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#720 A que se refere a “Palavra de Deus”?

March 23, 2021
Q

Dr. Craig,

Tenho uma pergunta meio estranha. Existe algum argumento bíblico para a noção de que “palavra de Deus”, quando usado na Bíblia, refere-se à própria Bíblia? Os exemplos mais populares são Efésios 6.17 e Hebreus 4.12. Ressalvo que não é uma pergunta sobre argumentos de que a Bíblia vem de Deus ou é inspirada.

Infelizmente, é tudo que os artigos que consegui encontrar abordam ao tratar da

questão: “Por que a Bíblia é a palavra de Deus”. A minha pergunta é por que o termo usado na Bíblia se referiria à própria Bíblia no contexto desses exemplos e no contexto dos outros usos da expressão.

Robert

Estados Unidos

Dr. Craig responde


A

 Para que não me entendam mal, Robert, é importante reiterar que a sua pergunta não trata de argumentos para a inspiração bíblica ou para a condição da Bíblia como Palavra de Deus. Abordarei estas questões na minha teologia sistemática filosófica, conforme dei amostra na Pergunta # 713. Antes, a sua pergunta é o que os próprios autores bíblicos querem dizer quando usam a expressão a “Palavra de Deus”. Será que esta expressão sempre se refere à própria Bíblia?

A resposta a esta pergunta é: claro que não, uma vez que a Bíblia não existia antes de seus últimos livros serem completados! Literalmente, não havia nenhuma Bíblia à qual se referir. Apenas depois que a Bíblia fosse terminada é que ela poderia ser referida assim.

No entanto, Jesus refere-se, sim, à Bíblia hebraica, o nosso Antigo Testamento, como a Palavra de Deus:

Jesus lhes respondeu: “Não está escrito na vossa lei: ‘Eu disse: Sois deuses’? Se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida, e a Escritura não pode ser anulada, por que, então, dizeis ‘tu blasfemas’ àquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo por eu ter dito: ‘Sou Filho de Deus’?" (João 10.34-36)

Observe que Jesus começa com uma pergunta: “Não está escrito na vossa lei...?” e, então, cita não a lei em si, mas Salmos 82.6, equiparando a Palavra de Deus com “a Escritura”.

Além disso, Jesus considerava o Evangelho do Reino que ele pregava como a Palavra de Deus. Na sua palavra do semeador, Jesus explicou: “A semente é a palavra de Deus” (Lucas 8.11). Igualmente, Lucas relata que “a multidão se comprimia junto a Jesus para ouvir a palavra de Deus” (Lucas 5.1).

Assim, quando se trata da pregação apostólica subsequente à morte e ressurreição de Jesus, descobrimos que os apóstolos também consideravam que o Evangelho por eles pregado era a Palavra de Deus. Paulo relembra aos crentes em Tessalônica: “quando ouvistes de nós a sua palavra, não a recebestes como palavra de homens, mas como a palavra de Deus, como de fato é, a qual também atua em vós, os que credes” (1 Tessalonicenses 2.13; cf. 2 Timóteo 2.9). O contexto sugere que Efésios 6.17 e Hebreus 4.12 referem-se, igualmente, ao Evangelho (Efésios 1.13; 6.14, 19-20; Hebreus 4.2).

Na época em que 1 Timóteo foi escrito, as tradições sobre Jesus e, talvez, até mesmo Lucas-Atos eram considerados como Escrituras. Isto porque o autor de 1 Timóteo, ao ordenar que dupla honra seja conferida aos presbíteros da igreja dedicados à pregação e ensino, oferece como justificação: “Os presbíteros que governam bem devem ser dignos de honra em dobro, principalmente os que trabalham na pregação e no ensino. Porque a Escritura diz: ‘Não amarres a boca do boi quando ele estiver debulhando’; e: ‘O trabalhador é digno do seu salário’” (1 Timóteo 5.17-18). A primeira citação provém de Deuteronômio 25.4, mas a segunda deriva não do Antigo Testamento, mas de Lucas 10.7! Embora se possa tentar descontar a segunda citação como se fosse acréscimo não-escriturístico, restringindo a referência às Escrituras somente a Deuteronômio, não há razão para fazer tal diferenciação, e temos exemplos extrabíblicos antigos das palavras de Deus citadas como Escrituras.[1] De todo modo, é inegável que, para o autor de 1 Timóteo, a segunda citação é tão dotada de autoridade quanto o Antigo Testamento. Assim comenta I. H. Marshall: “Exige-se aí, certamente, uma fonte escrita, e esta deveria ter sido plena de autoridade”.[2]Isto aponta para o Evangelho de Lucas, de alguma forma. Assim, na época das epístolas pastorais, qualquer que seja a data delas, os evangelhos canônicos já estavam, provavelmente, sendo tratados como Escrituras pela igreja primitiva.

As epístolas paulinas vieram a ser consideradas Escrituras, conforme vemos em 2 Pedro 3.15-16: “Considerai como salvação a paciência de nosso Senhor, assim como o nosso amado irmão Paulo também vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi concedida, a exemplo do que faz em todas as suas cartas, falando acerca dessas coisas, nas quais há pontos difíceis de entender, que os ignorantes e inconstantes distorcem, como fazem também com as demais Escrituras, para sua própria destruição”. O autor de 2 Pedro equipara as cartas de Paulo às Escrituras do Antigo Testamento já mencionadas em 2 Pedro 1.20-21. O autor de 2 Pedro não está tentando estabelecer um cânon; pode muito bem ter havido outros escritos apostólicos, além dos de Paulo, que eram contados como Escrituras, mas os de Paulo são mencionados ali porque os remetentes tinham recebido ao menos uma carta paulina, que consideravam, evidentemente, como plena de autoridade. “A inclusão das cartas de Paulo nesta categoria significa, com certeza, que são consideradas escritos inspirados e autorizados (como o diz, na verdade, o v. 15), classificados no mesmo nível do Antigo Testamento e vários outros livros, incluindo outros escritos apostólicos.”[3]

Embora não possamos dizer quando os Evangelhos e epístolas apostólicas já eram considerados nas igrejas como Escrituras autorizadas, por volta do fim do primeiro século o eram assim considerados, evidentemente. Assim, numa data absurdamente antiga, os livros centrais do Novo Testamento estavam sendo tratados como Escrituras, em nível equiparado às Escrituras judaicas. É o máximo que se pode dizer a respeito da auto-referência da Bíblia como Palavra de Deus.

 

[1] Epístola de Barnabé 4.14: “como está escrito: ‘Muitos são chamados, mas poucos escolhidos’” (citação de Mateus 22.14) e 2 Clemente 2.4: “E ainda outra Escritura diz: ‘Não vim chamar justos, mas pecadores’” (citação de Marcos 2.17),

[2] I. Howard Marshall, A Critical and Exegetical Commentary on the Pastoral Epistles, International Critical Commentary (Londres: T. & T. Clark International, 1999), p. 616.

[3] Richard J. Bauckham, Jude, 2 Peter, Word Biblical Commentary 50 (Waco, TX: Word Books, 1983), p. 333.

- William Lane Craig