#688 Explicando a aplicabilidade da matemática
July 17, 2020No debate sobre o argumento matemático a favor de Deus no canal “Capturing Christianity”, no minuto 1:12:00, Dr. Oppy lançou ao Dr. Craig esta questão:
“Será que Deus poderia ter livremente escolhido criar um mundo físico em que não fosse verdade que teorias matemáticas se aplicassem ao mundo físico porque a estrutura do mundo físico é uma exemplificação de estruturas matemáticas descritas por tais teorias matemáticas? [Será que Deus poderia ter] livremente escolhido criar um mundo em que isso não fosse verdade?
São duas opções, não é? Se não for assim, parece que o que você vai acabar dizendo é que é necessário haver um mundo físico e que teorias matemáticas se aplicam, o que quer dizer que você acaba concordando com o que diz o naturalista, certo? Esta seria a explicação.
Por outro lado, se for verdade, parece que é apenas uma completa contingência que teorias matemáticas se apliquem ao mundo físico pela razão dada, pois é brutalmente contingente que Deus tenha escolhido criar este mundo, em vez de outros mundos que ele poderia ter criado no lugar deste; não temos uma explicação, não é? Quando chegamos à livre escolha e pensamos: ‘Por que isto, em vez daquilo?’, não há aí nenhuma explicação a ser dada do porquê se ter um, em vez do outro.
Por isso, parece que você terá de aceitar a necessidade ou chegar à conclusão de que ‘é uma contingência bruta’, o que era o problema, o ponto questionável.”
O senhor respondeu que não vê nenhum problema em que Deus tenha feito escolhas livres, em última instância inexplicáveis, e que a teoria ainda tem maior profundidade explanatória do que aquela proposta por Oppy.
Primeiramente, tenho mais um pedido do que uma pergunta. Será que o Dr. Craig poderia explicar com mais detalhes a sua resposta ao primeiro ponto de disputa de Oppy, de que “parece que você terá de aceitar a necessidade ou chegar à conclusão de que ‘é uma contingência bruta’, o que era o problema”. Em seguida, Oppy perguntou ao Dr. Craig se ele ficaria à vontade para substituir o termo “feliz coincidência” por “contingência bruta” na sua formulação do argumento matemático. Esta pergunta foi feita no minuto 1:29:16. Ele observa que a discordância entre si e o Dr. Craig é a primeira premissa. Ele pensa que a aplicabilidade da matemática ao mundo físico é um fato bruto, e não uma contingência bruta.
Em segundo lugar, tenho uma pergunta. No que diz respeito ao ponto de disputa de Oppy de que o teísta também se vê diante do problema de fato bruto ou contingência bruta, será que a mesma objeção pode ser feita contra o argumento kalam ou o do ajuste fino? Obrigado pela atenção!
Weston
Estados Unidos
Afghanistan
Dr. Craig responde
A
Obrigado por sua questão tão ponderada, Weston! Na seção que você cita, Oppy apresenta ao teísta um dilema, cujas duas opções são tidas como inaceitáveis. Era necessário que Deus criasse este mundo, ou será que Deus poderia ter escolhido criar um mundo em que os fenômenos físicos são descritíveis por diferentes leis matemáticas?
A resposta a esta pergunta é tão óbvia que perguntá-la já é respondê-la. Uma vez que o teísta acredita que Deus é agente pessoal dotado de liberdade da vontade, evidentemente ele poderia ter escolhido criar um mundo físico caracterizado por diferentes leis da natureza, e neste caso os fenômenos físicos teriam tido uma descrição matemática diferente. Ele poderia, por exemplo, ter escolhido criar um mundo em que os fenômenos físicos fossem descritíveis pela física newtoniana, em vez da física relativística ou quântica.
Resta, então, apenas uma questão: qual é o problema nisso? Oppy alega que, no caso, nenhum progresso explanatório foi feito, e assim voltamos ao ponto de partida: contingência bruta. Mas Oppy está errado. Segundo o teísmo, a aplicabilidade da matemática ao mundo físico é uma contingência, mas não uma contingência bruta (uma “feliz coincidência”). Ela tem uma explicação na livre decisão de um arquiteto transcendente e pessoal. O que é ou pode ser brutalmente contingente é a escolha livre que Deus faz de A, em vez de não-A. Porém, a aplicabilidade da matemática ao mundo físico tem explicação dentro do teísmo que o naturalismo não consegue oferecer. O teísmo, portanto, goza de maior profundidade explanatória do que o naturalismo, o que é virtude teórica importante.
A mesma questão surgiu no meu debate com Eric Wielenberg sobre a melhor explicação de valores e deveres morais objetivos. Como Oppy, Wielenberg alega que valores morais são necessidades brutas e que o teísmo, do mesmo modo, deve enfim chegar a um final explanatório bruto. O que disse ali, em resposta a Morriston e Huemer, talvez lhe seja útil aqui:
Subjacente à minha abordagem neste debate é a convicção profunda de que profundidade explanatória é virtude teórica na ética, bem como na física ou matemática. Uma teoria que fornece uma explicação ou fundamentação de princípios éticos é superior a uma teoria que adota o que foi chamado de abordagem da “lista de compras”, em que a pessoa simplesmente se serve dos princípios de que precisa, sem buscar uma explicação. Identifico-me com as palavras de Shelly Kagan:
Uma explicação adequada para um conjunto de princípios exige uma explicação de tais princípios — uma explicação de por que exatamente tais objetivos, restrições e assim por diante deveriam ser ponderados, e não outros. Sem isso, os princípios não se verão livres da mancha da arbitrariedade que nos levou a ir além de nossas ... listas de compras forçadas... A menos que proponhamos uma explicação coerente de nossos princípios (ou mostremos que eles não precisam mais de justificação), não podemos considerá-los justificados, e talvez tenhamos razões para rejeitá-los... Nunca é demais enfatizar esta necessidade de explicação em teoria moral.[1]
Minha afirmação é, precisamente, que a teoria da ordem divina é superior, do ponto de vista explicativo, ao realismo normativo sem Deus e, portanto, a teoria melhor.
Morriston e Huemer ficam bastante à vontade com uma teoria ética que não tenha profundidade explanatória, pois, afinal, explicações precisam parar em algum lugar. Tudo bem, mas, como indicou Kagan, isto não dá “nenhuma autorização para encerrar a explicação num nível superficial”.[2]
Compare com a teoria matemática.[3] Conforme explicação da filósofa da matemática Penelope Maddy, a profundidade explanatória é uma das virtudes teóricas mais importantes na matemática.[4] Apesar da necessidade lógica ampla (bem como da obviedade) de verdades aritméticas como 1<3, 2+2=4, 6-1=5 e assim por diante, os matemáticos jamais se satisfariam com uma teoria que simplesmente postule uma enxurrada infinita de tais verdades. Antes, buscam uma teoria em que tais verdades possam ser derivadas de axiomas anteriores do ponto de vista explanatório, tais como os axiomas de Peano ou, melhor ainda, estabelecem axiomas teóricos tais quais subjazem à teoria axiomática de conjuntos de ZFC. De fato, a realização singular da teoria axiomática de conjuntos é a sua incrível capacidade de prover um fundamento para a derivação de toda a matemática clássica a partir de um punhado de axiomas. O motivo por que se estima tanto a teoria de conjuntos é a sua impressionante profundidade explanatória... Porém, matemáticos dariam risada da ideia de que uma teoria matemática que simplesmente postulasse uma infinidade de verdades aritméticas sem profundidade explanatória seria um sério concorrente da aritmética de Peano ou da teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Assim, o apelo de Huemer à aritmética para justificar a adoção de uma teoria ética sem profundidade explanatória sai pela culatra.
O teísmo não só tem profundidade explanatória superior ao explicar a aplicabilidade da matemática aos fenômenos físicos, mas, como na ética, o final explanatório do teísta é mais satisfatório do que o final explanatório do naturalista. Dada a natureza a priori da matemática e a impotência causal de objetos matemáticos, é incrível que fenômenos físicos calhem de ter a sua elegante estrutura matemática. É por isso que, segundo o naturalismo, a aplicabilidade da matemática é apenas uma feliz coincidência, um acidente positivo. Mas não é incrível que um agente pessoal viesse livremente a escolher A, em vez de não-A. Como notou Algazali, é a essência do livre-arbítrio conseguir distinguir o que é parecido. Segundo o teísmo, o final explanatório é um agente pessoal dotado de liberdade da vontade, sendo ele de diferente ordem do mundo físico, este último nem animado nem agente.
Pois bem, como você observa, a visão final de Oppy é que a descrição matemática do mundo físico é metafisicamente necessária. Como você colocou muito bem, é “um fato bruto, e não uma contingência bruta”. Penso que esta afirmação dele seja grotesca. Será que devemos pensar mesmo que o mundo não poderia ter sido descrito pela física newtoniana, em vez da física relativística? Em contraste, segundo a visão teísta, a descrição matemática do mundo físico é uma contingência, mas não um fato bruto.
Em relação ao argumento do ajuste fino, Oppy talvez diga, igualmente, que o ajuste fino das constantes e quantidades das leis da natureza são necessidades metafísicas, o que torna a sua posição ainda mais extrema, e que, segundo o teísmo, o ajuste fino é brutalmente contingente em razão da livre escolhe divina, o que repete o erro dele aqui. Não tenho certeza de que questões semelhantes surjam com relação ao argumento cosmológico kalam, mas estou aberto a ouvir o que se tem a dizer.
[1] Shelly Kagan, The Limits of Morality (Oxford: Clarendon Press, 1989), p. 13.
[2] Kagan, Limits of Morality, p. 14.
[3] Argumento semelhante poderia ser feito em relação à teoria física (David Lewis, Counterfactuals [Oxford: Blackwell, 1973], pp. 72-77). Na abordagem de Mill-Ramsey-Lewis às leis naturais, a abordagem dos “melhores sistemas”, não se postula simplesmente uma camada fixa de leis naturais, mas constrói-se uma hierarquia de leis anteriores do ponto de vista explanatório para explicar leis de nível inferior. A matemática é uma analogia mais interessante, no caso, por causa da necessidade e obviedade dela.
[4] Penelope Maddy, Defending the Axioms: On the Philosophical Foundations of Set Theory (Oxford: Oxford University Press, 2011), p. 82. Especificamente, ela indica a capacidade da teoria de sistematizar e explicar a teoria numérica e a geometria/análise (Penelope Maddy, “Believing the Axioms II”, The Journal of Symbolic Logic 53/3 [1988]: 762). Assim, é demonstravelmente errada a afirmação de Huemer de que, se 2<3 tem uma explicação, “seria a partir de algum outro fato aritmético que é igualmente óbvio e, em si, não tem nenhuma explicação”.
- William Lane Craig