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#845 PIP e AEDePE

August 02, 2023
Q

Caro Dr. Craig,

No seu recente relatório mensal de junho de 2023, o senhor menciona o chamado Princípio de Incredulidade Pessoal, formulando-o assim:

PIP. Devemos crer em algo que achamos incrível, somente se soubermos de provas avassaladores ao seu favor.

O senhor acrescenta, aparentemente em aprovação, que, “quanto mais incrível for a proposição, mais provas serão necessárias para compelir-lhe a crença. Devemos exigir provas muito vigorosas, por exemplo, para que cada um de nós sejamos obrigados a crer na existência de um cérebro de Boltzmann!”.

Parece-me que a sua visão de PIP é fundamentalmente incompatível com a sua crítica da alegação cética: “Afirmações extraordinárias demandam provas extraordinárias” (AEDePE).

Afinal, os céticos acham “incrível” a proposição: “A ressurreição de Jesus é evento histórico”, demandando, portanto, provas “extraordinárias” (ou avassaladores e vigorosas, de acordo com PIP) ao seu favor.

Aquilo que, em relação ao PIP, constitui-se “prova avassaladora” é exatamente o que, em relação a AEDePE, quer dizer “prova extraordinária”. Portanto, se a última for demonstravelmente falsa, a primeira também o será.

Diversos ateus, incluindo alguns filósofos ateus que escrevem nas mídias sociais, começaram a criticá-lo severamente por sua suposta incoerência “óbvia”, neste caso.

Poderia explicar e expandir, com mais detalhes, as relações e diferenças entre PIP e AEDePE, e por que a primeira é verdadeira e a segunda é falsa?

Muito obrigado, e continue o seu bom trabalho!

Agustin

Estados Unidos

Dr. Craig responde


A

Que pergunta excelente! Ilustra bem o valor de compartilhar ideias em público para receber críticas dos outros. (É bom saber também que tantos descrentes estão lendo os nossos relatórios mensais!) Penso também que há uma lição mais ampla a ser aprendida aqui, à qual voltarei no fim.

A resposta breve à sua pergunta é que “extraordinário” e “avassalador” não são, nos seus respectivos contextos de uso, termos sinônimos. A resposta extensa envolve a explicação do modo em que se emprega cada palavra no seu respectivo contexto. A aparência de incoerência pode ser dissolvida pelo exame mais atento do que exatamente eu estava dizendo em cada caso.

No caso da alegação de que “eventos extraordinários demandam provas extraordinárias”, a pista para o meu significado encontra-se na minha asserção de que a afirmação é “demonstravelmente falsa”. Isto porque a afirmação, conforme a entendo, viola o cálculo de probabilidade expresso como Teorema de Bayes. Por isso, é demonstravelmente errado. Conforme aponto em Apologética contemporânea,

surgiu um debate entre teóricos da probabilidade de Condorcet a John Stuart Mill sobre quantas provas são necessárias para estabelecer a ocorrência de eventos extremamente improváveis.[i] Logo se percebeu que, caso simplesmente se ponderasse a probabilidade do evento em relação à confiabilidade da testemunha do evento, deveríamos ser levados a negar a ocorrência de eventos que, embora extremamente improváveis, sabemos com razão que aconteceram. Por exemplo, se no noticiário matinal houvesse o relato de que o número da loteria da noite anterior foi 7492871, trata-se de relato de eventos extraordinariamente improvável, um em vários milhões, mas, mesmo assim, se a precisão do noticiário matinal for sabida como 99,99%, a improbabilidade do evento reportado suplantará a probabilidade da confiabilidade da testemunha, de modo que jamais deveríamos crer em relatos desse tipo...

            Teóricos da probabilidade viram que o que também precisa ser considerado é a probabilidade de que, se o evento reportado não ocorreu, o testemunho da testemunha é bem do jeito que é... Assim, voltando ao nosso exemplo, a probabilidade de que o noticiário matinal anunciasse o número sorteado como 7492871, caso algum outro número tivesse sido escolhido, é incrivelmente pequena, dado que os repórteres não teriam nenhuma preferência pelo número anunciado. Por outro lado, o anúncio é muito mais provável, se 7492871 for o número real escolhido. Esta probabilidade comparativa compensa com facilidade a alta improbabilidade anterior do evento reportado.

 

Assim, o Teorema de Bayes nos exige considerar, não apenas a razão das probabilidades anteriores das hipóteses rivais segundo as informações contextuais C:

Pr (H|C)

__________

 Pr (não-H|C)

 

Devemos também considerar a razão das probabilidades posteriores das provas P segundo as respectivas hipóteses e as informações contextuais:

Pr (P|H&C)

______________

  Pr (P|não-H&C)

 

Em outras palavras, não se pode julgar a probabilidade de H com base, simplesmente, na sua probabilidade relativa às informações contextuais; é preciso também considerar o quanto é provável que as provas seriam do jeito que o são, caso H não fosse verdade. O segundo fato pode facilmente sobrecarregar o primeiro, de modo que algo que parece extraordinariamente improvável vem a ser, na verdade, bastante provável, segundo as provas totais. Pr (H|P&C) >> Pr (não-H|P&C). As provas P não precisam ser extraordinárias; o que importa é que P é muito mais provável, dado H, em vez de não-H. É a razão que conta.

Ora, e o que dizer do Princípio de Incredulidade Pessoal? Ele implica que devemos aceitar uma afirmação improvável, somente se tivermos provas que se sobreponham à improbabilidade de tal afirmação. No caso, “provas avassaladoras” não querem dizer “provas extraordinárias”, como você sugere, Agustin. Antes, referem-se às provas que superam ou prevalecem sobre a improbabilidade inicial. Assim, longe de ser incoerente, (PIP) e a minha negação de (AEDePE) estão, na verdade, dizendo a mesma coisa! Ou seja, não é preciso crer numa afirmação extremamente improvável, a menos que haja provas a superarem tal improbabilidade (que não precisa ser extraordinária, caso a segunda razão seja desigual).

Então, o interessante em PIP é que também parece aplicar-se a casos nos quais a hipótese não é improvável, mas apenas incrível. Conforme revelam as minhas ilustrações da hipótese do cérebro de Boltzmann e a teoria do ônfalo, estou falando de um caso em que as provas totais são igualmente bem explicadas pelas duas hipóteses Pr (H|P&C) = Pr (não-H|P&C). Nem a hipótese do cérebro de Boltzmann nem a teoria do ônfalo é improvável, segundo as informações contextuais. Não se pode refutar a ilusão de um mundo externo ou a aparência de idade, apelando-se para provas sensoriais! Tampouco são as provas mais prováveis segundo os contraditórios destas afirmações do que segundo as próprias afirmações, precisamente pela mesma razão.

Assim, (PIP) parece ser uma espécie de imagem em espelho do Princípio do Conservadorismo Fenomenal, tão amplamente aceito:

PCF. Se me parece que p, então, na ausência de derrotadores, sou justificado em crer que p.

Assim, se lhe parece que um mundo externo existe e que o passado era real, na ausência de provas avassaladoras, ou seja, provas sobressalentes do contrário, você está justificado em crer que não é um cérebro de Boltzmann e que o mundo não tem só alguns milhares de anos.

Assim, suponha que o ateu diga ser-lhe incrível que Deus exista. Devemos sugerir-lhe que as suas intuições podem estar equivocadas, uma vez que ele não tem boas razões contra a existência de Deus, e a existência de Deus não parece à maioria das pessoas como se fosse algo incrível. Ademais, podemos compartilhar com ele provas para a existência de Deus, bem como insistir na basicalidade apropriada da crença em Deus, que constituem derrotadores da sua crença ateísta. Dados tais derrotadores, o seu ateísmo é injustificado.

Isto nos leva à lição mais ampla que mencionei. Há diferença entre ler superficialmente e ler com entendimento. O leitor superficial só observa a gramática superficial das frases que lê e, então, salta para conclusões; o leitor cuidadoso busca escavar por debaixo da superfície para entender o raciocínio por detrás das afirmações que estão sendo feitas. Ao lermos com entendimento, podemos evitar sermos desencaminhados por impressões. Podemos chegar a ver que aquilo que parecem ser afirmações incoerentes não são lá tão incompatíveis assim.

 

[i] Ver S. L. Zabell, “The Probabilistic Analysis of Testimony”, Journal of Statistical Planning and Inference 20 (1988): 327-354.

- William Lane Craig