E.M. Huggard (London: Routledge & Kegan Paul, 1951), p. 127; cf. idem, "Principles", p. 528.
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[6]
John Hick, "God as Necessary Being", Journal of Philosophy 57 (1960): 733-4.
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[7]
David Hume, Dialogues concerning Natural Religion, ed. with an Introduction by Norman Kemp Smith, Library of the Liberal Arts (Indianapolis: Bobbs-Merrill. 1947), p. 190.
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[8]
Bertrand Russell and F.C. Copleston, "The Existence of God", in The Existence of God, ed. com introdução de John Hick, Problems of Philosophy Series (Nova Iorque: Macmillan & Co., 1964), p. 175.
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[9]
Ver William Lane Craig, The Cosmological Argument from Plato to Leibniz, Library of Philosophy and Religion (Londres: Macmillan, 1980), pp. 48-58, 61-76, 98-104, 128-31.
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[10]
Wallace Matson, The Existence of God (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1965), pp. 58-60.
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[11]
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[12]
Quentin Smith, "Infinity and the Past", Philosophy of Science 54 (1987): 69.
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[13]
Richard Sorabji, Time, Creation and the Continuum (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1983), pp. 213, 222-3.
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[14]
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[15]
G. J. Whitrow defende uma forma desse argumento que não pressupõe uma visão dinâmica do tempo, afirmando que um ser consciente e eterno ainda deveria “passar” por um passado infinito, mesmo que a série de eventos físicos subsistisse atemporalmente (G. J. Whitrow, The Natural Philosophy of Time, 2. ed. Oxford: Clarendon Press, 1980, pp. 28-32).
G. J. Whitrow defende uma forma desse argumento que não pressupõe uma visão dinâmica do tempo, afirmando que um ser consciente e eterno ainda deveria “passar” por um passado infinito, mesmo que a série de eventos físicos subsistisse atemporalmente (G. J. Whitrow, The Natural Philosophy of Time, 2. ed. Oxford: Clarendon Press, 1980, pp. 28-32).
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[16]
Mackie, Theism, p. 93.
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[17]
Sorabji, Time, Creation, and the Continuum, pp. 219-22.
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[18]
K. R. Popper, "On the Possibility of an Infinite Past: a Reply to Whitrow", British Journal for the Philosophy of Science 29 (1978): 47-8.
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[19]
R. G. Swinburne, "The Beginning of the Universe", The Aristotelian Society 40 (1966): 131-2.
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[20]
Richard J. Gott et al., "Will the Universe Expand Forever?", Scientific American (março de 1976), p. 65.
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[21]
Fred Hoyle, From Stonehenge to Modern Cosmology (São Francisco: W. H. Freeman, 1972), p. 36.
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[22]
Beatrice Tinsley, carta pessoal.
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[23]
David N. Schramm and Gary Steigman, "Relic Neutrinos and the Density of the Universe", Astrophysical Journal 243 (1981): p. 1-7.
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[24]
Alan Sandage and G.A. Tammann, "Steps Toward the Hubble Constant. VII", Astrophysical Journal 210 (1976): 23, 7; ver também idem, "Steps toward the Hubble Constant. VIII", Astrophysical Journal 256 (1982): 339-45.
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[25]
Duane Dicus, et.al. "Effects of Proton Decay on the Cosmological Future", Astrophysical Journal 252 (1982): l, 8.
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[26]
I. D. Novikov e Ya. B. Zeldovich, "Physical Processes Near Cosmological Singularities", Annual Review of Astronomy and Astrophysics 11 (1973): 401-2.
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[27]
John Gribbin, "Oscillating Universe Bounces Back", Nature 259 (1976): 16.
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[28]
P. C. W. Davies, The Physics of Time Asymmetry (Londres: Surrey University Press, 1974), p. 104.
P. C. W. Davies, The Physics of Time Asymmetry (Londres: Surrey University Press, 1974), p. 104.
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[29]
David Hume para John Stewart, fevereiro de 1754, em The Letters of David Hume, ed. J. Y. T. Greig (Oxford: Clarendon Press, 1932), 1:187.
David Hume para John Stewart, fevereiro de 1754, em The Letters of David Hume, ed. J. Y. T. Greig (Oxford: Clarendon Press, 1932), 1:187.
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[30]
Paul Davies, God and the New Physics (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1983), p. 214.
Paul Davies, God and the New Physics (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1983), p. 214.
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[31]
Ibid., p. 215.
Ibid., p. 215.
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[32]
Ibid., p. 31.
Ibid., p. 31.
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[33]
Ibid., pp. 215, 216.
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[34]
A. N. Prior, "Limited Indeterminism", em Papers on Time and Tense (Oxford: Clarendon Press, 1968), p. 65.
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[35]
Davies, God, p. 217.
Davies, God, p. 217.