#620 Uma segunda chance após a morte
April 23, 2019Olá, Dr. Craig. Obrigado pelo trabalho que faz em defesa do “cristianismo puro e simples”. Acompanho seus livros, debates e podcast do curso Defenders.
Minha pergunta diz respeito a uma questão que li no livro de Jerry Walls intitulado Heaven, Hell, and Purgatory [Céu, inferno e purgatório]. É um livro interessante, e Jerry traz muitos argumentos excelentes. Só fiquei cismado com o arrependimento pós-morte. Ele defende a possibilidade de que Deus — porque seu amor dura para sempre — continua a alcançar os perdidos mesmo no purgatório/inferno. Ele discute que tipo de graça Deus possui: seria graça suficiente ou graça ideal? Graça suficiente basta para um Deus justo justificar o envio de alguém para o inferno. Graça ideal dá todas as oportunidades possíveis para que alguém chegue ao arrependimento. Um exemplo é o seguinte: se um homem começa a se interessar pelo cristianismo e ainda não entregou sua vida a Cristo, mas de repente morre, será que Deus não lhe dará mesmo a oportunidade de se voltar a Cristo?
O autor propõe muitas outras situações teóricas e explica alguns textos das Escrituras que parecem abertos à possibilidade de arrependimento pós-morte. Eu me inclino a concordar que nosso Deus possui graça ideal, e não apenas graça suficiente. Isto me gera uma dificuldade. Se o arrependimento pós-morte é possível, por que Deus nos mandou pregar as boas novas? Penso que isto também barateia o valor de todos nossos esforços de alcançar os perdidos. E mais, também torna um tanto barata nossa vida atual, pois, se Deus permitirá a pecadores no inferno se arrependerem e irem para o céu, por que ser cristão agora?
Mais uma vez, obrigado por seu ministério!
Deus abençoe.
Tom
New Zealand
Dr. Craig responde
A
Preciso dizer logo de início, Tom, que não li o livro de Jerry; por isso, minha resposta aqui deve ser entendida como uma resposta à sua pergunta, e não ao livro.
Primeiramente, uma correção teológica: as pessoas no purgatório (supondo que ele exista) já estão salvas; não se lhes dá uma segunda chance de salvação. Apenas estão sendo purificadas de seus pecados a fim de estar aptas para o céu. Antes, a questão diz respeito à possibilidade de que quem está condenado ao inferno tenha uma segunda chance de escapar da danação.
Sua pergunta gira em torno da distinção entre graça suficiente e ideal. Você caracteriza graça suficiente da seguinte maneira: “Graça ideal dá todas as oportunidades possíveis para que alguém chegue ao arrependimento”. Caracterizada desta forma, a graça ideal é logicamente incoerente, uma vez que é impossível que alguém seja criado em todas as circunstâncias possíveis. Se sou criado como camponês medieval, por exemplo, não tenho a oportunidade de ouvir Billy Graham pregar o evangelho. Dadas minhas circunstâncias particulares, inúmeras oportunidades para chegar ao arrependimento não me estarão disponíveis.
Felizmente, em seguida você dá uma ilustração mais coerente da graça ideal: “Um exemplo é o seguinte: se um homem começa a se interessar pelo cristianismo e ainda não entregou sua vida a Cristo, mas de repente morre, será que Deus não lhe dará mesmo a oportunidade de se voltar a Cristo?” No caso, penso que a perspectiva molinista fornece uma explicação melhor da graça ideal do que o arrependimento pós-morte. O molinista mantém que nossas circunstâncias não são consequência de acidente histórico e geográfico. Pelo contrário, Deus determinou as circunstâncias em que nascemos e crescemos, além de prover a todos graça suficiente para a salvação. (Observe que se trata de um sentido diferente de “suficiente”, em relação ao uso que você faz! Quero dizer algo como “ampla”.) Se quisermos, podemos dizer mais ainda: Deus, por meio de seu conhecimento médio, assegura que ninguém seja colocado em circunstâncias tais que, se ele não chegar ao arrependimento antes da morte, virá ao arrependimento e será salvo, caso viva mais tempo. Se Deus soubesse que prolongar a vida teria resultado na sua livre aceitação da salvação, Deus não o teria colocado em circunstâncias nas quais a vida é interrompida. Assim, segundo esta perspectiva, se alguém não chegou à fé salvadora antes da morte, ele não teria vindo à fé salvadora, caso tivesse vivido mais. Deus é bom e misericordioso demais para permitir que alguém que seria salvo seja ceifado prematuramente.
Esta solução molinista não está disponível ao Dr. Walls porque, como arminiano clássico, ele nega, ou ao menos não crê no conhecimento divino médio. Portanto, para resolver o problema, ele é obrigado a seguir uma exegese implausível de textos bíblicos a fim de justificar soluções que envolvam o arrependimento pós-morte. Aqui temos mais uma ilustração do potência e fecundidade teológica da doutrina do conhecimento médio.
Tom, não concordo de modo algum que a doutrina do arrependimento pós-morte “torna um tanto barata nossa vida atual, pois, se Deus permitirá a pecadores no inferno se arrependerem e irem para o céu, por que ser cristão agora?”. Isto revela a opinião de que a vida pecaminosa é melhor do que a vida cristã, o que soa patentemente falso.
Subestima a natureza autodestrutiva do pecado. Pergunte-se: que tipo de pessoa você deseja se tornar? Alguém que exemplifica o caráter de Cristo ou alguém que se concentra no ego e na gratificação pecaminosa? Por outro lado, penso que você tem toda razão de que a doutrina do arrependimento pós-morte solapa a motivação e urgência da empreitada missionária de levar o evangelho ao mundo (https://pt.reasonablefaith.org/artigos/escritos-academicos/salvacaeo-politicamente-incorreta/). É mais fácil ficar em casa e deixar Deus lidar com essas pessoas no além.
- William Lane Craig